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UNIÃO ESTÁVEL VERSUS CASAMENTO: PASSADO, PRESENTE E FUTURO – REFLEXÕES APÓS A LEI DO SERP

UNIÃO ESTÁVEL VERSUS CASAMENTO: PASSADO, PRESENTE E FUTURO – REFLEXÕES APÓS A LEI DO SERP

Flávio Tartuce

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

A união estável vem migrando de sua natureza inicial de informalidade para frequentar o espaço de formalidade do casamento, podendo o seu histórico jurídico-legislativo ser dividido em quatro fases, na realidade jurídica brasileira.

A primeira fase era a da sua negação total, quando o convívio more uxorio desacompanhado do casamento era totalmente desprezado no âmbito do Direito de Família. Havia, assim, a primazia absoluta do casamento, sendo essa a única opção para a constituição de família entre nós, com a negação de qualquer efeito jurídico decorrente da união de fato.

A segunda fase diz respeito ao progressivo reconhecleimento de direitos relativos à sociedade de fato para a convivência, sem, porém, ostentar ela o status de entidade familiar. O marco inicial dessa fase foi a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, que remonta ao ano de 1964, segundo a qual, “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Esse núcleo more uxorio informal era então denominado como concubinato puro, em expressão cunhada por Álvaro Villaça Azevedo.

A terceira fase foi a da elevação desse núcleo more uxorio para o ambiente do Direito de Família, sob o epíteto de união estável. O seu marco foi o selo de qualidade familiar dado pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal à união estável. Nessa etapa, passou ela a crescer dentro do território do Direito de Família, alcançando progressivos e paulatinos avanços rumo a uma equiparação com o casamento. O advento das duas leis sobre a união estável – a Lei n. 8.971/1994 e a Lei n. 9.278/1996 – são pegadas dessa demorada caminhada da união estável para produzir efeitos jurídicos iguais aos do casamento.

Ainda nessa fase, no aspecto sucessório, por exemplo, partiu-se de uma hesitação em garantir apenas um usufruto vidual ao companheiro supérstite por meio do art. 2º da primeira lei da união estável – ao menos quando houvesse descendentes ou ascendentes como herdeiros e em paralelismo ao que vigorava para o cônjuge viúvo casado em regime diverso do da comunhão universal de bens sob a ótica do art. 1.611 do Código Civil de 1916 – até reconhecer-lhe uma atribuição patrimonial efetiva no então art. 1.790 do Código Civil de 2002, ainda que mais tímida em relação àquela que o art. 1.829 da vigente codificação privada atribuiu ao casamento.

A quarta fase teórica é a que ainda agora nos envolve. Trata-se da etapa evolutiva de uma tentativa de equiparação máxima da união estável ao casamento, com dois marcos principais, que nos fizeram repensar posições doutrinárias anteriores, dentro da realidade social e jurídica brasileira.

 O primeiro marco é a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2017, com a inclusão do companheiro na ordem de vocação hereditária do cônjuge do art. 1.829 do mesmo Código, nos termos das decisões publicadas no Informativo n. 864 da Corte Suprema. O segundo marco diz respeito à admissibilidade facultativa da inserção da união estável nos registros públicos, por meio, em ordem sucessiva, do Provimento n. 37/2014 do Conselho Nacional de Justiça, da Lei n. 14.382/2022 (Lei do SERP) e do recente Provimento n. 141/2023 do mesmo CNJ.

Nesse novo ambiente, por imperativo constitucional e clara opção da última norma citada, a união estável registrada há de ser equiparada ao casamento para todos os efeitos jurídicos, salvo naquilo em que a eventual informalidade da união estável possa prejudicar terceiros de boa-fé. É nesse sentido que se deve entender o Enunciado n. 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, em 2018, a saber: “a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável”.

