USUFRUTO IMOBILIÁRIO E INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL EMPRESARIAL
Felipe Bizinoto Soares De Pádua
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O que começou denominado como Direito Comercial ou Mercantil tornou-se o estudo do Direito Empresarial, a disciplina jurídica que se volta a sistematizar e estudar o empresário e sua atividade, a empresa. Essa reviravolta tem em vista que o principal protagonista do mercado é o empresário, a entidade individual ou coletiva que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, segundo se extrai do art. 966 do CCB/2002.[1]
Falando em Código Civil brasileiro, tal diploma unificou os ramos civil e comercial – conforme pretendia o jurisconsulto Augusto Teixeira de Freitas, designando o Livro II como “Do Direito Empresarial”. Esse regime jurídico geral (e sobre o qual gravitam outros textos jurídicos que regem o empresário, a empresa e até o mercado) tem como ponto central duas figuras, quais sejam o direito de propriedade em seu sentido amplíssimo (= confunde-se com patrimônio) e o contrato.
De acordo com Luciano de Camargo Penteado[2] e F. C. Pontes de Miranda[3], a propriedade em sentido amplíssimo se confunde com o patrimônio, ou seja, o setor da esfera jurídica que contém todas as posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas, dotadas de imediata valoração econômica e consequente expressão pecuniária[4]. É esse sentido que é adotado, p. ex., nos arts. 5º, caput, e 170, II, da CRFB.
O mercado é extremamente dinâmico e tem como uma de suas exigências centrais – ao menos no capitalismo – o fluxo (circulação e acumulação) de mercadorias e serviços, e essas exigências, por sua vez, costumam pressupor a propriedade em sentido amplíssimo[5]. É a partir da necessidade de fluxo patrimonial que nasce o contrato, instrumento que, simultaneamente, serve como arquétipo jurídico (atraindo a proteção do Direito) e como meio legitimador do fluxo patrimonial (circulação e acumulação de riquezas)[6].
Relacionando propriedade (em sentido amplo), contrato e mercado, surge a figura do empresário (agente) e da empresa (atividade), que têm como ponto inicial a destinação patrimonial por parte dos investidores (sócios ou acionistas) para o exercício de uma ou mais atividades profissionalmente voltadas ao mercado e com o intuito de obter lucro[7].
A destinação patrimonial para o exercício da atividade empresária leva ao capital empresarial, um ponto inicial que se liga ao quanto (em bens ou até serviços) que cada interessado-investidor destina de patrimônio próprio para a constituição de certa pessoa jurídica, o empresário coletivo (sociedade empresária) ou individual (empresário individual).
Das múltiplas formas que alguém pode compor o capital de uma entidade empresária está o usufruto imobiliário, um direito real de gozo sobre coisa imóvel alheia[8], exsurgindo a seguinte pergunta: é possível destinar algo do usufruto imobiliário para compor o capital empresarial?
A indagação acima será respondida mediante etapas: (i) como ponto inicial, será tratada a chamada elasticidade do direito de propriedade (em sentido restritíssimo); (ii) o ponto intermediário será a acepção do usufruto imobiliário e a forma como é constituído no Brasil; e (iii) o ponto final será o que do usufruto é (im)possível integralizar no capital empresarial.
Antes de rumar ao ponto inicial, importante destacar um segundo sentido do direito de propriedade, qual seja, a propriedade em sentido restritíssimo ou domínio, que compreende o direito de propriedade em sua plenitude, o assenhoramento pleno e exclusivo sobre determinada coisa e que confere a quem ostenta o título jurídico os poderes de usar, gozar, dispor e reaver, tudo dentro dos contornos jurídicos[9]. É com relação a esse domínio que incide o usufruto, passando a uma divisão na qual existe a nua-propriedade e o chamado domínio útil, conforme linhas que seguem.
1 A ELASTICIDADE DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Conforme o texto do CCB/2002, o domínio consta no art. 1.228, que enuncia que a propriedade carrega os poderes jurídicos de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem querem que injustamente a possua ou detenha. Pressupondo tal direito subjetivo, Luciano de Camargo Penteado[10] aponta que os direitos reais de gozo sobre coisa alheia constantes no art. 1.227 (superfície, servidões, usufruto, uso, habitação, concessão de uso especial para fins de moradia, concessão de direito real de uso, laje) pressupõem o domínio, porquanto existem duas figuras relevantes: o proprietário e aquele que tem direito real sobre a coisa alheia (do proprietário).
