VÍNCULO FANTASMA E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DAS FAMÍLIAS
– Relacionamentos Voláteis da Atualidade-
Patrícia Gorisch
Resumo
O fenômeno do “vínculo fantasma” é um tema contemporâneo que revela as complexidades dos relacionamentos modernos. Abordado pela psicóloga Tatiana Paranaguá em seu livro “Vínculo Fantasma: Os Relacionamentos Voláteis da Atualidade”, o conceito descreve relações que se iniciam de maneira promissora, mas terminam abruptamente, deixando a outra parte confusa e emocionalmente abalada. Ao contrário do “ghosting”, que ocorre predominantemente no ambiente digital, o vínculo fantasma acontece na vida real, trazendo consigo consequências significativas que podem ser analisadas sob a perspectiva do Direito de Família. Partiremos dos seguintes questionamentos: como o fenômeno do vínculo fantasma, caracterizado por relacionamentos que terminam abruptamente e sem explicação, impacta as relações familiares e os direitos das partes envolvidas no contexto do Direito de Família no Brasil? Quais são os principais desafios jurídicos enfrentados na comprovação e reconhecimento de uniões estáveis em casos de vínculo fantasma, considerando a volatilidade e a falta de continuidade nas relações? De que maneira o término abrupto e inexplicável de um vínculo fantasma pode ser interpretado como uma violação do princípio da boa-fé objetiva e como isso influencia as decisões judiciais relativas à partilha de bens, guarda de filhos e fixação de alimentos?
A Natureza do Vínculo Fantasma
O vínculo fantasma caracteriza-se por uma desconexão entre atos, pensamentos e palavras. As relações parecem genuínas e carregam a promessa de um compromisso, mas subitamente se desfazem sem explicações, causando danos psicológicos profundos. Essa volatilidade nos relacionamentos é associada ao arquétipo do puer aeternus, ou “criança eterna”, que segundo Carl Gustav Jung e desenvolvido por Marie-Louise von Franz, representa indivíduos emocionalmente imaturos, incapazes de lidar com as exigências do mundo adulto. Tatiana Paranaguá (2023), utilizando-se das teorias junguianas, propõe que o vínculo fantasma é um sintoma da proliferação do puer aeternus. Segundo Jung, o puer aeternus simboliza a imaturidade emocional e a incapacidade de estabelecer compromissos duradouros, refletindo uma sociedade onde a superficialidade e a volatilidade nas relações são cada vez mais comuns. Essa imaturidade emocional é evidenciada pela desconexão entre palavras e ações, onde promessas de compromisso são frequentemente quebradas sem explicações adequadas, gerando confusão e sofrimento psicológico na parte abandonada.
No Direito das Famílias, o reconhecimento de uniões estáveis exige comprovação de uma convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituição de família, conforme previsto nos artigos 1.723 e seguintes do Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002). No entanto, a volatilidade característica do vínculo fantasma pode dificultar o reconhecimento dessas uniões.
A abrupta finalização do relacionamento pode deixar lacunas probatórias significativas, prejudicando o reconhecimento jurídico da união estável e, consequentemente, os direitos patrimoniais e sucessórios dela decorrentes. A união estável é uma entidade familiar que requer um mínimo de estabilidade e continuidade. A imprevisibilidade e a falta de compromisso evidenciadas no vínculo fantasma contrariam a essência da união estável, complicando ainda mais a comprovação de uma convivência duradoura e contínua.
A responsabilidade emocional, conceito central no trabalho de Paranaguá, reflete-se no princípio da boa-fé objetiva que permeia o Direito de Família. Este princípio, previsto no artigo 422 do Código Civil, exige que as partes ajam com lealdade e transparência. O término repentino e sem explicações de um vínculo fantasma pode ser visto como uma violação dessa boa-fé, equiparando-se, em certos casos, a um abandono emocional. A boa-fé objetiva impõe um dever de lealdade e honestidade nas relações interpessoais, sendo uma cláusula geral que orienta a conduta das partes em diversos aspectos do Direito Civil. Essa violação pode ter implicações na partilha de bens, guarda de filhos e fixação de alimentos, conforme disposto nos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil.
O princípio da boa-fé objetiva deve ser observado em todas as fases do relacionamento, desde a sua constituição até a sua dissolução, garantindo que os direitos e deveres das partes sejam respeitados. A boa-fé objetiva não se restringe às relações contratuais, mas se estende também às relações familiares, exigindo das partes um comportamento ético e transparente. O término abrupto de um vínculo fantasma pode ser interpretado como uma quebra dessa ética relacional, gerando consequências jurídicas significativas.
O vínculo fantasma pode ter impactos diretos nas relações parentais, especialmente em situações onde o casal tem filhos. O término abrupto pode causar um distanciamento não apenas entre os ex-parceiros, mas também entre o pai ou a mãe e os filhos. A Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010) protege a criança contra interferências que possam prejudicar o vínculo com o genitor. A alienação parental consiste na interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, avós ou por quem tenha a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para que repudie o genitor ou cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Um comportamento típico de vínculo fantasma pode ser interpretado como uma forma de alienação, prejudicando o desenvolvimento emocional da criança. A súbita ausência de um dos pais biológicos ou afetivos, pode causar confusão e insegurança, impactando negativamente o bem-estar psicológico e emocional da criança. Nesse contexto, a psicoterapia e a mediação familiar são ferramentas essenciais para mitigar os efeitos negativos do vínculo fantasma nas relações parentais.
