A VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE, PREVISTOS NO ARTIGO 8º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, DESAFIA A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIO?
Do Superiores Tribunal de Justiça, a esclarecedora lição de Fredie Didier:
“O art. 1º do CPC impõe que o direito processual civil deve ser construído e interpretado em consonância com a Constituição Federal. Do ponto de vista normativo, o enunciado reproduz uma obviedade: qualquer norma jurídica brasileira somente pode ser construída e interpretada de acordo com a Constituição Federal. A ausência de dispositivo semelhante no CPC não significaria, obviamente, que o CPC pudesse ser interpretado em desconformidade com a Constituição.
O artigo enuncia a norma elementar de um sistema constitucional: as normas jurídicas derivam da Constituição e devem estar em conformidade com ela. Essa norma decorre do sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição Federal. Esse truísmo normativo ainda gera uma perplexidade: se a decisão interpretar a norma processual em desconformidade com a Constituição Federal, além de contra ela caber recurso extraordinário, caberá também recurso especial, por violação ao art. 1º do CPC? Não, certamente não: o art. 1º apenas reproduz uma norma constitucional, segundo o qual as normas infraconstitucionais devem obediência à Constituição. Trata-se de um “clone legal” de norma constitucional, conforme designação utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu o cabimento de recurso extraordinário nessa hipótese (STJ, 2ª T., EDcl no REsp. 181.913, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 6-4-99, DJ de 31-5-99; STJ, 2ª T., AgRg no REsp. 179.653, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 5-3-99, DJ de 19-4-99; STJ 2ª T., EDel no REsp. 71.964, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 12-6-97, DJ de 30-6-97). De todo modo, caso tenha sido indevidamente interposto o recurso especial, aplica-se o art. 1.032, que impõe a observância de regrar de fungibilidade, para que o recurso seja processado como extraordinário. O conteúdo normativo deste artigo é constitucional, não infraconstitucional. O enunciado é texto de mera reafirmação de texto da Constituição – Exemplo claro de legislação simbólica: repete-se, em fonte normativa de nível inferior, o enunciado normativo de nível superior, sem qualquer novidade, nem mesmo a atribuição de maior densidade normativa ao comando constitucional. Deste artigo, não decorre normatividade infraconstitucional. Violar o art. 1º do CPC é violar a Constituição Federal. Do ponto de vista simbólico, no entanto, o enunciado é muito importante. Embora se trate de uma obviedade, é pedagógico e oportuno o alerta de que as normas de direito processual civil não podem ser compreendidas sem o confronto com o texto constitucional, sobretudo no caso brasileiro, que possui um vasto sistema de normas constitucionais processuais, todas orbitando em torno do princípio do devido processo legal, também de natureza constitucional. O enunciado é, ainda, manifestação clara de reconhecimento da força normativa da Constituição, um dos aspectos fundamentais do pensamento jurídico contemporâneo. Não foi por acaso, portanto, que o legislador resolveu fazer essa declaração logo no primeiro artigo, como uma espécie de preâmbulo do novo Código de Processo Civil. A referência a ‘normas constitucionais’ é correta.
A constituição não é fonte apenas de princípios; dela decorrem regras jurídicas, também – proibição de prova ilícita e exigência de motivação das decisões são exemplos de regras constitucionais processuais. Por isso, ‘normas’, que é designação genérica, a englobar os princípios e as regras constitucionais. A referência aos ‘valores constitucionais’ é estranha e inoportuna. Justiça social, segurança jurídica, proteção da família, liberdade, dignidade da pessoa humana, solidariedade são exemplos de valores constitucionais – boa parte dos quais já normatizados. O valor é aquilo que é bom. A constitucionalização de uma série de valores os transformou em normas jurídicas (princípios). Princípio é norma que determina o que deve ser. O valor é objeto da axiologia; o princípio, como deve ser, da deontologia (ALEXY, 2008, p. 146-153; ZANETI JR., 2004b, p. 319-321, § 3.2.3.6) Os ‘valores constitucionais’, cujo rol não é claro nem está previsto expressamente em lugar algum, funcionam como instrumento retórico para a aplicação de normas jurídicas. Mas valores não são normais jurídicas, embora sirvam de inspiração a elas. O órgão julgador deve decidir com base em normas jurídicas – os valores servirão para auxiliar o órgão julgador na atividade hermenêutica. Aliás, o próprio CPC, no art. 8º, impõe que o juiz observe a ‘legalidade’, que, no caso, significa o dever de decidir conforme o Direito positivo – não necessariamente escrito (costume, por exemplo), não necessariamente estatal (negócio jurídico, por exemplo). Teoria sido melhor que não houvesse referência aos valores ‘valores’. Preocupa-me decisões judiciais que se afastem de normas jurídicas, contentando-se com a referência ao sempre etéreo e indeterminado jargão do ‘valor constitucional’. No direito o que importa é o que deve ser’(ALEXY, 2008, p. 153). Os arts. 1º e 3º da Constituição Federal e o extenso rol de direitos fundamentais e sociais nela previstos cumprem o mesmo papel que se pretende atribuir aos ‘valores constitucionais’, com a diferença clara e importante de que são normas jurídicas”1 (destacou-se).