As duas figuras mencionadas se envolvem, conforme mencionado, a partir do domínio: ao proprietário, que ficará, muitas vezes, apenas com o poder de disposição, enquanto ao terceiro titular de direito real sobre coisa alheia são destinados os poderes jurídicos de uso e gozo, como é o caso do usufruto, e até de dispor, como é o caso da superfície e da laje[11]. Ao proprietário que não concentra os poderes de usar e gozar é dado o nome de nu-proprietário, enquanto ao terceiro é dado o nome de acordo com a figura jurídica utilizada (no usufruto é o usufrutuário, na superfície é o superficiário etc.).
Essa possibilidade de desdobramento dominial tem origens romanísticas, conforme lecionam Thomas Marky[12], José Cretella Júnior[13] e Ebert Chamoun[14], para os quais o nome dado ao chamado desdobramento do domínio, que resulta na atribuição de posições jurídicas reais a terceiros alheios ao titular do domínio, é elasticidade da propriedade. F. C. Pontes de Miranda[15] destaca a distinção das figuras do domínio e suas raízes a partir da abrangência: a primeira categoria é de abrangência total, pois engloba todos os poderes jurídicos citados (uso, gozo, disposição e reaver de quem injustamente possua), enquanto a segunda categoria, os direitos de gozo sobre coisa alheia, são de abrangência parcial, pois tratam apenas de um ou alguns poderes jurídicos, mas não de todos.
Sobre a acepção de elasticidade dominial, despontam duas visões. A primeira é trazida por Cristiano Chaves de Faria, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald[16], para os quais a elasticidade consiste na cisão de poderes dominiais em favor de outrem, pessoa ou entidade não personificada. A segunda visão é de Luciano de Camargo Penteado[17], que concebe a elasticidade como ampliação ou compressão dominial ou em razão da vontade ou da ordem legal.
A segunda visão não diverge da primeira, mas tem abrangência e mais sentido com a acepção da elasticidade, eis que parte da lição de F. C. Pontes de Miranda[18] sobre a noção de contornos jurídicos, cujas espécies são a restrição, como o contorno estabelecido por ato de vontade, ou a limitação, que é o contorno estabelecido pelo sistema jurídico. É que a elasticidade pode ser horizontal, relacionada aos direitos reais de gozo sobre coisa alheia, constituídos mediante ato de vontade que restringe o domínio, ou pode ser vertical, relacionada às restrições e limitações oriundas do Poder Público, p. ex., as limitações legais à utilização dominial (as APPs) e as restrições administrativas[19].
Diante do quadro acima é que se define a elasticidade do direito de propriedade em sentido restritíssimo como a ampliação ou compressão do domínio por força de ato jurídico ou do próprio ordenamento jurídico.
Um ponto deve ser colocado para adequar a elasticidade da propriedade em seu sentido amplíssimo, eis que alguns direitos reais sobre coisa alheia recaem, também, sobre patrimônio, p. ex., o usufruto. Por isso, pode-se definir a elasticidade da propriedade em sentido amplíssimo como a ampliação ou compressão do setor patrimonial por força de ato jurídico ou do próprio ordenamento jurídico. Dentro desse sentido está a elasticidade dominial, que se liga, como a própria denominação faz constar, sobre o domínio, o direito de propriedade de abrangência total.
É com ênfase na elasticidade horizontal que o usufruto será tratado, porque ele é, ordinariamente, um ato jurídico entre titular da propriedade e terceira pessoa que será beneficiária em relação à extração e ao aproveitamento da coisa, inclusive quanto aos seus frutos e utilidades[20].
2 O USUFRUTO IMOBILIÁRIO E SUA CONSTITUIÇÃO
Concebida pelos romanistas como uma servidão de caráter pessoal[21], o usufruto recebeu tratamento jurídico próprio pelas atuais legislações, sendo que, inclusive, se desprendeu da noção de servidão – uma figura jurídica real autônoma –, consoante se depreende da leitura do art. 1.225 do CCB/2002.
Apesar da autonomização, os contornos conceituais pouco foram modificados, mantendo-se muito do teor romanista.
