A TUTELA JURÍDICA DA TRANSEXUALIDADE NO BRASIL
Marianna Chaves
Fernanda Leão Barretto
Rodolfo Pamplona Filho
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Despatologização das Identidades Trans. 3 Sobre o Direito à Liberdade e à Identidade Pessoal e ao Nome. 4 O Direito à Cirurgia de Transgenitalização. 5 O Direito à Mudança do Prenome e do Sexo no Registro Civil com ou sem Cirurgia. 6 Considerações Finais. 7 Referências.
1 Introdução
Menina ou menino?
É essa sempre a pergunta clássica que se faz aos pais depois de um exame de ultrassonografia ou após o nascimento da sua prole.
O status jurídico de um indivíduo invariavelmente inclui o seu sexo, que acarreta direitos e tutela específica em algumas circunstâncias, como ocorre com as mulheres no que tange ao direito à especial proteção contra a violência doméstica, conquista espelhada na Lei Maria da Penha.
O binarismo que singra a humanidade entre homens e mulheres desde o começo dos tempos, e que só na contemporaneidade começou a ser mais seriamente investigado e questionado, importa a definição, para a existência do indivíduo, de coisas tão distintas quanto as roupas que veste, o banheiro que usa em espaços públicos, os brinquedos a que tem acesso na infância, a idade mínima para se aposentar e a imposição legal do serviço militar.
O fato é que o sexo sempre foi e ainda é considerado, ao menos pelo senso comum, um elemento natural e, a priori, inalterável. Destarte, compõe o corpo de dados inflexíveis ou imutáveis da identidade da pessoa [1]. A terminologia transexual surgiu no ano de 1949, utilizada por Caul Dewlz, e sua utilização no meio médico se propagou em virtude do prestígio de Harry Benjamin, que publicou, no ano de 1966, a obra The Transsexual Phenomenon [2], classificando-a como uma disforia de gênero [3]. A partir das décadas de 1960 e 1970, a transexualidade ganhou mais espaço com o surgimento de associações internacionais que passaram a articular o discurso teórico com as práticas reguladoras dos corpos [4].
Pode-se afirmar que, no caso da transexualidade, a questão é predominantemente psicológica, já que o indivíduo não se aceita como é, não acata seu sexo [5], se identifica com o sexo contrário, sendo considerado, assim, um hermafrodita psíquico, um arrendatário no próprio corpo, cuja solução, em regra, para seu sofrimento seria a cirurgia de reversão sexual, instrumento capaz de fazer com que seu corpo reflita exteriormente o que intimamente ele é e deseja ser [6]. Psicanalistas dos EUA julgam a cirurgia de adequação do sexo ou de redesignação sexual “como a forma de buscar a felicidade para um invertido condenado pela anatomia” [7].
Entretanto, note-se que atualmente existem muitos transexuais que, embora asseverem com firmeza se sentir pertencentes ao sexo oposto, não sentem repulsa total por seus órgãos sexuais e simplesmente não desejam se submeter à cirurgia de redesignação sexual ou, ainda, não podem realizar a cirurgia por questões médicas, falta de condições financeiras e objeções religiosas, dentre outros motivos. Aliás, boa parte das leis e das normas reguladoras que dizem respeito a essa matéria já vem se afastando da ideia de uma obrigatoriedade da cirurgia de ablação sexual para que a pessoa trans possa ter o seu nome e o seu sexo registral modificado [8]. E o Judiciário brasileiro acompanhou de modo firme e claro esse entendimento quando, em 9 de maio de 2017, no julgamento do RE 1.626.739/RS, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu acórdão – que será doravante minudentemente analisado -, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, no qual decidiu que a identidade psicossocial é a verdadeira identidade do indivíduo e, portanto, se em rota de colisão com a identidade biológica, deve prevalecer sobre esta, não podendo a intervenção médica ser exigida para que a pessoa transexual tenha o direito de alterar seu gênero e seu nome em documentos públicos.
A transexualidade, portanto, é caracterizada por um contundente conflito entre corpo e identidade de gênero, que usualmente abarca um inabalável e visceral desejo de ajustar o corpo hormonal e/ou cirurgicamente ao gênero pretendido. A identidade de gênero deve ser compreendida como a consciência íntima de uma pessoa pertencer ao gênero feminino ou ao gênero masculino [9].
