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A UNIÃO ESTÁVEL E O CHAMADO NAMORO QUALIFICADO NO BRASIL

A UNIÃO ESTÁVEL E O CHAMADO NAMORO QUALIFICADO NO BRASIL

Zeno Veloso           

SUMÁRIO: I – Introdução. II – Conceito de União Estável. III – Elementos. IV – Contrato de Convivência. V – Deveres. VI – Uso do Sobrenome. VII – Impedimentos – Pessoa Casada, mas Separada de Fato. VIII – Regime de Bens. IX – Separação Obrigatória de Bens. X – Presunção de Paternidade. XI – Adoção por Casal Homossexual. XII – Filiação – Guarda de Filhos. XIII – Alimentos. XIV – Sucessão Hereditária. XV – Direito Real de Habitação. XVI – Extinção. XVII – Namoro Qualificado – Distinção da União Estável. XVIII – Legislação Excessiva. XIX – Contrato de Namoro – Limites.

                                  

I – Introdução         

Neste artigo, pretendo analisar a união estável, importante figura do direito de família brasileiro, com notas pontuais, para efeito comparativo, ao instituto português da união de facto. Ao final, mostrarei as diferenças entre a união estável e o que denomino namoro qualificado, matéria que tem despertado muito interesse e divergências em nosso país.

Um caso ficou famoso e tem sido objeto de noticiário na imprensa. Jornais, revistas e televisões se ocupam dele, até pela notoriedade das pessoas envolvidas, um empresário riquíssimo e uma atriz e modelo famosa, uma das mais belas mulheres do Brasil.

Ela alega que viveu em união estável com o milionário e teria participado da formação do patrimônio durante a convivência. Ele diz que não houve união estável alguma e tudo não passou de um namoro, com vários rompimentos, inclusive, que não produz efeitos jurídicos.

A matéria é controvertida, os próprios doutrinadores estão divididos, as opiniões são discrepantes, as discussões acesas, intensas. Depois de dissertar sobre a união estável, vou dizer o que penso, dar meu parecer sobre o tema.

II – Conceito de União Estável  

A união estável é uma entidade familiar prevista e protegida na Constituição do Brasil, art. 226, § 3º, tão digna e respeitável quanto a que decorre do casamento. Seus requisitos são apontados no art. 1.723 do Código Civil, que diz: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família“.

Por força de interpretação sistemática e construtiva, o Supremo Tribunal Federal – STF reconheceu a existência de união estável, como entidade familiar, também entre pessoas do mesmo sexo (cf. ADPF 132/RJ e ADIn 4.277/DF, julgamento conjunto, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, decisão unânime, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, em 5 de maio de 2011). Para Marianna Chaves [1] (Homoafetividade e direito: proteção constitucional, uniões, casamento e parentalidade. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2015. p. 268), esta decisão do Excelso Pretório “representou uma genuína quebra de paradigmas e um avanço para nosso direito das famílias“.

Como se vê, essa entidade é uma situação de fato, classificada pelo notável Paulo Lôbo (Famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 154) como “ato-fato jurídico“, que não depende para a sua constituição ou dissolução de formalidades ou solenidades, como o casamento, que, por sua vez, é ato jurídico formal e complexo: inicia-se com um processo de habilitação (CC, arts. 1.525 a 1.532), até chegar ao grande momento da solenidade da celebração (CC, arts. 1.533 a 1.535), seguida do assento do casamento no livro do registrador civil (CC, art. 1.536). Por outro lado, os que vivem numa união estável ostentam convivência more uxorio, estão na posse do estado de casados, formam uma família, espontânea e naturalmente.

Num livro precioso, Virgílio de Sá Pereira (Direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959. p. 90) dá uma lição que se tornou clássica e era avançadíssima para o seu tempo; vou transcrevê-la com admiração e respeito, homenageando o seu autor:

Agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isso? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural.”

Em Portugal, a Lei nº 7/2001, de 11 de maio (atualizada pelas Leis ns. 23/2010 [de 30 de agosto], e 2/2016 [de 29 de fevereiro]), art. 1º, nº 2, conhecida como LUF, enuncia que a união de facto (protegida) é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de direito de família: introdução, direito matrimonial. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. v. I. p. 84), ilustres professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, analisam a noção que a lei apresenta e explicam: “As pessoas vivem em comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mensae et habitationis), como se fossem casadas, apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligadas pelo vínculo formal do casamento“.

III – Elementos        

Destacamos, no citado art. 1.723 do Código Civil brasileiro, elemento objetivo e elemento subjetivo. A união estável só está configurada com a junção desses elementos.

O elemento objetivo, exterior, visível, que se percebe no meio social, que se demonstra inequivocamente aos olhos de todos, é a convivência pública, vale dizer, notória, ostensiva, dos protagonistas do relacionamento afetivo, que não pode ser escondido, clandestino, mantido em segredo. E a convivência deve ser contínua, isto é, firme, sem hiatos ou interrupções marcantes. Requer-se, então, estabilidade. E tem de ser duradoura, prolongada no tempo, não existindo entidade familiar se a relação é recente, efêmera, eventual.