O desprendimento da servidão, segundo F. C. Pontes de Miranda[22] decorre da ausência de interpredialidade, isto é, a ausência como elemento de existência essencial do usufruto da interação entre prédios sob titularidades distintas. Ademais, o usufruto é direito intransmissível, enquanto a servidão é direito que se transmite em razão da transmissão do direito de propriedade sobre o prédio dominante[23].
Consta no art. 1.390 do CCB/2002 que “o usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades”. Do texto se extrai uma acepção ampla de usufruto, que ainda mantém certas bases romanísticas e consiste no direito real sobre propriedade alheia de caráter personalíssimo, temporalmente restringido ou limitado e que confere ao titular os poderes de uso e gozo sobre certa universalidade, bens móveis ou imóveis, retirando-lhes os frutos, contudo, sem que altere a substância do que usufruído[24].
O que se vê é que a legislação, apesar de localizada no estatuto civilista dos direitos reais, determina que o usufruto possa recair ou sobre patrimônio (= propriedade em sentido amplíssimo) ou sobre o domínio (= propriedade em sentido restritíssimo). Logo, o usufruto é uma modalidade que retumba nos conformes do CCB/2002, como um direito de essência real, mas que atua sobre a propriedade em sentido largo, pois recai sobre coisas (= direito de propriedade em sua acepção restritíssima) ou sobre patrimônio (= direito de propriedade em sua acepção larga).
Duas espécies se sobressaem do gênero acima: o usufruto mobiliário e o imobiliário. O primeiro envolve direito de usar e gozar (e até dispor) em relação à universalidade de móveis ou a determinada coisa móvel, enquanto o segundo trata de usar e gozar (e até dispor) em relação à universalidade imobiliária ou a determinada coisa imóvel.
Uma figura paralela é o chamado usufruto impróprio ou quase usufruto, que compreende o direito sobre coisa alheia que recai sobre bem consumível, que, portanto, finda a relação, por não existir a possibilidade de restituir o que consumidor[25]. O consumo não apenas dá fim à relação entre proprietário e quase usufrutuário, mas também reduz a restituição à quantia que valia o bem consumido, exceto no caso de títulos de créditos, que se destinam à percepção de valor específico[26].
Como mencionado no item anterior, o usufruto tem sua constituição ordinariamente ligada à vontade, mas isso não significa que advenha de outras fontes, a saber, a lei e a usucapião. Logo, constitui-se o usufruto por ato volitivo inter vivos ou causa mortis (testamento) ou judicial, por força da ordem legal ou por usucapião[27].
Como característica geral a ser destacada aqui, cumpre expor que a doutrina[28]reconhece, em razão do art. 1.393 do Codex civilista, o caráter personalíssimo do usufruto, isto é, trata-se de uma posição jusreal complexa intransmissível nem por ato inter vivos nem por ato causa mortis.
Atentar-se-á mais, agora, à espécie de usufruto imobiliário: apesar das múltiplas fontes, todas elas dependem, para fins imobiliários, que sejam levadas ao Registro de Imóveis da circunscrição na qual está localizado o bem sobre o qual recai o direito real em comento. Consta, no trecho de disposições gerais do Capítulo Único do Título II, que trata dos direitos reais em sua generalidade, do Livro III, que trata do Direito das Coisas, previsão de que depende de ato registral estrito no Cartório de Registro de Imóveis.
Para conformar o registro em sentido estrito com uma melhor adequação do texto do art. 1.227 do CCB/2002 aos atos volitivos, à lei e à usucapião sobre usufruto imobiliário é que se desenvolve a aplicação da teoria ponteana das ações e suas forças preponderantes ao registro stricto sensu[29]: com relação aos atos de vontade, terá caráter preponderantemente constitutivo, e, com relação à lei e à usucapião, o caráter será preponderantemente declaratório.
De acordo com a lição de Antônio Junqueira de Azevedo[30], na hipótese volitiva, o ato registral em sentido estrito do usufruto na matrícula imobiliária diz respeito a um fator de atribuição da eficácia em geral, eis que o ato de vontade não produz seus efeitos sem a pertinente inscrição no fólio real, enquanto nas demais hipóteses (legal e usucapião) o ato registral stricto trata de fator de atribuição de eficácia mais extensa, ou seja, existe um direito, mas sua produção de efeitos gerais (oponibilidade contra todos os efeito erga omnes) exige a inscrição na matrícula do imóvel[31].