Importa também distinguir os termos “transgênero” e “transexual“. Pessoas transgêneras são aqueles indivíduos cujo gênero subjetivo não se alinha com seu sexo objetivo. “Transgêneros” é uma categoria “guarda-chuva“, um termo abrangente que inclui os transexuais como um subgrupo único. Os transexuais são indivíduos transgêneros que sentem que seu sexo físico é tão divergente do seu sexo mental a ponto de desejarem promover as alterações físicas para alinhar seu sexo com seu gênero, de forma a sentir que seu corpo está adequado, harmonizado com a sua mente [10].
Diante dessa perspectiva, o presente trabalho se propõe a apresentar um panorama sobre a tutela jurídica dos transexuais em território brasileiro, nomeadamente em relação ao acesso às cirurgias de redesignação sexual e à necessidade – ou não – dessas cirurgias para a mudança de nome e sexo no registro civil das pessoas trans.
2 A Despatologização das Identidades Trans
Para a Associação Paulista de Medicina, transexual [11] é aquele com identificação sexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de transformá-los [12]. Em resumo, transexualidade [13] se caracteriza pela sensação de pertencer ao sexo oposto àquele a que física e juridicamente pertence, comportando o desejo de modificar a identidade sexual e igualmente adaptar a anatomia ao sexo psicológico ao qual se acredita pertencer, mediante, em regra, tratamentos hormonais e/ou operações de mutilação e/ou transformação de órgãos [14], mas esses dois processos não são indispensáveis, como se verá a seguir.
Afirma-se que a identidade de gênero pode ser suprimida, mas não alterada. Existe uma quantidade crescente de estudos científicos que indicam que a incongruência entre gênero e sexo estaria relacionada com a forma como a estrutura do cérebro que regula o gênero se desenvolve em resposta aos hormônios sexuais no útero materno. Todavia, tal fato não significa que os transexuais possuam deformidades ou anomalias cerebrais, mas apenas significa que o cérebro se desenvolveu sob diferentes influências hormonais em relação ao resto do corpo, o que acarretou na referida discordância [15].
A identidade de gênero possui, portanto, um forte componente biológico e genético e é – ou deveria ser – o elemento mais poderoso, determinante do sexo de uma pessoa. Todos possuem identidade de gênero, não apenas as pessoas trans. A identidade de gênero pode ser congruente ou incongruente com a determinação médica do sexo, feita no momento do nascimento, que ainda é baseada na aparência da genitália externa e/ou no exame de cariótipo do recém-nascido. Ser um transgênero é resultado de uma diversidade natural e parte de um fenômeno humano culturalmente diversificado, que não deve ser reputado como inerentemente negativo ou patológico [16].
O Conselho Federal de Medicina estabelece que a definição de transexualidade [17] obedecerá, no mínimo, aos critérios a seguir: a) desconforto com o sexo anatômico natural; b) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; c) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; e d) ausência de transtornos mentais [18].
Recentemente, nos EUA, a Associação Americana de Psiquiatria (AAP) retirou o termo “transtorno de identidade de gênero” para diagnosticar as pessoas que são transexuais. Em outras palavras, a transexualidade não é mais, para esta associação, considerada uma doença [19]. Na última revisão do Manual da AAP, o DSM-5, utiliza-se a terminologia “disforia de gênero” [20] para se referir às pessoas que sofrem “uma incongruência marcante entre o sexo experimentado/expressado e o sexo atribuído“.
Para transexuais que desejam se submeter à transformação sexual, a WPATH (World Professional Association of Transgender Health) esboçou os standards de cuidado. Esses standards representam o consenso da comunidade médica internacional sobre o tratamento da disforia de gênero. Essas orientações detalham uma sequência clínica de tratamentos escalonados que facilitam uma transição controlada, assegurando que os pacientes recebam apenas aqueles tratamentos que são clinicamente justificados.