Embora não seja fixado um tempo mínimo para a sua configuração (dois anos, por exemplo, como prevê a lei portuguesa), algum tempo de convivência é fundamental para que a união estável se estabeleça. Nada que tem de ser duradouro pode ser breve ou transitório.

Os parceiros devem viver como se fossem cônjuges, com aparência de casamento, ou, para usar a expressão latina, more uxorio, numa comunhão de vida. Mas não se exige que morem na mesma casa, sob o mesmo teto, embora seja assim na grande maioria dos casos (quod plerumque accidid = o que normalmente acontece). Com sua imensa autoridade na matéria, falando do conceito de união estável em nosso Código Civil, Álvaro Villaça Azevedo (Curso de direito civil: direito de família. São Paulo: Atlas, 2013. p. 159) pondera: “A convivência sob o mesmo teto é, às vezes, evitada para que não se causem traumas em filhos; isso acontece até no casamento, principalmente, em segundas núpcias, em que os filhos do casamento anterior não querem aceitar um novo pai ou uma nova mãe! A Súmula nº 382 do Supremo Tribunal Federal pode até aplicar-se, analogicamente. Ela admite, na união estável, que os companheiros vivam sob tetos diversos“.

Ao lado desse elemento objetivo, vem o elemento subjetivo, interno, moral: a intenção de constituir família, a convicção de que se está criando uma entidade familiar, assumindo um verdadeiro e firme compromisso, com direitos e deveres pessoais e patrimoniais semelhantes aos que decorrem do casamento, o que tem de ser aferido e observado em cada caso concreto, verificados os fatos, analisados o comportamento, as atitudes, consideradas e avaliadas as circunstâncias.

IV – Contrato de Convivência    

 No Brasil, em segmentos sociais mais abastados, pessoas que se estão envolvendo num relacionamento amoroso, preocupadas em bem definir, sobretudo, os aspectos econômicos de sua vida afetiva, estabelecem direitos, deveres e regras bem explícitas para o caso de ruptura. Alguns grandes escritórios de advocacia se especializaram na elaboração desses instrumentos.

Já vi alguns contratos – até celebrados por escritura pública! – em que se afirma que as partes, naquela data e por aquele instrumento, estão criando uma união estável. Trata-se de erro gravíssimo. A entidade familiar, como situação de fato, é instituída pela convivência, pela vida comum, more uxorio, como disse acima, e esse relacionamento tem de ser público, contínuo, duradouro, o que pressupõe, logicamente, juridicamente, o transcurso de algum tempo, além do elemento intencional. O contrato não tem o poder de instantaneamente, por si só, constituir uma união estável. O que o contrato pode conter é o testemunho, a afirmação da existência da união estável, até para efeito de prova, mencionando-se que estão atendidos os requisitos previstos no art. 1.723 do Código Civil, ficando autorizadas as partes a regulamentar direitos e deveres – dentro dos limites da autonomia privada – e estabelecer um regime de bens, se escolherem outro, que não o da comunhão parcial (CC, art. 1.725).

A união estável é uma instituição de formação paulatina, por atos sucessivos. Então, é admissível a celebração de um contrato para disciplinar juridicamente a relação que os companheiros já constituíram, se foram observados os requisitos legais.

A respeito de contratos que pretendem criar uma união estável, como se fosse uma segunda forma de casamento, Francisco Cahali (Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 43) enuncia que conferir à união livre roupagem jurídica previamente confeccionada contraria a natureza do instituto, que existe no plano fático e de sua verificação são traçados efeitos jurídicos. Querer transformar o fato jurídico em ato jurídico é, sem dúvida, subverter a essência desta figura, arremata o autor.

V – Deveres

O art. 1.566 do Código Civil indica os deveres de ambos os cônjuges: “I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos“. Por sua vez, o art. 1.724, integrante do título “Da União Estável“, dispõe: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência e de guarda, sustento e educação dos filhos“. É profundo o cunho moral desta norma. No dever de lealdade está compreendida ou implícita a fidelidade, e não vejo como, numa relação afetiva, com a dignidade de entidade familiar, os conviventes tenham de ser leais, sem que, até antes, sejam reciprocamente fieis (cf. STJ, REsp 1.157.273/RN, Relª Minª Nancy Andrighi, DJe 07.06.2010). A lealdade é gênero de que a fidelidade é espécie.

No direito brasileiro, é inequívoca a equiparação das normas que indicam os deveres dos cônjuges, no casamento, e dos companheiros, na união estável. Basta ler, respectivamente, os arts. 1.566 e 1.724 do Código Civil.