Quanto às espécies de usufruto imobiliário, Cristiano Chaves de Faria, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald[32] apontam diversos casos que foram objeto de tratamento pelo ordenamento jurídico brasileiro: (i) no sentido largo de ordem legal, a Constituição reserva aos indígenas o usufruto das terras tradicionalmente ocupadas por tais agrupamentos, cf. art. 231, § 2º; (ii) no sentido mais estrito de ordem legal, o Código Civil reserva o usufruto dos bens do filho em prol dos pais enquanto perdurar a autoridade parental, cf. art. 1.689; (iii) o usufruto judicial decorre da aplicação do CPC/2015, arts. 824, 825, 835, XIII, 867, 904, I, que trata da possibilidade de penhorar frutos e rendimentos de bens móveis ou imóveis ou da própria atividade empresária do devedor; (iv) o usufruto convencional pode ser por um negócio inter vivos ou por testamento, cf. arts. 1.390 e 1.391 do CCB/2002; e (v) o usufruto por usucapião decorre da posse qualificada sobre a coisa ou sobre a universalidade, cf. art. 1.391 do Código Civil.
Algumas consequências da constituição do usufruto imobiliário são as de que resultam direito à posse, ao uso, à administração e à percepção dos frutos da coisa ou da universalidade sobre a qual recaiu o direito subjetivo real de gozo sobre coisa alheia, consoante art. 1.394. Conforme aponta F. C. Pontes de Miranda[33] quanto à posse, esta é, regra geral, a posse imediata, e o usufrutuário pode, inclusive, valer-se da imissão de posse para se assenhorar fisicamente da coisa se ela estiver sob posse injusta de outrem.
Com relação ao aproveitamento, este trata da percepção dos frutos. É uma leitura mais pontual e adequada do texto do art. 1.394 do CCB/2002. De acordo com Clóvis Bevilaqua[34] e Carlos Roberto Gonçalves[35], os produtos são as utilidades extraídas da coisa que lhe diminuem em caráter permanente, enquanto os frutos são as utilidades extraídas sem que haja a citada diminuição.
É dizer: produto é aquilo que não pode ser reproduzida periodicamente, p. ex., as pedras preciosas e os metais extraídos de minas, enquanto os frutos podem periodicamente reproduzidos, p. ex., o aluguel (= fruto civil) e os vegetais (frutos naturais).
As acepções de usufruto que foram adotadas estão em conformidade com a exigência final de manutenção da substância da coisa ou da universalidade sobre a qual recai o direito de usufruto, bem como se alinha à previsão constante nos arts. 1.390 e 1.394 do CCB/2002, que determinam que o usufrutuário tenha direito de perceber os “frutos e utilidades”, excluídos os produtos, que, invariavelmente, reduzem a substância da coisa ou da universalidade[36]. Existe uma exceção com relação a recursos minerais e florestais constantes no imóvel, determinando o Código Civil, no art. 1.392, que, “se há no prédio em que recai o usufruto florestas ou os recursos minerais a que se refere o art. 1.230, devem o dono e o usufrutuário prefixar-lhe a extensão do gozo e a maneira de exploração”, sendo que a inexistência de tal prefixação, cf. art. 1.230, parágrafo único, resulta no direito do proprietário a perceber os produtos em comento.
Além da percepção e da posse, usufruir envolve o poder do usufrutuário em gerir o que lhe tem pertinência em razão do direito real de gozo: como decorrência do uso e do gozo está o poder jurídico de administrar, de, dentro da substancialidade da coisa, disciplinar discricionariamente a gestão daquilo sobre o que recai o usufruto[37].
O necessário sobre a figura do usufruto para este artigo chegou ao seu exaurimento, cabendo agora tratar de tal direito subjetivo real em relação ao início da atividade empresária, com o apontamento, pelo investidor, de certo bem ou serviço ou poder jurídico para compor o capital empresarial.
3 INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL COM O USUFRUTO?
A pergunta deve ser novamente feita: pode haver alguma coisa do usufruto imobiliário a ser integralizada, paga por um sócio ou acionista para compor o capital de determinada entidade empresária?