A sequência indica, em um primeiro momento, a terapia psiquiátrica, seguido por redesignação sexual hormonal aprovada pelo psiquiatra. Num segundo momento, o paciente deverá vivenciar uma experiência de vida real não inferior a um ano, na qual ele ou ela viverá plenamente em sua comunidade identificando-se com o sexo pretendido. Finalmente, se a experiência de vida real for bem sucedida, após a aprovação de dois psiquiatras, o paciente estará autorizado a se submeter à cirurgia de redesignação sexual [21].
Importa ressaltar que a variabilidade de gênero não é o mesmo que disforia de gênero. A WPATH indica que a não conformidade ou variabilidade de gênero refere-se ao grau em que a expressão, o papel ou a identidade de gênero distingue-se dos paradigmas culturais preconizados para os indivíduos de um determinado sexo. A disforia de gênero diz respeito ao mal-estar ou ao incômodo ocasionado pela desarmonia entre a identidade de gênero de uma pessoa e o sexo que lhe foi atribuído quando nasceu (e o papel de gênero relacionado e/ou características sexuais primárias e secundárias). Apenas alguns indivíduos com variabilidade de gênero vivenciam disforia de gênero em algum estágio das suas vidas [22].
Ainda segundo a guidelines da WPATH, existem diversos tratamentos disponíveis para auxiliar as pessoas com esse gênero de incomodidade a conhecer sua identidade de gênero e encontrar um papel de gênero que seja satisfatório para elas. O tratamento deve ser individualizado e pode ou não envolver uma modificação da expressão de gênero ou transformações corpóreas. Dentro das várias opções acessíveis de terapêutica médica se encontram a feminização ou a masculinização do corpo através de terapia hormonal e/ou cirurgia, que são operativos na suavização da disforia de gênero e são fundamentais para muitas pessoas. As identidades e as expressões de gênero são diversificadas, e as cirurgias e os hormônios são apenas dois dos muitos caminhos que as pessoas podem tomar para se sentirem confortáveis com sua identidade [23].
Para as pessoas que buscam auxílio médico para disforia de gênero, existe uma grande diversidade de tratamentos disponíveis. O tipo e o número de intervenções e a ordem que elas acontecerão podem variar de pessoa para pessoa. As opções de terapêutica incluem: modificações na expressão e papel de gênero (que pode envolver uma experiência de vida real em tempo parcial ou integral em outro papel de gênero, em conformidade com a identidade de gênero do indivíduo); terapia hormonal para masculinizar ou feminizar o corpo; intervenções cirúrgicas para alterar as características sexuais primárias e/ou secundárias (como mamas, genitais externos e/ou internos, traços faciais, formato do corpo); psicoterapia objetivando investigar a expressão, o papel e a identidade de gênero, discutir o impacto negativo da disforia de gênero e a marca na saúde mental, amenizar a transfobia internalizada, aprimorar a imagem corporal ou promover uma reação positiva às adversidades [24].
Note-se que, em 2010, a WPATH emitiu uma declaração incentivando a despatologização da variabilidade de gênero em todo o mundo. A declaração asseverou que “a expressão das características de gênero, incluindo as identidades, que não estão associadas de maneira estereotipada com o sexo atribuído ao nascer, é um fenômeno humano comum e culturalmente diverso que não deve ser julgado como inerentemente patológico ou negativo“.
Em poucas palavras, segundo a WPATH, ser trans ou com variabilidade de gênero é uma questão de diversidade, e não de patologia [25]. A Associação indica ainda que muitos dos problemas mentais experimentados pela população trans advêm do preconceito e do rechaço social, que terminam se traduzindo em um sofrimento psíquico que pode levar a desordens mentais [26]. Como indica-se na doutrina, não raras vezes as pessoas trans sentem como se tivessem a sua própria humanidade questionada e sua opressão legitimada [27].
Pessoas e corpos cisgêneros são considerados a regra da qual as pessoas trans diferem. Há uma ideia de que os transgêneros e os transexuais estão sendo, fraudulentamente, indivíduos que biologicamente eles não são. Assim, são vistos como violadores de um limite “natural“, fixo e binário do sexo. Essa noção simplista de sexo, como duas categorias binárias fixas, é medicamente, cientificamente e, principalmente, factualmente contestável [28].