A alienação parental é uma forma de abuso emocional que deve ser combatida com vigor, pois prejudica o desenvolvimento saudável da criança e compromete o direito fundamental à convivência familiar. A abordagem do vínculo fantasma, portanto, deve considerar os impactos potenciais nas relações parentais e buscar soluções que protejam os interesses superiores da criança. Uma medida preventiva que pode ser adotada é a formalização de contratos de convivência, conforme previsto no artigo 1.725 do Código Civil. Esses contratos permitem que os casais definam previamente questões patrimoniais e direitos e deveres mútuos, sendo instrumentos eficazes para garantir a segurança jurídica dos conviventes, evitando litígios futuros e assegurando a proteção dos direitos de ambas as partes.
Embora não possam prever todas as nuances emocionais de um relacionamento, esses contratos oferecem um grau de proteção jurídica que pode mitigar os impactos de um vínculo fantasma. A formalização de acordos patrimoniais e de convivência contribui para a transparência e clareza nas relações, promovendo a segurança jurídica e emocional dos parceiros.
A assessoria psicológica e a mediação familiar são ferramentas valiosas para lidar com os efeitos de um vínculo fantasma. O apoio psicológico pode ajudar as partes a compreenderem e processarem o término abrupto, enquanto a mediação, conforme prevista na Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), oferece um espaço neutro para que questões práticas e emocionais sejam resolvidas de forma amigável. A mediação familiar é uma ferramenta eficaz para resolver conflitos familiares de forma pacífica e consensual, promovendo a harmonia e o bem-estar das partes envolvidas, além de facilitar a resolução de questões patrimoniais e de guarda, também pode abordar aspectos emocionais e psicológicos, promovendo a cura e a compreensão mútua. A intervenção de um mediador qualificado pode ajudar as partes a comunicarem suas necessidades e expectativas, facilitando a construção de soluções que atendam aos interesses de todos os envolvidos
A importância da mediação familiar como um meio de promover a resolução de conflitos de maneira humanizada, respeitando os sentimentos e necessidades das partes envolvidas. A mediação permite que os ex-parceiros cheguem a um acordo que seja benéfico para todos, especialmente para os filhos, evitando litígios prolongados e desgastantes.
Considerações finais
O fenômeno do vínculo fantasma apresenta desafios únicos tanto para a psicologia quanto para o Direito das Famílias. A compreensão profunda dessa dinâmica e suas consequências pode informar práticas jurídicas mais empáticas e eficazes, que protejam os direitos e bem-estar dos indivíduos afetados. A busca por suporte emocional e jurídico adequado é essencial para navegar as complexidades dos relacionamentos modernos, garantindo que mesmo os términos abruptos sejam tratados com a seriedade e respeito que merecem.
Os principais desafios jurídicos enfrentados na comprovação e reconhecimento de uniões estáveis em casos de vínculo fantasma estão relacionados à volatilidade e falta de continuidade nas relações. A união estável exige uma convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituição de família. No entanto, a natureza instável do vínculo fantasma dificulta a comprovação desses requisitos. A abrupta finalização desses relacionamentos cria lacunas probatórias significativas, prejudicando o reconhecimento jurídico da união estável e os direitos patrimoniais e sucessórios dela decorrentes.
O término abrupto e inexplicável de um vínculo fantasma pode ser interpretado como uma violação do princípio da boa-fé objetiva. A boa-fé objetiva impõe um dever de lealdade e honestidade nas relações interpessoais, sendo uma cláusula geral que orienta a conduta das partes em diversos aspectos do Direito Civil. A quebra dessa ética relacional no término de um vínculo fantasma gera consequências jurídicas significativas e essa violação pode influenciar as decisões judiciais relativas à partilha de bens, guarda de filhos e fixação de alimentos. A ausência de explicações no término do vínculo fantasma pode ser vista como uma forma de abandono emocional, afetando a segurança jurídica e emocional das partes envolvidas.
Uma alternativa para mitigar os impactos do vínculo fantasma é a implementação de programas de educação emocional e relacional, tanto em ambientes educacionais quanto comunitários. Esses programas poderiam ensinar habilidades de comunicação eficaz, resolução de conflitos e empatia, preparando os indivíduos para lidar melhor com os desafios emocionais e relacionais. Além disso, o apoio psicológico contínuo e acessível pode ajudar as pessoas a desenvolverem uma compreensão mais profunda de si mesmas e dos outros, promovendo relações mais saudáveis e duradouras.
Ao refletir sobre o impacto do vínculo fantasma no Direito das Famílias e nas relações interpessoais, é essencial reconhecer a importância de um compromisso mais profundo com a ética, a empatia e a responsabilidade emocional. Segundo Carl Gustav Jung, “Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta.”. Este pensamento nos convida a uma introspecção necessária para entender e superar os desafios das relações modernas. Ao olharmos para dentro, podemos desenvolver a maturidade emocional necessária para construir vínculos verdadeiros e duradouros, protegendo não apenas nossos direitos, mas também nosso bem-estar emocional.
Referências
PARANAGUÁ, Tatiana. “Vínculo Fantasma: Os Relacionamentos Voláteis da Atualidade.” Editora Record, 2023.
JUNG, Carl Gustav. “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.” Editora Vozes, 2013.
VON FRANZ, Marie-Louise. “Puer Aeternus: Psicologia do Homem Moderno.” Cultrix, 1991.
DIAS, Maria Berenice. “Manual de Direito das Famílias.” Editora Revista dos Tribunais, 2023.
TARTUCE, Flávio. “Manual de Direito Civil: Volume Único.” Editora Método, 2020.
VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito Civil: Direito de Família.” Atlas, 2019.
DINIZ, Maria Helena. “Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família.” Saraiva, 2023.
Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o Art. 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 29 de novembro de 2010.