O art. 1.672 do Código Civil português prevê: “Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência“. A LUF (Lei da União de Facto) não tem um preceito correspondente a este. Os membros da união de facto não estão sujeitos aos deveres que vinculam reciprocamente os cônjuges. Jorge Duarte Pinheiro, eminente professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (O direito da família contemporâneo. 4. ed. Lisboa: AAFDL, 2015. p. 661), assegura que os membros da união de facto estão naturalmente vinculados ao dever geral de respeito, “que é mais intenso sempre que existe uma relação de intimidade, proximidade ou dependência entre as pessoas“, entretanto, a fidelidade, a coabitação, a cooperação e a assistência são, quando muito, deveres morais ou éticos dos membros da união de facto, concluindo que, em comparação com o casamento, a eficácia civil da união de facto protegida é muito escassa.

A união estável, no Brasil, é um tema complexo, abundante, não só pelo minucioso tratamento legislativo que recebe, com enumeração de importantes efeitos durante a vida dos companheiros e por ocasião da morte de um deles, como pela atenção e pelo interesse que desperta na doutrina, com um considerável número de boas obras, de antigos e jovens civilistas, e da jurisprudência que se tem produzido sobre o assunto, em alguns casos com grande ativismo, colmatando lacunas, atendendo a reclamos sociais, suprindo alguma inércia dos legisladores.

Muito longe de pretender esgotar a matéria, vou apresentar, adiante, alguns pontos importantes e aspectos controvertidos da união estável.

VI – Uso do Sobrenome  

Diz o art. 1.565, § 1º, do Código Civil brasileiro que “qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro“. O Código Civil português regula a matéria no art. 1.677, nº 1: “Cada um dos cônjuges conserva os seus próprios apelidos, mas pode acrescentar-lhes apelidos do outro até ao máximo de dois“.

Nosso Código Civil não tratou a questão do sobrenome na união estável. Poderia ter previsto isso, como na fórmula que já sugeri: “Comprovada a união estável, qualquer dos companheiros, querendo, poderá acrescentar ao seu o sobrenome do outro“. Simples assim.

Em Portugal, igualmente, a Lei da União de Facto (LUF) não prevê que um dos membros da união de facto acrescente aos seus os apelidos do outro.

Na ordem jurídica brasileira, todavia, há muito tempo, antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988 e do próprio Código Civil, que é de 2002 e entrou em vigor no ano de 2003, a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), art. 57, § 2º, previa: “A mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das partes ou de ambas“. Nos §§ 3º e 4º do aludido art. 57, apareciam outras exigências para que o pedido da averbação do patronímico do companheiro fosse admitido.

É difícil fazer uma interpretação construtiva, democrática, igualitária e desconsiderar tantos requisitos exorbitantes, anômalos, ultrapassados, constantes de uma lei que foi pensada e feita noutra época e circunstâncias bem diferentes das presentes, para autorizar uma companheira a acrescentar ao seu o sobrenome do companheiro, que é o mais comum, embora a hipótese inversa deva ser admitida.

Dada a passividade do legislador, que não interveio para superar o impasse, atualizando o dispositivo legal, e diante das críticas e das lições da doutrina, a jurisprudência apareceu para resolver o problema. O Superior Tribunal de Justiça – STJ, no REsp 1.206.656/GO, 3ª T., Relª Minª Nancy Andrighi, j. 16.10.2012, reconheceu a imprestabilidade do art. 57, § 2º, da Lei nº 6.015/73 para balizar os pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união estável, situação completamente distinta daquela para a qual foi destinada a referida norma, o que reclama aplicação analógica das disposições específicas do Código Civil relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, e decidiu que é possível o pleito de adoção do sobrenome dentro de uma união estável, em aplicação analógica do art. 1.565, § 1º, do Código Civil, “devendo-se, contudo, em atenção às peculiaridades dessa relação familiar, ser feita sua prova documental, por instrumento público, com anuência do companheiro cujo nome será adotado“.

VII – Impedimentos – Pessoa Casada, mas Separada de Fato    

O art. 1.723, § 1º, do Código Civil brasileiro prevê: “A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente“.

Conforme o aludido art. 1.521, não podem casar: “I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II – os afins em linha reta; III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte“.

Pelo visto, a união estável como entidade familiar não se pode formar se existirem impedimentos matrimoniais. O art. 1.727 do Código Civil estatui: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato“.

Todavia, o art. 1.723, § 1º, apresenta uma exceção importantíssima, admitindo a possibilidade de constituição de união estável se o membro da relação for casado, mas estiver separado de fato ou judicialmente.

Em Portugal, o art. 2º, letra c, da LUF diz que impede a atribuição de direitos e benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto, o casamento não dissolvido, “salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens“. Não se permite, como no Brasil, que a pessoa casada, mas simplesmente separada de fato do cônjuge, constitua união de facto protegida.