E a lição de espraia no comentário ao artigo 8º do mencionado Código de Processo Civil ao se referir à violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade desta feita com o anteparo de julgados do Supremo Tribunal Federal:
“Máximas da proporcionalidade e da razoabilidade. O art. 8º impõe ao órgão julgador que observe os deveres de proporcionalidade e razoabilidade. Esses deveres decorrem de normas jurídicas, ora consideradas como postulado, ora como princípio, ora como regra, conforme seja o pensamento doutrinário que se adotar. Para estes comentários, o fundamental é destacar a natureza de norma jurídica das máquinas da proporcionalidade e da razoabilidade.
A experiência jurídica brasileira assimilou o devido processo legal de um modo bem peculiar, considerando-lhe o fundamento constitucional das máximas da proporcionalidade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal extrai da cláusula geral do devido processo legal os deveres de proporcionalidade ou razoabilidade (STF, RE 374.981, Rel. Celso de Mello, j. 28.03.2005). O STF fez uma amálgama entre proporcionalidade e razoabilidade, a partir do devido processo legal (FERRAZ JR., 2007, p. 37-46). Fala-se, então, em uma devido processo legal substantivo ou substancial (MENDES, 2004, p. 46 e ss.; CASTRO, 2005, passim; LIMA, 1999, p. 274; FERRAZ JR., 2007, p. 37-46; LUCON, 2009, p. 382; ASSIS (Augusto), 2001, p. 63; BRAGA, 2008, p. 188 ss.; FERNANDES, 2003, p. 41-42; BARROS, 2003, P. 91-100). Sérgio Mattos, embora critique a construção brasileira, demonstram que a concretização do devido processo legal substancial pela jurisprudência do STF é bem ampla e vaga, abrangendo a proibição de leis e decisões aberrantes da razão, passando pela exigência de normas razoáveis e racionais, até a necessidade de perquirir-se se, conflito entre dois bens jurídicos, a decisão afigura-se adequada (apta a produzir o resultado almejado), necessária (insubstituível por outro meio menos gravoso) e proporcional em sentido estrito (se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um bem jurídico e o grau de realização do outro) MATTOS, 2009, p. 97). De qualquer formas, as máximas da proporcionalidade e razoabilidade possuem natureza constitucional. O desrespeito a essas normas dá ensejo a recurso extraordinário, tal como explicado nos comentários ao art. 1º. A brevidade desses comentários impede que se disserte sobre as nuances dogmáticas da proporcionalidade e da razoabilidade. A bibliografia monográfica sobre o assunto é imensa e bem conhecida. Além dos livros citados, há, por exemplo, as excelentes contribuições de BONAVIDES, 1998; GUERRA FILHO, 1996; À VILA, 2011; SILVA, 2009, p. 168-169. Especificamente sobre a relação entre essas máximas e o processo civil, há, também, vasta bibliografia: QUEIROZ, 2000; GÓES, 2004; BONÍCIO, 2016; ÁVILA (Thiago), 2007; AGUIRRE, 2005; ARAÚJO, 2004; CAPONI, 2011; FERNANDES, 2003”2. (Destacou-se).
Sobre o assunto, julgado do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do Ministro Ari Pargendler:
“Uma causa que, potencialmente, exigiria o exame de questões constitucionais ou de questões federais infraconstitucionais pode, e isso não é raro, ser decidida sem qualquer referência a esses temas. Hipóteses em que, decidindo a respeito do direito adquirido, embora sem citação do artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal ou o artigo 6º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, o acórdão tem fundamento constitucional. Mesmo que tivesse sido referido o artigo 6º, § 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, isso não transformaria esse fundamento do julgado em tema de direito infraconstitucional. As normas constitucionais não perdem o caráter quando reproduzidas em leis ordinárias; pelo contrário, atraem a questão resultante da aplicação do clone legal para o âmbito do recurso extraordinário. Embargos de declaração acolhidos em parte”.3
Em igual sentido, julgado da relatoria do Ministro Francisco Falcão, com fragmento de ementa dentro dos seguintes termos:
“Entretanto, nesse ponto, incognoscível o recurso especial. A um por que, como reconhece a própria recorrente, a questão relativa à aplicação da sanção resvala no art. 5º, XLV da CF/88, cuja apreciação por parte do STJ caracterizaria usurpação de competência constitucionalmente atribuída ao STF. Ainda que objetivamente violada a legislação infraconstitucional, o fato da norma inferior ser reproduzida pela Constituição não retira da matéria a natureza constitucional. Essa é a jurisprudência desta Casa”4
Por conseguinte, e sem desmerecer os entendimentos em sentido diverso, violado o comando do artigo 8º do Código de Processo Civil no que diz respeito aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, o recurso extraordinário é o remédio jurídico apropriado, uma vez que se trata de violação à constituição à Constituição Federal.
NOTAS
- CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. E-Book.
- (Obra citada).
- STJ. EDel. no REsp. 181.913/PR. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&num_registro=199800511601&dt_publicacao=31/05/1999. Acesso em 16-5-2018.
- STJ. REsp. 1.137.241. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?sre=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=200901661530. Acesso em 16-5-2018.