Em uma primeira perspectiva, a resposta seria negativa, pois o art. 1.393 do CCB/2002 proíbe que o usufruto seja transmitido, o que, para fins de integralização, significaria a transmissão da posição jusreal a um complexo patrimonial que será, após o registro constitutivo, integrante do setor patrimonial da entidade empresária, visto que o Código Civil do Brasil determina que “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores” (art. 49-A, caput), bem como reconhece a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas – grupo no qual se insere o empresário – ao enunciar que “a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos” (art. 49-A, parágrafo único).
Uma segunda leitura decorre de interpretação mais atenta do caráter personalíssimo do usufruto: o direito em si é intransmissível, porquanto o art. 1.393 do CCB/2002 determina que “não se pode transferir o usufruto por alienação; mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso”. Aqui cabe destacar a lição da teoria geral do Direito desenvolvida por Giuseppe Lumia[38], para quem titularidade e legitimidade são figuras distintas: a primeira é a relação de pertinência de certa posição jurídica com certo sujeito de direitos, enquanto a segunda categoria trata daquele que tem o poder de exercer determinada posição jurídica. Aplicando-se tais ideias gerais ao usufruto: sua titularidade é intransferível, mas sua legitimidade é passível de transmissão.
O STJ (REsp 242.031/SP) reconheceu a viabilidade de penhora judicial recair sobre os resultados do usufruto, o que faz a distinção entre titularidade
(= impenhorável e inalienável) e legitimidade (= penhorável e alienável), consoante teor do art. 1.393 do Diploma Civil. A Corte da Cidadania fixou entendimento para o caso no sentido de que os frutos atrelados ao direito do usufrutuário são penhoráveis.
Um segundo julgado do STJ (REsp 1.712.097/RS) tratou da penhora da nua-propriedade, destacando o Tribunal que o imóvel gravado com usufruto poderá ter sua nua-propriedade objeto de hasta pública, enquanto o direito de abrangência parcial será ressalvado, para que extinga em conformidade com seu ato constitutivo, que, no caso, foi um negócio por meio do qual o tempo do direito subjetivo jusreal era vitalício e foi expressamente resguardado no momento em que o leilão ocorreu.
Na mesma entoada sobre a reserva do usufruto, o TJSP (APL 0013951-95.2012.8.26.0566) decretou a nulidade de negócio de alienação da nua-propriedade sem autorização judicial; todavia, a Corte bandeirante constatou a intangibilidade do efeito desconstitutivo da decisão em relação à reserva de usufruto vitalício e, também, sobre a cessão do seu exercício mediante negócio jurídico inter vivos.
Se for possível a cessão gratuita ou onerosa, voluntária ou involuntária da legitimidade do usufruto, então é aberta a possibilidade de o investidor integralizar o capital empresarial não com o usufruto sobre imóvel em si, mas sim com os frutos e as utilidades decorrentes de tal posição jurídica real complexa.
Em complemento à viabilidade de alocar o proveito econômico do usufruto imobiliário, o resultado do exercício da fruição são os frutos naturais e civis. Pelos frutos serem uma utilidade recorrente e oriunda da natureza ou das relações sociais, bem como poderem ser separados do bem imóvel sobre o qual gravitam sem comprometimento substancial, eles ingressam na categoria de bens móveis e acessórios (ao imóvel), o que se amolda tanto à previsão genérica do CCB/2002, em seu art. 997, III, quanto à previsão específica sobre sociedades por ações, no art. 7º da Lei nº 6.404/1976.
E mais: ao contrário do que é exigido legalmente para a constituição ou reconhecimento do usufruto imobiliário, que é o ato registral stricto sensu, a doutrina[39] mostra que essa cessão da legitimidade não se constitui pelo registro em sentido estrito, e sim pelo próprio negócio de cessão, porque tem natureza obrigacional em benefício do terceiro cessionário e em detrimento do usufrutuário cedente. A importância do registro da cessão da exploração econômica do usufruto é, mais uma vez citando Antônio Junqueira de Azevedo[40], a atribuição de eficácia mais extensa, a fim de opor a legitimidade contra todos (erga omnes)[41].