O sexo, afinal, deve ser uma conjugação de componentes que devem guardar afinidade entre si, sendo o componente biológico, o comportamental e o psicológico da pessoa. Assim, para o diagnóstico rematado e preciso do sexo é importante contemplar a expressão complexa e plurivetorial: o sexo civil, o sexo psicológico e o sexo biológico (composto pelo sexo endócrino, sexo genético e sexo morfológico) [29]. Além disso, alguma doutrina [30] assevera que o sexo é, portanto, multifacetado e que dentre os múltiplos fatores determinantes do sexo a identidade de gênero deverá ter preponderância por ser, de fato, “biológica“. Dito de outra maneira, a identidade de gênero, para essa corrente científica, deverá ser o fator determinante e primeiro do sexo de um indivíduo. Sem um entendimento apropriado do sexo e o papel que a identidade de gênero representa na determinação do sexo, afirma-se que os Tribunais continuarão a sonegar, suprimir ou denudar a dignidade e a personalidade das pessoas trans perante a lei.
Portanto, para além das transformações corporais, o indivíduo transexual almeja alterar seu nome e sexo legal. Tais mudanças de elementos do estado da pessoa são julgadas como essenciais para o completo êxito da terapia de “mudança de sexo“, uma vez que põem fim aos embaraços pessoais e sociais de se vivenciar um sexo oposto ao de sua identificação civil [31]. Destarte, há o favorecimento do livre-desenvolvimento da personalidade e da integração social daquele submetido às referidas alterações [32].
No Brasil, não existe legislação específica que discorra acerca dos direitos dos transexuais. Os critérios e os pressupostos de acesso ao tratamento hormonal e cirúrgico para “mudança de sexo” estão elencados na Resolução nº 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina. A mudança do status civil do indivíduo transexual vem sendo deliberada, caso a caso, em ações judiciais propostas individualmente, via de regra, pelas pessoas já em processo de transformação corpórea [33].
Com base na proteção de diversos direitos de personalidade e/ou fundamentais (v.g., direito ao livre-desenvolvimento da personalidade, dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, identidade pessoal/nome e felicidade), tem-se reconhecido o direito de acesso dos transexuais à cirurgia e à possibilidade da modificação do prenome e do sexo jurídico, ou seja, um direito subjetivo à cirurgia de transgenitalização e um direito à mudança do prenome e do sexo no registro civil, para que este se adeque à realidade psíquica e à expressão da identidade do sujeito, com reflexos em diversos outros campos da atuação jurídica, como, por exemplo, no direito da filiação, no direito matrimonial [34] e no direito contratual.
3 Sobre o Direito à Liberdade e à Identidade Pessoal e ao Nome
A determinação do sexo como uma característica de ordem cromossomicamente inalterável (com a presença ou não de determinados órgãos genitais) fere a liberdade e a autonomia privada do transexual, assim como afronta o seu direito à intimidade, cuja proteção é uma função inafastável do Estado. O direito à intimidade assegura que a pessoa, em benefício da edificação da sua identidade sexual, disponha até certo limite do seu próprio corpo, em consonância com a sua intimidade, ou seja, a condição existencial que escolheu para si. Assim, em nome do direito à identidade, à dignidade, à igualdade, à liberdade e à privacidade, o Estado deve amparar as pessoas trans contra a ingerência de terceiros e do próprio Estado, ao invés de exigir que estejam em posse de determinada genitália [35].
A liberdade de fazer com que o seu corpo e sua identificação civil reflitam a sua real identidade de gênero termina por se relacionar com o direito à saúde da pessoa trans, que é tutelado pela Carta Magna [36] e assegura o direito à busca do melhor e mais adequado tratamento para o problema. Neste caso específico, significa postular o bem-estar geral, psíquico, físico e social, o qual contribuirá para o desenvolvimento da sua personalidade, ultrapassando a angústia experimentada com a imposição de uma genitália repulsiva, dissociada da sua verdadeira identidade [37].
A ausência de identidade da pessoa transexual acarreta em desajuste psicológico, não se podendo falar em bem-estar de qualquer natureza, muito menos geral. Desta forma, o direito à adequação do registro é uma garantia à saúde e o seu óbice materializa afronta a mandamentos constitucionais, traduzindo-se em grave violação aos direitos humanos [38].