Entendemos que essa é a interpretação doutrinária vitoriosa na nossa realidade jurídica, e que ora prevalece a respeito da comparação entre a união estável e o casamento, sendo defendida por Anderson Schreiber, Ana Luiza Nevares, Gustavo Tepedino, entre outros. Também nos parece ser essa a posição que prevalece em julgados superiores, tendo sido adotada pela Lei do SERP, nos dispositivos que admitem o citado registro facultativo – no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais – e a conversão extrajudicial da união estável em casamento (novos arts. 94-A e 70-A da Lei de Registros Públicos, incluídos pela Lei n. 14.382/2022).

O fato é que, atualmente e no vigente quadro jurídico brasileiro, a união estável pode ser classificada nas seguintes espécies, tendo em vista a diversidade – ainda que suave – de regimes jurídicos: a) união estável não formalizada; b) união estável formalizada: b.1) por título simples; ou b.2) por título qualificado; e c) união estável registrada.

Para a união estável não formalizada, vigora a informalidade tradicional, sendo certo que o casal se comporta como se casados fossem mantendo o convívio more uxorio, e sem nada ter colocado “no papel” entre si. Trata-se da ideia tradicional de união estável, entendida como mera união de fato. No máximo, em termos de divulgação mais formal da união estável, o casal externa para alguns entes e pessoas essa sua condição, como na declaração de dependência do companheiro no plano de saúde, no clube, no imposto de renda, no banco, no colégio dos filhos, no trabalho, entre outros.

Seguindo, no caso de uma união estável formalizada, o casal elabora um contrato de convivência, reconhecendo a união estável, indicando sua data de início, escolhendo o regime de bens e inserindo outras cláusulas próprias que, no casamento, geralmente estão nas escrituras públicas de pacto antenupcial, firmadas perante os Tabelionato de Notas.

Essa formalização pode dar-se por título simples, assim entendido o instrumento particular, ou por título qualificado, que está afiançado pela fé pública de um agente e que, por isso, é admitido para o registro público facultativo. Os títulos qualificados, conforme a recente normatização sobre o tema, são a sentença de reconhecimento da união estável, a escritura pública ou o termo declaratório de união estável efetivado perante o Registro Civil das

Pessoas Naturais, consoante se infere do art. 1º, § 3º, do Provimento n. 37 do CNJ, em modificação efetivada pelo Provimento n. 141, em 2023.

Por fim, a união estável registrada é a decorrente do ingresso, a pedido do casal, do título qualificado de união estável no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, o que foi positivado em norma jurídica pela Lei do SERP, apesar de já existirem posições que a admitiam, caso do Enunciado n. 35, aprovado na II Jornada de Solução Extrajudiciais das Controvérsias, sob a coordenação geral do Ministro Luis Felipe Salomão, em 2021.

Em todas essas espécies de união estável – não formalizada, formalizada ou registrada – são reconhecidos, em regra, os principais efeitos jurídicos internos ou intramuros do casamento, como os alimentos, o regime de bens e a sucessão mortis causa. Chamamos de efeitos intramuros aqueles produzidos dentro do núcleo familiar, sem atingir terceiros. São esses muitas vezes os efeitos jurídicos relativos a normas de solidariedade, nos termos do antes citado Enunciado n. 641 da VIII Jornada de Direito Civil.

Existem, porém, alguns efeitos intramuros que ainda envolvem certa controvérsia doutrinária, caso do reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, no art. 1.845 do Código Civil. Na hipótese da união estável não registrada, também existem divergências em relação à incidência da presunção de paternidade do art. 1.597 da vigente Lei Geral Privada.

No que diz respeito à condição de herdeiro necessário, somos pelo seu alcance pela união estável, pois não há qualquer justificativa baseada na informalidade da união estável para excluir o companheiro do direito à reserva sucessória. Entendemos que resistências doutrinárias que são feitas para equipará-lo ao cônjuge para os efeitos de proteção da legítima são ancoradas em argumentos já repelidos pelo próprio Supremo Tribunal Federal, atrelados à vencida tese de que a união estável não poderia gerar direitos sucessórios como ocorre com o casamento. Como é notório, a decisão do STF determina a inclusão do companheiro ao lado do cônjuge, nos incisos I, II e II do art. 1.829, previsões essas que se referem justamente a herdeiros necessários. Assim, não é possível reconhecer que o convivente não tenha tal condição!