VIII – Regime de Bens      

O art. 1.725 do Código Civil brasileiro estabelece que, na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. Esse regime vem regulado nos arts. 1.658 a 1.666 do Código Civil e é o regime legal supletivo (CC, art. 1.640, caput). Em Portugal, conforme o art. 1.727 do Código Civil, o regime de bens supletivo é o da comunhão de adquiridos, e a LUF não estabelece que se aplicam à união de facto as regras do casamento a respeito do regime de bens. Se os membros da união de facto estiverem de acordo, podem celebrar um contrato de coabitação para regular os aspectos patrimoniais do seu relacionamento, observados os princípios de ordem pública. De resto, os efeitos patrimoniais da união de facto regem-se pelo direito comum, pelas normas do direito obrigacional e real.

IX – Separação Obrigatória de Bens   

O art. 1.641 do Código Civil brasileiro aponta os casos em que é obrigatório o regime de bens no casamento, sendo o mais importante – e controvertido – o do inciso II do citado art. 1.641, que menciona o casamento da pessoa maior de 70 anos. O Superior Tribunal de Justiça – STJ mandou aplicar à união estável o regime da separação obrigatória se for pessoa idosa algum dos companheiros (cf. REsp 646.259/RS, 4ª T., Rel. Min. Luís Felipe Salomão; e REsp 1.090.722/SP, 3ª T., Rel. Min. Massami Uyeda). Do ponto de vista doutrinário, manifestei-me contrário a esta extensão e da utilização de analogia para que o art. 1.641 do Código Civil, que é norma restritiva de direitos e de diminuição da autonomia privada, seja aplicável à união estável. Conforme o antiquíssimo brocado romano: exceptiones sunt strictissimae interpretationis (interpretam-se as exceções estritissimamente).

X – Presunção de Paternidade

O art. 1.597 do Código Civil brasileiro consagra a presunção da paternidade no casamento, conforme a fórmula multissecular de Paulo (Digesto, 2, 4, 5) – pater is est, quem nuptiae demonstrant. Esta presunção não constou na legislação brasileira no que pertine à união estável. Entretanto, o STJ (REsp 1.194.059/SP, 3ª T., Rel Min. Massami Uyeda, j. 06.11.2012) decidiu que a presunção pater is est (CC, art. 1.597) aplica-se à união estável.

A LUF não tratou da filiação diante da união de facto, mas o Código Civil português tem o art. 1.871, nº 1, al. c, com a redação do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de novembro, que institui uma presunção de paternidade (juris tantum) do filho concebido na constância da união de facto.

Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (ob. ev. cit., p. 101, nota 62) observam que esta presunção é diferente da do art. 1.826, que se dirige ao filho nascido ou concebido na constância do matrimônio, e é um modo de estabelecimento da paternidade, enquanto que a presunção a respeito do filho de pessoas que vivem em união de facto ou concubinato duradouro só vale para, em ação de investigação de paternidade, inverter o ônus da prova da filiação, estabelecendo-se a paternidade por decisão judicial, sendo esta uma significativa diferença de tratamento entre os filhos nascidos do casamento e fora do casamento.

XI – Adoção por Casal Homossexual

A adoção conjunta por casal homossexual vem sendo admitida, no Brasil, pela jurisprudência. O STJ (REsp 889.852/RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 27.04.2010) manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 05.04.06), que permitiu a adoção de menores por casal homossexual.

Em Portugal, embora a legislação admitisse a união de facto homossexual, não era permitida, todavia, a adoção conjunta por casais homossexuais. Muitos vislumbravam nisso um paradoxo, um retrocesso. Atualmente, no art. 7º da LUF, com redação introduzida pela Lei nº 2/2016, de 29 de fevereiro, é reconhecido o direito de adoção a todas as pessoas que vivam em união de facto.

XII – Filiação – Guarda de Filhos           

As normas do Código Civil brasileiro sobre filiação aplicam-se aos que vivem em união estável, inclusive, as que regulam o poder familiar (arts. 1.630 e ss.). Do mesmo modo, as regras de parentesco e afinidade (arts. 1.591 e ss.) estendem-se aos companheiros. Ou seja, companheiro também tem sogra, e uma sogra é para sempre, afirmando o art. 1.595, § 2º, que na linha reta a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável.

Enquanto persiste a vida em comum e permanece a união estável, os companheiros, num plano de igualdade, exercem o dever de guarda, sustento e educação dos filhos (Código Civil brasileiro, arts. 1.631 e 1.724). Na falta ou no impedimento de um dos pais, o outro exercerá o poder familiar, com exclusividade (art. 1.631, caput, in fine). Havendo dissolução da união estável, a guarda dos filhos será unilateral ou compartilhada, consoante os arts. 1.583 e ss. do Código Civil brasileiro. O art. 1.911 do Código Civil português regula o exercício das responsabilidades parentais quando os progenitores vivam em condições análogas às dos cônjuges.

                                  

XIII – Alimentos      

Por efeito da união estável, da entidade familiar que foi constituída, há o direito/dever de alimentos entre companheiros (Código Civil brasileiro, arts. 1.694 e ss.). O art. 1.708 desse Código, em norma de profundo conteúdo moral, determina a extinção da obrigação alimentar quando o alimentado contrair casamento, constituir união estável ou praticar concubinato, ou se tiver procedimento indigno em relação ao devedor dos alimentos.