A ordem jurídica brasileira consagrou o direito ao nome desde a entrada em vigor da CF de 1988, que afirma que os tratados e as convenções internacionais aprovados nas duas casas do Congresso Nacional equivalerão às emendas constitucionais. No plano internacional, a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989, em seu art. 8º, n. 1, assinala que os Estados-partes comprometem-se a respeitar o direito da criança e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e as relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência legal. Desta maneira, de acordo com o art. 7º, n. 1, da Convenção, o direito à identidade engloba o direito a possuir um nome, a adquirir uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus progenitores e ostentar seus nomes.
Curiosamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não referiu explicitamente o direito ao nome, ainda que o tenha reconhecido como um direito fundamental de maneira reflexa, quando, em seu art. 6º, institui que todos os seres humanos têm direito ao reconhecimento, em qualquer lugar, de sua personalidade jurídica, o que, indubitavelmente, inclui o direito a um nome.
O direito ao nome é um direito de personalidade, tendo em vista que está orientado à tutela da dignidade humana, por meio da defesa daquilo que assegura a infungibilidade, a irrepetibilidade e a indivisibilidade de cada um dos indivíduos. Toda e qualquer pessoa tem direito à sua “individuação, como pessoa única com uma dignidade própria, não susceptível de ser amalgamada na massa nem hipostasiada numa transpessoa“, como afirma Pedro Pais de Vasconcelos [39].
O nome é um dos elementos identificadores no âmbito civil, após adquirirmos personalidade jurídica pelo nascimento com vida e a posterior atribuição da condição de pessoa. Por via desta imputação nominativa passa-se a possuir representação individual na sociedade em que se está inserido. Portanto, como já referido, o nome é um direito de personalidade, consagrado no art. 16 do Código Civil, que deve ser prerrogativa de toda pessoa. O nome é, por excelência, um direito de personalidade. Desempenha a função de marca distintiva, alicerçado na dignidade da pessoa humana, que além de fundamento da República brasileira também constitui um valor-fonte elementar do próprio arranjo constitucional de direitos fundamentais [40].
Desconstruída a correlação antecipada entre gênero e sexo, é imperativo o reconhecimento da identidade individual por meio do arranjo do nome ao sexo correspondente. O nome da pessoa deve estar de acordo com a sua identidade pessoal. Não basta que seja atribuído a um sujeito o nome de Maria ou João. É preciso que aquele nome reflita a identidade real do indivíduo em causa, a escolha e a determinação do nome pressupõe ajustamento sexo-genérico. Na inocorrência dessa pressuposição de conformidade entre sexo e gênero, é incontestável a necessidade de se alterar o nome da pessoa trans (com ou sem a cirurgia de redesignação de sexo), a fim de que o seu prenome reflita a sua verdadeira identidade [41].
Ademais, importa notar que a ideia de que o gênero sexual seja um elemento primacial de identificação civil dos indivíduos está a se tornar obsoleta, em razão de tecnologias que vêm sendo cada vez mais utilizadas, como a biometria, em especial a identificação pela íris [42]. Desta forma, a necessidade de a sociedade identificar uma pessoa buscando, principalmente, proteção está cada vez mais segura e aprimorada através de técnicas modernas, não sendo mais indispensável a identificação por meio do sexo.
4 O Direito à Cirurgia de Transgenitalização
Como a WPATH assevera, a operação de redesignação sexual – mormente a intervenção genital – em regra é o último e mais ponderado passo no processo terapêutico da disforia de gênero. Ainda que existam muitas pessoas trans satisfeitas com seu papel, expressão e identidade de gênero sem necessidade de cirurgia, para outros indivíduos a intervenção é indispensável e clinicamente prescrita para aplacar a disforia de gênero. Em outras palavras, para essas pessoas o alívio da disforia de gênero não pode ser atingido sem a transformação das características sexuais primárias e/ou secundárias, de maneira a conceber uma maior conformidade com a sua identidade de gênero. Além disso, a intervenção pode ajudar as pessoas trans a se sentirem mais confortáveis na presença dos parceiros sexuais ou em lugares como consultórios médicos, clubes e academias.
