VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ENTENDENDO OS PORQUÊS E QUEBRANDO O SILÊNCIO
Roberta Lídice
Plínio Gentil
A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, tem esse nome em homenagem à farmacêutica e professora universitária Maria da Penha Maia Fernandes.
Durante seis anos, ela foi vítima de agressões por parte seu marido, também professor universitário, o qual tentou matá-la por duas vezes. Na primeira tentativa, em 1983, ele efetuou o disparo de arma de fogo, enquanto ela dormia, e a deixou paraplégica. Na segunda tentativa, ele tentou eletrocutá-la, enquanto ela tomava banho.
Então, ela tomou coragem e denunciou seu marido. Mas quinze anos depois da prática dos crimes, ele ainda continuava em liberdade porque utilizava sucessivos recursos processuais. O caso teve repercussão internacional, porque Maria da Penha, auxiliada por órgãos de luta pelos direitos das mulheres, levou o fato a organismos internacionais de proteção de direitos humanos, até que o Brasil, finalmente, editou a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Nos dias atuais, o Brasil possui um dos maiores índices de mulheres vítimas de violência doméstica. Na última década, 43,5 mil mulheres foram assassinadas no país, sendo 4.500 por ano (Relatório Final Senado Federal).
Assim, a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Nesse sentido, é importante mencionar que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, com fulcro no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Este tem como finalidade, na qualidade de princípio fundamental, assegurar ao indivíduo direito que devem ser respeitados pela sociedade e pelo Poder Público, com o intuito de preservar a valorização do ser humano.
A fim de conferir à dignidade da pessoa humana, como sendo princípio fundamental, fonte de todo ordenamento jurídico brasileiro, assim manifesta o STF: “[…] o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa a considerada centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo […]. (HC 95464, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, J. 03.02.2009, DJe 048 Divulg. 12.03.2009, Publ. 13.03.2009; Ement., v. 0235203, p. 0046)”.
Desse modo, vale ressaltar que as mulheres de hoje estudam, trabalham em diversos setores, assumindo vários papéis em seu cotidiano, como filhas, esposas e mães, mesmo as donas de casa, que exercem a direção do lar, colocando- as em posição de igualdade com seus companheiros.
Sendo assim, é de considerar inaceitável qualquer forma de violação dos direitos humanos, bem como qualquer forma de violência contra a mulher, e suas diversas manifestações: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral.
De acordo com o preceituado no art. 7º da Lei Maria da Penha entre os tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher tem:
– violência física: é aquela que ofende a integridade e saúde da mulher;
– violência psicológica: dano emocional à mulher; diminuição de autoestima; controlar suas ações, comportamentos e decisões: ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração, limitação do direito de ir e vir;
– violência sexual: qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada mediante: intimidação ameaça coação, força física, induzir a comercializar sua sexualidade, impedir métodos contraceptivos, forçar matrimônio, forçar gravidez, forçar aborto, limitar ou anular seus direitos sexuais e reprodutivos;
– violência patrimonial: qualquer conduta que tipifique retenção, subtração, destruição parcial ou total de: objetos, instrumento de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos, recursos econômicos;
– violência moral ou crimes contra honra: consiste em qualquer conduta que tipifique: calúnia (acusar alguém falsamente de um crime), difamação (imputar a alguém um fato ofensivo à sua reputação) ou injúria (ofender a honra de alguém).
Neste contexto, torna-se conveniente mencionar que o machismo é uma praga histórica, que não se elimina da noite para o dia. A criação da Lei Maria da Penha, em 2006, prevendo punição para quem agride e mata mulheres, foi um primeiro e audacioso passo.
Antes, muitas brasileiras nada denunciavam, por que sabiam que seriam ignoradas pelas autoridades e muitos brasileiros agiam com absoluta tranquilidade, porque davam a impunidade como certa.
O segundo passo contra o machismo é a educação. Pelo Brasil afora, no mesmo estilo dos alcoólicos anônimos, há grupos de ajuda para mulheres que não conseguem se desvencilhar dos companheiros violentos e outros para homens que não sabem refrear o ímpeto de agredir as companheiras. Mas o tipo de educação que mais dá frutos é a que se ensina na escola.
Afirma Maria da Penha Fernandes, a mulher que dá nome à lei: “O que muda o comportamento da sociedade é a educação. Temos que ensinar a nossos filhos desde pequenos, na escola, que a mulher merece respeito. Antes, ninguém usava o cinto de segurança. Hoje, a primeira coisa que a criança faz ao entrar no carro é avisar ao pai que ele precisa pôr o cinto. Quando ela crescer, nem sequer passará por sua cabeça não usar o cinto. Na violência contra a mulher, a lógica é a mesma. Tenho fé que lá na frente os homens aceitarão as mulheres como iguais. Nesse momento, a Lei Maria da Penha se tornará desnecessária. (Jornal do Senado, 4 jul. 2013)”.