Já no tocante à presunção de paternidade, a questão é muito sensível e divergente. O Superior Tribunal de Justiça acenou favoravelmente à sua aplicação no caso de união estável registrada. No leading case, o Tribunal da Cidadania analisou caso concreto que envolvia genitor que “vivia em regime de união estável com a mãe da menor desde o ano de 2004, devidamente registrada em Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais”, nas exatas palavras do Ministro Relator (STJ, REsp 1.194.059/SP, relator Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 6/11/2012, DJe de 14/11/2012). De fato, na hipótese de união estável registrada, a presunção de paternidade deve ser automaticamente aplicada pelo registrador, porque o registro público é a segurança mínima exigida operacionalmente pelo nosso ordenamento para respaldar a aplicação da presunção de paternidade, tanto no caso de casamento quanto no de união estável. A respeito dessa possibilidade, destacamos o Enunciado n. 7, aprovado na I Jornada de Direito Notarial e Registral, em 2022, com a seguinte redação: “a presunção de paternidade, prevista no art. 1.597 do Código Civil, aplica-se aos conviventes em união estável, desde que esta esteja previamente registrada no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca, nos termos do Provimento CNJ n. 37/2014”.

 Entretanto, em havendo uma união estável não registrada, entendemos que a aplicação da presunção de paternidade dependeria de algumas adaptações para fins probatórios. De fato, sem esse registro, não há como o registrador civil ter uma garantia da atualidade de eventual título de reconhecimento da união estável. Por essa razão, opinamos que a aplicação da presunção de paternidade para a união estável não registrada dependerá de uma questão de índole operacional, a depender do agente público demandado. Perante o registrador civil, a presunção de paternidade não poderá ser aplicada no momento da lavratura do assento de nascimento e de modo automático. Há, assim, a necessidade de reconhecimento voluntário da paternidade na forma do art. 1.609 do Código Civil. Já perante o juiz, a presunção de paternidade poderá sim ser aplicada como decorrência do reconhecimento da existência de união estável. Em outras palavras, em o juiz reconhecendo a existência de união estável, poderá aplicar a presunção de paternidade.

Ainda nesse balanço da realidade jurídica atual relativa à união estável, lembramos que a proteção da meação do companheiro diante de penhoras por dívidas contraídas sem proveito da família não é propriamente um efeito extramuros, para além do vínculo convivencial. Trata-se, na verdade, de fruto de um efeito intramuros da união estável, qual seja a comunicação do patrimônio comum, o que, por regras relativas aos direitos reais, é oponível erga omnes.

Passamos, então, para os fins deste breve artigo, a tratar da equiparação da união estável ao casamento em relação aos citados efeitos jurídicos extramuros, como a exigência de autorização ou outorga convivencial para os atos e negócios jurídicos de interesse da entidade familiar, nos termos dos arts. 1.647, 1.648, 1.649 e 1.656 do Código Civil, dispositivos que mencionam apenas a outorga conjugal e o casamento. Uma das grandes dúvidas práticas existentes desde a entrada em vigor da codificação de 2002 é justamente saber se esses preceitos se aplicam à união estável.

A análise desses efeitos deve ser feita à luz da diretriz de não prejudicar terceiros de boa-fé que ignorem a união estável mantida à margem da publicidade dos registros públicos. Por isso, no caso de união estável registrada, entendemos ser plenamente aplicável a exigência da outorga convivencial, sob pena de anulabilidade ou nulidade relativa do negócio jurídico efetivado, e em prejuízo desse terceiro. Opinarmos que o registro da união estável no Livro E do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais faz presumir a ciência do terceiro, à semelhança do que se dá com o registro do casamento.