A associação afirma ainda que as intervenções para disforia de gênero podem ser admitidas por recomendação (uma ou duas, a depender do caso) de um profissional de saúde mental habilitado, que deve fornecer a documentação (no registro e/ou na carta de referência) do histórico individual e do método, da evolução e da elegibilidade do paciente. Os profissionais de saúde que recomendam as intervenções compartilham a responsabilidade ética e legal da decisão com o médico que realiza a cirurgia. Na hipótese de cirurgia de mamas (mastectomia, reconstrução mamária ou mamoplastia de aumento), se faz necessária uma indicação de um profissional de saúde mental habilitado. Para a cirurgia genital (ou seja, histerectomia/salpingooforectomia, orquiectomia, cirurgias genitais reconstrutivas), são necessárias duas referências – de profissionais de saúde mental que avaliaram de maneira apartada e neutral o paciente. Se a primeira referência for do psicoterapeuta, a segunda deve ser de alguém que somente teve um papel avaliativo com o paciente [43].
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina autoriza as cirurgias em transexuais desde o ano de 1997. Com o passar dos anos, o Conselho editou diversas resoluções determinando os pressupostos para que os pacientes pudessem ter acesso à cirurgia. A atual Resolução do CFM (Resolução nº 1.955/2010), em seu art. 1º, permite “a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários” e, em seu art. 2º, autoriza, “a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia“.
A exemplo de outros países onde a técnica já foi implantada, como a Espanha [44], a resolução brasileira determina que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá à avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto, obedecendo aos critérios a saber: 1. diagnóstico médico de transgenitalismo; 2. maior de 21 [45] anos; 3. ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Critica-se fortemente na doutrina a necessidade do decurso do prazo de dois anos para que se obtenha o diagnóstico de transexualidade. Obriga-se, de certa forma afrontando a dignidade dos pacientes em causa, que a situação de desconforto se alargue por um período de pelo menos dois anos de insatisfação corpórea [46].
Seguindo o espaço aberto pelo Conselho Federal de Medicina, não obstante a falta de legislação reguladora, em 2008 o Ministério da Saúde brasileiro baixou uma Portaria [47], instituindo no âmbito do SUS – Sistema Único de Saúde, “o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas“. Para que as cirurgias sejam realizadas, basta que na unidade em questão exista uma equipe de profissionais habilitada.
É mister ressaltar que não são suficientes apenas o acompanhamento psicológico, a execução da cirurgia ou o tratamento hormonal para a ressocialização da pessoa em causa. Estes são, portanto, apenas primeiros passos. Uma identidade registral que não representa a realidade do transexual é um violento óbice para a sua inclusão social, como restará demonstrado [48].
5 O Direito à Mudança do Prenome e do Sexo no Registro Civil com ou sem Cirurgia
Após o processo de transformação a que se submetem os transexuais (hormonioterapia e a cirurgia de redesignação sexual), via de regra, emerge um segundo problema que diz respeito à alteração legal dos elementos que constitui o estado da pessoa – prenome e sexo -, a priori imutáveis e indisponíveis.
O estado da pessoa é um velho instituto originário do direito romano e tido como um bem de ordem pública, que define e delimita o sujeito no corpo social ao qual ele pertence. A justificação fundamental para esta imutabilidade emerge do dever do Estado em garantir a segurança das relações institucionais e pessoais, basicamente de natureza patrimonial – contratual e de herança – e de preservação da instituição familiar, relacionada à filiação e ao casamento [49].
Sobre tal questão, rebate Maria Berenice Dias afirmando que, de maneira injustificável, há decisões judiciais (e ainda doutrina) que ainda insistem em rechaçar o pedido de modificação. A motivação, como alerta a jurista, nem ao menos oculta o preconceito. Alega-se que o direito consagra o princípio da imutabilidade relativa ao nome, não aprovando qualquer pretensão do transexual à alteração. Todavia, a Lei dos Registros Públicos afirma que o prenome pode ser mudado quando sujeitar ao ridículo o seu portador [50]. Também permite-se a sua alteração, a pedido do interessado, contanto que não prejudique o sobrenome de família [51].