O art. 3º da LUF, que indica os efeitos da união de facto, reconhece ao membro sobrevivo da união de facto protegida o direito às seguintes prestações em decorrência da morte do outro: pensão de sobrevivência e subsídio por morte; prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional; pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país.

Tirante a proteção da casa de morada da família (que volta a ser mencionada nos arts. 4º e 5º), o art. 3º da LUF trata de matérias que estão no âmbito do direito administrativo, do direito do trabalho, do direito fiscal, da segurança social, e não do direito civil.

Mas está previsto um efeito importante da extinção por morte da união de facto em outro diploma legislativo: o Código Civil português, art. 2.020, nº 1 (dispositivo introduzido pela Reforma de 1977, com redação atual dada pela Lei nº 23/2010, de 30.08), edita que o membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido. Note-se: em vida dos membros da união de facto, se esta se extingue por ruptura, por exemplo, não é previsto o direito de alimentos, reciprocamente, a não ser que as partes tenham celebrado um negócio jurídico prevendo a obrigação alimentar, usando da faculdade do art. 2.014, nº 1, do Código Civil português.

XIV – Sucessão Hereditária       

O art. 1.790 do Código Civil brasileiro regula a sucessão hereditária entre companheiros e as soluções que apresenta são altamente controvertidas. Por exemplo: o companheiro sobrevivente só participará da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, e concorre até com os parentes colaterais do defunto, cabendo a esses familiares do falecido (ainda que seja um longínquo primo, um tio-avô do de cujus) 2/3 da herança, o que é de uma absurdez inominável. Logo nos primeiros escritos que dediquei ao tema, assegurei que o art. 1.790 do Código Civil, além de retrógrado, passadista, discriminatório, é perdidamente inconstitucional.

Esse entendimento foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento do RE 878.694/MG, com repercussão geral, que teve por objeto a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. O STF declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, e a decisão recebeu uma modulação, para ressalvar que não se aplica aos casos já resolvidos, por sentença ou extrajudicialmente (por escrituras públicas de inventário e partilha), e que à sucessão hereditária entre companheiros serão aplicadas as normas da sucessão entre cônjuges.

Em Portugal, se a união de facto protegida se extingue com a morte de um dos membros do relacionamento afetivo, o outro não é considerado herdeiro, beneficiando-se, apenas, de alguns legados legais. Jorge Duarte Pinheiro (ob. cit., p. 677) observa que as consequências da dissolução da união de facto estão muito aquém das que decorrem da dissolução por morte do vínculo conjugal. Aliás, este autor garante que, até agora, o direito português tem sido o mais tímido dos direitos de língua portuguesa no reconhecimento de efeitos jurídicos à união de facto.

Nos termos do art. 5º, nº 1, da LUF, em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio. O nº 2 deste artigo prevê que, no caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no número anterior são conferidos por tempo igual ao da duração da união.

XV – Direito Real de Habitação

Há algum tempo, publiquei um pequeno livro (Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. Cap. II. n. 4. p. 25) e observei que o Código Civil brasileiro, seguindo uma tendência universal, melhorou substancialmente a posição do cônjuge na sucessão legítima, considerando-o, inclusive, herdeiro necessário (ou legitimário, ou reservatário), juntamente com os descendentes e os ascendentes. E o cônjuge é um herdeiro necessário privilegiado, pois concorre com os descendentes e com os ascendentes do de cujus. Portanto, ora está na primeira classe dos herdeiros legítimos – concorrendo com os descendentes -, ora na segunda classe sucessória, concorrendo com os ascendentes, e ocupa, sozinho, a terceira classe dos sucessíveis, e isso para não falar em outros benefícios que recebe da ordem jurídica brasileira.

Registre-se, por oportuno, que o mesmo fenômeno, quanto ao cônjuge sobrevivo, ocorreu em Portugal. Inocêncio Galvão Telles, autor do Anteprojeto do Livro do Código Civil sobre Direito das Sucessões, afirma que o cônjuge, dentre os sucessíveis legítimos, “deu um salto espetacular“. José de Oliveira Ascensão reconhece que a posição sucessória do cônjuge saiu “amplamente fortalecida“. Jorge Duarte Pinheiro acentua que o cônjuge “ocupa um lugar cimeiro“. Carlos Pamplona Corte-Real depõe que a alteração mais significativa introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77 concerne à posição do cônjuge sobrevivo como sucessível legitimário.

O Código Civil brasileiro anterior, art. 1.611, § 2º, numa inovação trazida pela Lei nº 4.121/62 – Estatuto da Mulher Casada, instituiu o direito real de habitação para o cônjuge sobrevivente. O Código Civil em vigor mantém a solução, estatuindo, no art. 1.831: “Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar“. É inequívoco o caráter assistencial desse direito. Quer-se manter o status, as condições de vida do viúvo ou da viúva, garantir-lhe o teto, a morada.