A educação, porém, não apenas entendida como instrução escolar, mas em seu sentido mais amplo, fruto de um às vezes imperceptível e longo processo de ensino/aprendizagem, reclama, da parte do educando, o entendimento do contexto no qual são gestadas e reproduzidas as relações sociais dadas.
Para superá-las, é indispensável conhecer as determinações que as introduziram e as mantêm. Dessa maneira, com o fim de compreender a violência doméstica, hoje enfrentada por instrumentos legais, é preciso desvendar a razão histórica de um papel subalterno desenhado para a mulher em uma sociedade de classes, porque é justamente essa origem histórica que a leva à condição de vítima da violência masculina associada ao amor individual de caráter sexual.
Faz-se, portanto, necessário considerar as circunstâncias e os motivos que edificaram um cenário de inferioridade e a consequente vitimização da mulher pelo homem. São no interior da evolução das forças produtivas, graças ao artifício do casamento monogâmico, que se localizam os fatores que destinam à mulher uma subalternidade suficiente para explicar a sua posição de vítima de crimes masculinos violentos. Estes são motivados por valores cujo desenvolvimento tem, por conseguinte, matriz econômica. Para quem desejar um atalho nesta análise, diga-se que a sociedade de classes é o contexto lógico da violência doméstica.
Nos agrupamentos sociais primitivos, as relações entre homens e mulheres eram livres e a ideia atual de família tinha como equivalente a comunidade de parentes dentro da qual os filhos eram de todos os pais e como tal eram tratados.
Uma posterior proibição de relação sexual entre alguns parentes, primeiro os ascendentes e descendentes, depois os colaterais, fortaleceu a formação de casais em pares, não exclusivos, ao invés de grupos.
Essa fase, que é a da família pré-monogâmica, afinal, é substituída pela da família monogâmica, caracterizada pela exclusividade da relação entre um homem e uma mulher. A consequente escassez de parceira (o) disponível principia a introduzir a ideia de valor de troca correspondente à pessoa almejada, elemento que comporá o quadro no qual, mais tarde, a violência se pretenderá justificável para assegurar a posse, ou a propriedade, de tal parceira(o).
Importante é localizar historicamente a origem dessa família constituída pela união monogâmica. Assim, vamos verificar, com Engels[1] e Lessa, que esse arranjo surge engendrado por um determinado estágio de evolução das forças produtivas: após desenvolver instrumentos de produção, aprender a cultivar o solo e criar animais em escala comercial, o homem – assim entendido o humano do sexo masculino – começa a acumular riqueza pessoal, que ele pretende administrar com os seus próprios filhos, aos quais ademais deseja legar aquilo que considera sua propriedade exclusiva. A mulher, mantida em casa por seus deveres biológicos com a prole e para sua preservação enquanto matriz reprodutora, não participa da formação dessa riqueza, da qual, portanto, não é dona.
O lar é seu reino, no qual exerce a sua única parcela de poder, o qual, todavia, não gera valor econômico. Ora, para ter certeza da paternidade, só resta ao homem exigir exclusividade na sua função de parceiro sexual da mulher. Como a certeza da maternidade não necessita da exclusividade do lado feminino do casal, o matrimônio monogâmico já surge com a marca da tolerância no tocante ao adultério masculino e intolerância como feminino.
A partir desse ponto, não é difícil compreender que o papel delineado para a mulher virtuosa é a atividade doméstica, que a exclui da vida social e das instâncias decisórias importantes no contexto da sociedade civil e política.
Lessa (p. 37) vai direto ao ponto:
Excluídas da participação na vida social, com sua existência reduzida ao estreito horizonte do lar patriarcal, as mulheres vão se convertendo no feminino que predominou ao longo de milênios: pessoas dependentes, débeis, frágeis, ignorantes, bonitas para os homens aos quais devem servir dóceis, compreensivas.
Enfim, pessoas moldadas para a vida submissa e subalterna que lhes cabe na sociedade de classes. (LESSA, Sérgio. Abaixo a família monogâmica! 1. ed. São Paulo: Instituto Lukács, 2012).
Evidencia-se, dessa maneira, situar-se na propriedade privada da riqueza e no antagonismo de classe que ela inaugura, a partir da moldagem de uma sociedade de proprietários e não proprietários, o elemento fundante da subalternidade feminina, que estará daí em diante, na raiz da violência que a mulher será condenada a sofrer do parceiro masculino. Violência preferencialmente física, mas também moral, patrimonial, psíquica e sexual, como já veste.
Essa violência se precisa ser legalmente enfrentada, deve também ser desconstruída a partir do questionamento de um modelo vertical de sociedade que engendra papéis sociais de mando e de obediência, assim plantando as sementes de uma violência a um só tempo enraizada e frequentemente tomada por natural.
[1] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 2. ed. São Paulo: Escala.