Como leciona Patrícia Sanches, “a busca da felicidade no perfeito ajuste da personalidade do indivíduo com sua representação social é a tônica moderna“. Desta maneira, o ajuste do nome assim como do sexo estão “sob os holofotes do direito“. Em primeiro lugar, porque tanto o gênero sexual como o nome são conferidos nos momentos iniciais da vida do indivíduo; em segundo lugar, porque tais elementos irão catalogar o seu papel na sociedade; e, por último, porque eles podem transformar-se em promotores de infortúnio e grandes embaraços quando não se mostram adequados à realidade daquele a quem deveriam representar, o que leva às demandas de modificação de tais elementos [52].
Não existindo legislação que defina a cirurgia como crime, ausente está, portanto, em sua execução, a afronta à ética médica. Note-se que a própria Resolução do CFM fez questão de ressaltar que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não configura crime de mutilação previsto no art. 129 do Código Penal, uma vez que possui o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico. Tal hipótese termina por ter abrigo legal implícito sob a égide do art. 13 do Código Civil brasileiro, que autoriza realização da cirurgia de redesignação sexual quando houver prescrição médica que a considere necessária, apartando a ilicitude da conduta. Desta forma, se a lei civil autoriza a conduta, ela não pode ser considerada, por representar exercício regular de direito do indivíduo transexual.
De qualquer maneira, existe um projeto de lei acerca do assunto, aguardando votação no Plenário brasileiro. O projeto sugere a adição de um parágrafo ao artigo que define o ilícito de lesões corporais, instituindo como excludente do crime a intercessão cirúrgica reservada à mudança de sexo. Da mesma forma, objetiva a modificação da Lei dos Registros Públicos [53] com o intuito de tornar possível, por meio de autorização judicial, a retificação do prenome do indivíduo. Prevê a averbação, no assento de nascimento e no documento de identidade, que se trata de um transexual.
Entretanto, esta última previsão pode ser considerada como oposição ao direito à privacidade e à intimidade. Desta forma, a jurisprudência brasileira [54] vem permitindo a troca de identidade sexual sem qualquer menção à mudança levada a cabo. Ademais, há algum tempo se iniciou um movimento de abertura do Judiciário para a possibilidade de alteração do prenome [55] sem realização da intervenção cirúrgica. O entendimento jurisprudencial do caráter acessório [56] ou secundário [57], e até mesmo dispensável das cirurgias de ablação sexual, foi, por fim, cristalizado com a conclusão do julgamento do REsp 1.626.739/RS, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão.
O caso que chegou ao Superior Tribunal de Justiça e que tramitou em segredo de justiça dizia respeito a uma pessoa identificada psiquicamente como mulher trans e que desejava a retificação completa do seu registro de nascimento, para a troca do seu prenome e do seu gênero, originalmente assentado como sexo masculino, para o sexo feminino.
A autora logrou êxito em demonstrar, ao juízo de primeiro grau, que embora tenha nascido com a genitália masculina e tenha sido registrada com o gênero que se convencionou atribuir à ela, qual seja o masculino, ela sempre se sentiu, se comportou e se expressou, desde a infância, como pessoa do sexo feminino.
O recurso se insurge contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Corte estadual, o qual, por maioria, manteve sentença que indeferiu o pedido de alteração do gênero registral da autora, mulher transexual, cingindo-se a autorizar a mudança do prenome masculino para um prenome feminino.
Um dos fundamentos centrais do acórdão atacado é o de que:
“Ora, o recorrente não é mulher e o registro público espelha a verdade biológica, admitindo-se, como exceção, a troca de sexo quando existe prévia cirurgia de transgenitalização. Ou seja, quando há adequação da sua forma física ao gênero sexual a que pertence.
A definição do sexo é ato médico, e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Com a realização da cirurgia, ocorrendo a transgenitalização, verifica-se uma situação excepcional, ou seja, há o ato médico redefinindo o sexo e atestando a inadequação do registro, que deverá então ser corrigido.”
Em seu voto vencedor, no acórdão que reformou a referida decisão colegiada, o relator trouxe, inicialmente, vários pontos essenciais para a compreensão plena da questão da transexualidade, desde uma didática diferenciação dos conceitos de sexo, gênero, identidade de gênero e orientação sexual, dentre outros, até um apanhado sobre a hodierna situação jurídica da pessoa transexual, no Brasil, seguido de uma análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores do país sobre a transexualidade e de reflexão comparativa sobre como a identidade transexual é tratada em outros países, como Portugal, Espanha, Reino Unido e Noruega.