Porém, o art. 1.790 do Código Civil brasileiro, que disciplina a sucessão hereditária dos companheiros, não menciona o direito real de habitação, que, não obstante, era conferido pelo art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996.

Parece que o Código Civil, num “silêncio eloquente” (beredtes Schweigen, na doutrina alemã), não quis conferir o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente. Mas prevaleceu na doutrina e em algumas decisões judiciais uma interpretação mais benéfica, tipicamente humanitária, admitindo o direito real de habitação para o companheiro sobrevivo. Por sugestão dos professores Gustavo Tepedino e Ana Luiza Nevares, na I Jornada de Direito Civil, patrocinada pelo Conselho de Justiça Federal/Centro de Estudos Judiciários, foi aprovado o Enunciado nº 117, do teor seguinte: “Art. 1.831. O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei nº 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88“. Tudo faz crer que o dispositivo invocado é o art. 5º da Constituição Federal e provavelmente por engano na digitação apareceu o art. 6º. O art. 5º da Carta Magna é o que proclama que todos são iguais perante a lei.

A jurisprudência do STJ pacificou-se no sentido de que, mesmo diante do vigente Código Civil, tem o companheiro sobrevivente direito real de habitação (cf. REsp 1.156.744/MG, 4ª T., Rel. Min. Marco Buzzi, j. 09.10.2012; REsp 1.220.838/PR, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 19.06.2012; AgRg no AREsp 671.118, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 03.12.2015).

XVI – Extinção        

Extingue-se a união estável, simplesmente, com o fim da convivência, com a falência do projeto existencial, com o término do ânimo de formação ou continuação de uma família, enfim, com a separação de fato, que, no geral dos casos, é um momento de grande dor e sofrimento.

Como ensina Maria Berenice Dias (Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 264), a união estável se constitui e se extingue sem a chancela estatal, ao contrário do que ocorre com o casamento, que depende do amém do Estado, quer para existir, quer para ter um fim.

Pode haver necessidade e conveniência, todavia, de um acertamento formal dos ex-companheiros, para resolver questões de partilha de bens, pagamento de pensão, guarda de filhos e outras questões existenciais e patrimoniais.

Euclides de Oliveira (União estável: do concubinato ao casamento. 6. ed. São Paulo: Método, 2003. p. 244) pondera que também pode haver interesse na homologação judicial de acordo, especialmente quando envolva disposições sobre guarda de filhos, pensão alimentar e partilha dos bens adquiridos pelo esforço conjunto, e a via judicial estará aberta, mediante ação declaratória de reconhecimento de união estável e da sua dissolução, com fixação dos efeitos jurídicos da extinção da entidade familiar.

O STJ já decidiu uma questão interessante: admitiu que a viúva tem legitimidade para promover ação declaratória de inexistência(!) de união estável do seu falecido marido contra suposta companheira (REsp 328.297/RJ, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 16.10.01).

O novo Código de Processo Civil – CPC, no art. 733, cuida do divórcio consensual e da extinção consensual da união estável e diz que, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731. Flávio Tartuce (O novo CPC e o direito civil. 2. ed. São Paulo: Gen/Método, 2016. p. 399) assinala que o novo CPC teve a feliz opção de equalizar expressamente a união estável ao casamento em vários de seus preceitos, “o que trará consequências para o modo como a comparação dessas entidades familiares é feita no âmbito do direito material“.

Em Portugal, o art. 8º da LUF indica os casos em que se dissolve a união de facto: a) com o falecimento de um dos membros; b) por vontade de um dos seus membros; c) com o casamento de um dos membros. A dissolução por vontade de um dos seus membros apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dependam dela.

XVII – Namoro Qualificado – Distinção da União Estável  

Esforcei-me ao máximo, até este ponto, para apresentar-lhes, em linhas gerais, com maior simplicidade e a preocupação de ser didático, o panorama da união estável no Brasil. A seguir, vou expor meu entendimento sobre a figura que tem sido denominada namoro qualificado.

Nem sempre é fácil distinguir essa situação – a união estável – de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima – inclusive, sexual -, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar – e muito – a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de “namoro qualificado“, os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem – ou ainda não querem – constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro – mesmo do tal namoro qualificado -, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo.

O que a Constituição (CF, art. 226, caput e § 3º) e a lei ordinária (Código Civil, art. 1.723) protegem não é a simples relação afetiva ou o mero envolvimento amoroso entre duas pessoas, mas a entidade familiar que construíram, e se realmente fundaram uma união estável, observados os pressupostos legais para isso. O namoro, mesmo o namoro duradouro, o namoro qualificado, não tem efeitos jurídicos, enquanto namoro. Não gera repercussão patrimonial.