Porém, na hipótese de união estável não registrada, é preciso identificar, no caso concreto, se o terceiro sabia efetivamente da existência da união estável ou não. Se, por exemplo, a parte declarou viver em união estável, cabia ao terceiro observar o art. 1.647 do Código Civil. A propósito dessa afirmação, lembramos que o art. 319, II, do Código de Processo Civil exige que a parte declare essa informação na petição inicial, diante do forte prestígio angariado pela união estável do Estatuto Processual de 2015. Como temos afirmado, o vigente CPC efetivou uma equalização processual entre as duas entidades familiares objeto deste texto. Igualmente, a exigência de participação do cônjuge nas ações imobiliárias é estendida à união estável comprovada nos autos, conforme o art. 73, § 3º, da mesma Norma Instrumental.

Igual raciocínio se dará se a informação da união estável estiver na matrícula do imóvel envolvido no negócio arrolado nos incisos do art. 1.647 do Código Civil, caso da venda e da doação, pois há ciência – ainda que potencial – pelo terceiro da existência da união estável. Todavia, se o terceiro não sabia ou não tinha conhecimento da união estável, não há como prejudicá-lo com a invalidação do negócio feito sem a autorização convivencial, não sendo o caso de incidir a previsão do art. 1.649 da Lei Geral Privada. A escolha dos companheiros pela informalidade plena tem seus ônus, sendo certo que o Direito não pode prejudicar terceiros de boa-fé em proveito de quem se manteve na informalidade. Uma das primazias ou preferências do Direito Civil sempre foi prestigiar o tráfego jurídico, afirmação que ainda tem grande pertinência na atualidade.

Nota-se, por todos esses aspectos destacados, que a quarta fase relativa à união estável ainda está em curso, irradiando, cada vez com mais nitidez, os seus contornos. Por ora, o que se vê é que a união estável registrada já se equiparou, quase que integralmente, ao casamento. A única distinção está no fato de que, como a união estável nasce com a presença fática dos requisitos do art. 1.723 do Código Civil, o registro da união estável não necessariamente impedirá uma comprovação contrária, demonstrativa de eventual simulação das partes. Quanto ao casamento, por sua vez, seu nascimento vincula-se apenas ao ato formal do seu procedimento – ultimado com o registro -, e não à presença de requisitos fáticos. Todavia, mesmo essa distinção não ostenta tanta relevância prática, porque a falta de convívio efetivo entre os cônjuges caracteriza uma separação de fato, que interrompe a produção de alguns efeitos do casamento, como os relativos ao regime de bens.

Por óbvio, a jurisprudência e a doutrina haverão de encerrar esta quarta fase, concluindo esse delineamento de equiparação da união estável ao casamento. Em um lampejo de futurologia, vislumbramos que talvez venha a surgir uma quinta fase, em que as burocracias para a constituição e a extinção do casamento desaparecerão de forma definitiva, reduzindo-se de um procedimento a um único ato. Para se casar, não haverá mais necessidade da inócua publicação de proclamas, além de a própria celebração do casamento tender a tornar-se facultativa. Para divorciar-se, bastará um ato unilateral de um dos cônjuges, com notificação ao outro.

Esse fato, alinhado a uma eventual mudança na estrutura sociológica brasileira rumo ao abandono da cultura da informalidade, talvez deságue em um funeral da união estável, enterrada com todos os efeitos colaterais que produziu ao longo da história. Então, a doutrina que pregava diferenças entre as entidades familiares – cada vez mais enfraquecida pelas mudanças sociais e legislativas – restará totalmente vencida.

Como palavras finais, pensamos que a união estável, embora seja um instituto ainda necessário para remediar injustiças que ocorrem em uma sociedade ainda marcada pela informalidade, é nociva do ponto de vista sistêmico, especialmente na sua versão não formalizada nem registrada. A Lei do SERP, como é notório, buscou facilitar a sua formalização perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, com menos burocracias e menos custos aos cidadãos e à sociedade. Nesse contexto, lembramos que as normas jurídicas devem ser dirigidas a esses últimos e não a determinados grupos, corporações de ofício ou entidades de classe. Por ora, atualmente, com a subsistência de burocracias em torno do casamento e com a manutenção da cultura de informalidade, a nossa sociedade ainda não está preparada para fazer a união estável sair da vida para entrar na história.