No âmbito do TJSP, a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo (PP 1003212-76.2018.8.26.0100) proferiu decisão que reconheceu a natureza creditória – e, portanto, obrigacional – da cessão da exploração econômica do direito de uso e fruição pelo usufrutuário a terceiro. A partir do art. 1.393 do CCB/2002, o citado órgão expôs “ser admitida apenas a cessão do exercício do usufruto, ou seja, o terceiro favorecido será titular de um simples direito de crédito, podendo usar ou fruir da coisa, mas não de um direito real. Não se transmite usufruto, mas apenas os poderes derivados da relação jurídica do usufruto”.
Continuando a análise do caso acima, destacou o órgão judicial monocrático a distinção entre titularidade e legitimidade do usufruto, expondo, no teor da sentença, que o instrumento entabulado pelos interessados consubstanciou-se na cessão do exercício de usufruto, contudo negócio jurídico não transfere qualquer direito real, ou seja, caracteriza-se por uma obrigação pessoal estabelecida entre as partes envolvidas, sem ingresso no fólio real.
Apesar das considerações feitas pelo juízo da Vara de Registros Públicos paulistana, o TJSP (APL 0013951-95.2012.8.26.0566), no citado caso de invalidação da transferência da nua-propriedade sem outorga judiciária – eis que envolvia titulares incapazes –, constatou, também, que no fólio real constava o negócio de cessão do exercício do usufruto, o que remete à possibilidade de averbar tal ato para fins de expandir a oponibilidade.
Como a questão a ser respondida trata da relação entre os segmentos real e empresarial, o ideal é que a cessão do usufruto imobiliário pelo investidor seja averbada no Cartório de Registro de Imóveis que custodia a matrícula do bem sobre o qual recai o direito de usufruto, bem como, por exigência expressa do art. 32, II, da Lei nº 8.934/1994 (lei de registros empresariais e atividades afins) e dos arts. 1.151 e 1.154 do CCB/2002, na Junta Comercial do local onde está sediada a entidade empresária a ser constituída.
CONCLUSÕES
A propriedade em sentido restritíssimo significa a figura de abrangência total denominada domínio, um direito subjetivo que corresponde ao assenhoramento pleno e exclusivo sobre determinada coisa e que confere a quem ostenta o título jurídico os poderes de usar, gozar, dispor e reaver, tudo dentro dos contornos jurídicos.
De outra banda, definiu-se um sentido mais largo de propriedade, que é o patrimônio, um setor da esfera jurídica que contém todas as posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas, dotadas de imediata valoração econômica e consequente expressão pecuniária.
A partir das duas noções que se desbravaram duas acepções de elasticidade da propriedade. Uma primeira com maior generalidade, tratando da elasticidade da propriedade em sentido largo, que é a ampliação ou a compressão do setor patrimonial por força de ato jurídico ou do próprio ordenamento jurídico.
Uma segunda acepção é restrita ao campo jusreal e trata da elasticidade dominial, que significa a ampliação ou a compressão do domínio por força de ato jurídico ou do próprio ordenamento jurídico.
Canalizando as noções de propriedade e elasticidade, tanto nos sentidos mais gerais quanto específicos, chegou-se ao usufruto, dotado de uma acepção ampla que consiste no direito real sobre propriedade alheia de caráter personalíssimo, temporalmente restringido ou limitado e que confere ao titular os poderes de uso e gozo sobre certa universalidade, bens móveis ou imóveis, retirando-lhes os frutos, contudo sem que altere a substância do que usufruído.
As espécies extraídas do gênero são o usufruto mobiliário, que envolve direito de usar e gozar sobre universalidade de móveis ou determinada coisa móvel, e o imobiliário, que trata do uso e do gozo (e até disposição) relativo sobre universalidade imobiliária ou determinada coisa imóvel.
O direito de usufruir sobre universalidade ou determinada coisa móvel ou imóvel se constitui por ato jurídico privado (inter vivos ou causa mortis) ou público (judicial), por força da ordem legal (diplomas legais e Constituição do Brasil) ou por usucapião.
O instituto do usufruto faz a posse, a gestão e o aproveitamento dos frutos serem deferidos ao usufrutuário, que ostenta um direito subjetivo real personalíssimo e, portanto, impassível de transmissão a terceiros. Por isso que surgiu a indagação se é possível o usufrutuário integralizar o capital empresarial com o usufruto sobre bem imóvel ou algo dele decorrente.