Essa expressão – namoro qualificado – tem sido utilizada na doutrina e na jurisprudência. Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (Curso de direito de família. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 374) observam que, para a constituição de união estável, o casal deve manifestar a sua vontade de constituir família, vivendo nesse sentido como se casado fosse, o que significa dizer que deve haver assistência moral e material recíproca irrestrita, esforço conjunto para concretizar sonhos em comum, participação real nos problemas e desejos do outro, etc. No namoro qualificado, por outro lado, embora possa existir um objetivo futuro de constituir família, não há ainda essa comunhão de vida: “Apesar de se estabelecer uma convivência amorosa pública, contínua e duradoura, um dos namorados, ou os dois, ainda preserva sua vida pessoal e sua liberdade. Os seus interesses particulares não se confundem no presente, e a assistência moral e material recíproca não é totalmente irrestrita“.

No Recurso Especial 1.454.643/RJ (Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 03.03.2015), o STJ, 3ª T., discutiu se havia entre as partes litigantes uma união estável ou um mero namoro qualificado, e, conforme a decisão, seria ou não feita a divisão de um apartamento adquirido apenas em nome do réu. Reconheceu-se, por unanimidade, que houve, na verdade, um namoro qualificado, que tem, no mais das vezes, como único traço distintivo da união estável a ausência da intenção presente de constituir uma família. Destaco os pontos mais importantes da ementa:

2. Não se denota, a partir dos fundamentos adotados, ao final, pelo Tribunal de origem (por ocasião do julgamento dos embargos infringentes), qualquer elemento que evidencie, no período anterior ao casamento, a constituição de uma família, na acepção jurídica da palavra, em que há, necessariamente, o compartilhamento de vidas e de esforços, com integral e irrestrito apoio moral e material entre os conviventes. A só projeção da formação de uma família, os relatos das expectativas da vida no exterior com o namorado, a coabitação, ocasionada, ressalta-se, pela contingência e pelos interesses particulares de cada qual, tal como esboçado pelas instâncias ordinárias, afiguram-se insuficientes à verificação da affectio maritalis e, por conseguinte, da configuração da união estável.           

2.1. O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado ‘namoro qualificado’ -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída.           

2.2. Tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício), especialmente se considerada a particularidade dos autos, em que as partes, por contingências e interesses particulares (ele, a trabalho; ela, pelo estudo) foram, em momentos distintos, para o exterior, e, como namorados que eram, não hesitaram em residir conjuntamente. Este comportamento, é certo, revela-se absolutamente usual nos tempos atuais, impondo-se ao direito, longe das críticas e dos estigmas, adequar-se à realidade social.           

  1. Da análise acurada dos autos, tem-se que as partes litigantes, no período imediatamente anterior à celebração de seu matrimônio (de janeiro de 2004 a setembro de 2006), não vivenciaram uma união estável, mas, sim, um namoro qualificado, em que, em virtude do estreitamento do relacionamento, projetaram para o futuro – e não para o presente – o propósito de constituir uma entidade familiar, desiderato que, posteriormente, veio a ser concretizado com o casamento.”

O pressuposto subjetivo, a convicção de que se está constituindo uma família, vivendo numa entidade familiar, deve ser comum aos conviventes. Se apenas um deles entende assim, ou só um está convicto disso, o elemento não está cumprido, pois não pode ser unilateral. Mas, como se trata de pressuposto interno, anímico, psicológico, é de verificação tormentosa, intrincada, e de dificílima comprovação. Maria Berenice Dias, com a experiência de Desembargadora e do alto de sua estatura de jurista consagrada, depõe: “Não é fácil distinguir união estável e namoro, que se estabelece pelo nível de comprometimento do casal, sendo enorme o desafio dos operadores do direito para estabelecer sua caracterização” (Manual de direito das famílias, cit., p. 261). Para resolver a questão, com suas sutilezas, dificuldades, o magistrado, além de quaisquer meios de prova, pode recorrer à técnica da ponderação. O Enunciado nº 17 do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, aprovado em outubro de 2015, seguindo proposta de Flávio Tartuce, prevê: “A técnica de ponderação, adotada expressamente pelo art. 489, § 2º, do Novo CPC, é meio adequado para a solução de problemas práticos atinentes ao Direito das Famílias e das Sucessões“.

XVIII – Legislação Excessiva                            

Muitos autores criticam e apontam os graves problemas e os excessos causados por uma legislação abundante e expansiva a respeito de união estável, regulamentando todos os aspectos, estabelecendo variados efeitos pessoais e consequências de ordem patrimonial a esse relacionamento afetivo entre os companheiros. Em Portugal, recentemente (1º e 2 de junho de 2016), durante o memorável encontro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e a Universidade de Coimbra, cuja organização cultural, pelo lado brasileiro, coube ao professor José Fernando Simão, e pelos portugueses, ao professor Guilherme de Oliveira, fui indicado (com a professora Giselda Hironaka), fiz uma exposição sob o título A União Estável Brasileira e a União de Facto Portuguesa e mencionei que a chamada união de facto tem efeitos bem reduzidos, infinitamente menores, mais modestos do que os consagrados na ordem jurídica brasileira. Mesmo assim, Hugo Cunha Lança (Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n. 24, Porto, Portugal, 2014, p. 179-232) proclama, advertindo: “Dormir com alguém, acordar com o Estado“. O genial João Baptista Villela (Repensando o direito de família. Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, coordenação de Rodrigo da Cunha Pereira, Del Rey, Belo Horizonte, 1999, p. 23) observa: “Especialmente grave tem sido nos últimos anos o furor regulamentatório da República em matéria das chamadas uniões estáveis. Não há na Constituição uma só palavra de onde se possa derivar a suposta necessidade de submeter essas formações espontâneas à cravelha da lei. O que quis e quer a Constituição é, por óbvias razões de justiça social, estender a tais construções informais o manto protetor da lei, especialmente os benefícios da seguridade social“.

Num artigo doutrinário instigante, cujo título já antecipa o pensamento do autor: O Paradoxo da União Estável: um Casamento Forçado (Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, Lex Magister/IASP, v. 2, p. 5-21, 2014), Mário Delgado protesta, também, quanto ao excesso de regulamentação da união estável, opinando: “Não compete ao legislador, nem muito menos à jurisprudência, regulamentar a união estável a ponto de atribuir-lhe direta e autoritariamente os efeitos da sociedade conjugal, o que implica, na prática, transformar a união estável em casamento contra a vontade dos conviventes, aos quais estar-se-ia impondo um verdadeiro ‘casamento forçado’“.

XIX – Contrato de Namoro – Limites    

Se os que vivem, conscientemente, nessa entidade familiar já se sentem sufocados com a minuciosa normatização de suas vidas, imaginem as preocupações, a aflição e o medo dos que assumem um relacionamento afetivo de simples namoro e têm o justo receio de que essa situação possa ser confundida com a da união estável…

Diante disso, pela insegurança que envolve o assunto, para evitar riscos e prejuízos que podem advir de uma ação com pedidos de ordem patrimonial, alegando-se a existência de uma união estável, com o rol imenso de efeitos patrimoniais que enseja, quando, de fato e realmente, só havia namoro, sem maior comprometimento, algumas pessoas combinam e celebram o que se tem denominado contrato de namoro. Já se vê que não é acordo de vontades que tem por objeto determinar, singelamente, a existência de um namoro, que, se assim fosse, nem contrato, tecnicamente, seria. Mas, deixando de lado a questão terminológica e indo direto ao ponto, tal avença, substancialmente, é uma declaração bilateral em que pessoas maiores, capazes, de boa-fé, com liberdade, sem pressões, coações ou induzimento, confessam que estão envolvidas num relacionamento amoroso, que se esgota nisso mesmo, sem nenhuma intenção de constituir família, sem o objetivo de estabelecer uma comunhão de vida, sem a finalidade de criar uma entidade familiar, e esse namoro, por si só, não tem qualquer efeito de ordem patrimonial ou conteúdo econômico.

Sintetizando: as partes declaram, expressa e inequivocamente, sem conotação de fraude, intuito dissimulatório ou ilicitude, observados os princípios de probidade e boa-fé, e sem violar as normas imperativas, a ordem pública e os bons costumes, a inexistência de uma relação jurídica. Em que lei há uma proibição de que isso seja feito? E se não há proibição, em nome do liberalismo, da autonomia privada, da democracia, vigora o secular princípio: permittitur quod non prohibetur (tudo o que não é proibido é permitido).

A melhor doutrina abona esse entendimento. José Afonso da Silva (Comentário contextual à Constituição. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 83), comentando o art. 5º, II, da Carta Magna, define: “A liberdade só pode ser condicionada por um sistema de legalidade legítimo”. Dissertando sobre o princípio da legalidade, Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 94) enuncia: “Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autoriza“.

A meu ver, não se trata de “mercantilizar o envolvimento” ou de “monetarizar o afeto“, como alguns doutrinadores criticam (inclusive, a eminente mestra Maria Berenice Dias, no Manual, antes citado), mas, apenas, de identificar o relacionamento amoroso que mantém, deixar clara e bem definida a extensão deste, consignar e esclarecer que, pelo menos no momento presente, não passa de namoro. Quer-se prevenir e evitar a alegação da existência de efeitos materiais que podem ser de grande monta, de altíssimo valor.

Advirta-se, entretanto: se, ao contrário do que informa a declaração que emitiram, a união estável entre eles está configurada, ou, posteriormente, vem a se constituir, é isso que vale e tem efeito, e não o que se declarou no chamado contrato de namoro.

É claro que esse contrato não vale e não tem efeito se prescrever, por exemplo: “Ainda que se verifiquem os elementos previstos no art. 1.723 do Código Civil, não estará configurada a união estável entre os declarantes“. Por força de normas de ordem pública, a entidade familiar estará constituída, a despeito do contrato assinado pelas partes.

Como também não vale um contrato que proclame a existência de uma união estável, sem que os requisitos desta estejam realmente presentes. Infelizmente, acordos desse tipo estão se multiplicando, para obter vantagens econômicas indevidas – pensões, seguros, partilha de bens, herança, etc.

[1] Mestra pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.