Em conformidade com a Teoria Geral do Direito, a titularidade, que é a relação de pertinência de certa posição jurídica com alguém, e a legitimidade, que é o poder de alguém exercer determinada posição jurídica, destacaram-se para viabilizar o ingresso de algo do usufruto imobiliário na integralização de capital empresarial: apesar de a titularidade do usufruto ser intransmissível, a legitimidade pode ser cedida a terceiros, que poderão realizar a exploração econômica imobiliária. Tal ideia se aplica não apenas à espécie imobiliária, mas à mobiliária.
Tendo em vista que a cessão tem caráter obrigacional, o ato de cessão da legitimidade do usufruto imobiliário, per si, já constitui o direito na esfera jurídica do terceiro (no caso, a entidade empresária cujo capital é formado), sendo que o ato de registro stricto sensu tem caráter preponderantemente declaratório, havendo um fator de atribuição de eficácia mais extensa no sentido da oponibilidade da cessão ser contra todos (erga omnes).
Como exigências legais atinentes ao aspecto societário, o ordenamento legal exige que o ato constitutivo atrelado aos bens e direitos que ingressam no capital empresarial seja arquivado na Junta Comercial do local onde sediada a pessoa jurídica societária.
REFERÊNCIAS
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[1] Abreviaturas: Apelação – APL; Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB; Código
Civil brasileiro de 2002 – CCB/2002; Código de Processo Civil brasileiro de 2015 – CPC/2015; Pedido deProvidências – PP; Recurso Especial – REsp; Superior Tribunal de Justiça – STJ; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP
[2] PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 163-164.
[3]PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XI, 2012. p. 66-67.
[4] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Contrato: o que é, suas funções e como entendê-lo. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, v. 26, n. 2, 2020. Disponível em: https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/issue/view/60. Acesso em: 26 dez. 2020.
[5] VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de; GARCIA, Manuel Enriquez. Fundamentos de economia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 3 e ss.
[6] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Contrato: o que é, suas funções e como entendê-lo. Op. cit.
[7] ASCARELLI, Túlio. O empresário. Trad. Fábio Konder Comparato. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, [s.l.], v. 92, p. 269-278, 1997. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67365. Acesso em: 26 dez. 2020.
[8] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 148.
[9] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 173-174; PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Elementos gerais da usucapião. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 104, a. 21, p. 152, abr./jun. 2020.
[10] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 148.
[11] Idem.
[12] MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. 9. ed. São Paulo: YK, 2019. p. 125-126.
[13] CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 154 e ss.
[14] CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 233 e ss.
[15] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XI, p. 67-68.
[16] 6 FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de direito civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 1008.
[17] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 193-192.
[18] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. I, 1972. p. 80.
[19] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 193
[20] Ibidem, p. 520; FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p.1129.
[21] CHAMOUN, Ebert. Op. cit., p. 273 e ss.; CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 158 e ss.; MARKY, Thomas. Op. cit., p. 127-129.
[22] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XIX, 2012. p. 84.
[23] Idem
[24] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., tomo XIX, p. 77-78;
PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 520; FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga;
ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 1129; CHAMOUN, Ebert. Op. cit., p. 273; CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 158; MARKY, Thomas. Op. cit., p. 128.
[25] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 525.
[26] Idem.
[27] Ibidem, p. 520; FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Op. cit.,p. 1131-1133.
[28]PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XIX, p. 283-284;
PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 521; FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga;
ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 1130.
[29] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. A eficácia dos atos registrais no processo de transmissão da propriedade imobiliária. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, v. 89, jul./dez. 2020.
[30] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 57.
[31] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. A eficácia dos atos registrais no processo de transmissão da propriedade imobiliária. Op. cit.
[32] FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 1131-1133.
[33] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Op. cit., t. XIX, p. 167.
[34] BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1955. p. 175-176.
[35] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2018. p. 150.
[36] Idem.
[37] FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 1134.
[38]LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teoria e ideologia del Diritto. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1981. Tradução, com adaptações e modificações, do Professor Alcides Tomasetti Jr. Versão revista e bastante alterada em abril de 1999.
[39] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 521; FARIA, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga;
ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 1134-1135.
[40] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. cit., p. 57
[41] PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit., p. 521.