Tendo em vista todos os pontos suscitados, ponderou o relator que:
“Diante deste quadro, penso que a recusa da alteração de gênero de transexual com base na falta de realização de cirurgia de transgenitalização ofende a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana, a qual, segundo Ingo W. Sarlet, não contém apenas declaração de conteúdo ético e moral, mas também ‘norma jurídico-positiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocadamente carregado de eficácia’ (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 84).”
A partir da correlação direta e necessária entre o princípio da dignidade da pessoa humana, verdadeira cláusula geral impositiva de ampla proteção a todos os seres humanos, e a adequação da identidade civil da pessoa transexual, o Ministro-Relator debruçou-se sobre o direito da personalidade, que se consubstancia no direito à identidade, asseverando que
“o direito à identidade integra o conteúdo mínimo dos direitos de personalidade. Na presente perspectiva, diz respeito ao direito fundamental dos transexuais de serem tratados socialmente de acordo com sua identidade de gênero. A compreensão de vida digna abrange, assim, o direito de serem identificados, civil e socialmente, de forma coerente com a realidade psicossocial vivenciada, a fim de ser combatida, concretamente, qualquer discriminação ou abuso violadores do exercício de sua personalidade.”
Queda evidente, pois, que sendo o direito à identidade um direito da personalidade, e estando ele intimamente correlacionado à expressão da própria personalidade e ao seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano, não há como se negar à pessoa transexual o acesso a todos os meios necessários para que a expressão de sua personalidade se dê de forma livre, ampla, conduzida por seus sentimentos, crenças e percepções acerca de si mesmo e do mundo que o rodeia. Não há como se suprimir do indivíduo transexual o direito personalíssimo à sua identidade, a que seja reconhecido no seio social como aquele que ele sente e sabe que é.
Nesse ponto, conclui o relator que,
“sendo certo que cada pessoa é livre para expressar os atributos e as características de gênero que lhe são imanentes, não se revela legítimo ao Estado condicionar a pretensão de mudança do sexo registral dos transexuais à realização da cirurgia de transgenitalização. Tal imposição configura, claramente, indevida intromissão estatal na liberdade de autodeterminação da identidade de gênero alheia.”
Em breve, a questão da transexualidade deverá ser tratada pelo Supremo Tribunal Federal, em dois casos que tiveram a repercussão geral reconhecida 58.
Relativamente à Europa, é interessante trazer à baila a sentença de 11 de setembro de 2007 do TEDH, que configura um patente avanço na postura do mesmo Tribunal em relação ao reconhecimento jurídico da mudança de sexo. A exegese feita em tal sentença, do art. 8º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, leva a sustentar que os países-membros do Conselho da Europa estão não somente obrigados a permitir a mudança de sexo e nome dos transexuais no Registro Civil, mas também obrigados a facilitá-la 59.
É importante referir que é possível garantir uma autonomia ao transexual, a ponto de ter reconhecida a sua identidade, ainda que não se submeta à cirurgia 60. Note-se que, mesmo que deseje se submeter a intervenções cirúrgicas para readequação corporal, em regra, a aparência da pessoa trans já reflete a sua identidade de gênero antes de qualquer procedimento cirúrgico 61.
Como já foi referido, realização da cirurgia para a readequação sexual não é condição para o diagnóstico da transexualidade, mas, sim, o último recurso de tratamento ao qual se recorre quando os demais não são exitosos. O fato de um indivíduo estar acertadamente caracterizado como um transexual não significa que ele, invariavelmente, tenha que se submeter à cirurgia de redesignação de sexo 62.
O diagnóstico da transexualidade não está conectado à ideia da cirurgia de transformação do órgão sexual. Alude a doutrina que já admite-se que existem tratamentos medicamentosos e hormonais, além de terapias psicopedagógicas e psiquiátricas exitosas em possibilitar que o indivíduo viva como alguém do sexo oposto, em ter que se submeter a qualquer intervenção cirúrgica. Em outras palavras, a transformação da genitália não é indispensável para o reconhecimento de direitos à pessoa transexual, tendo em vista a existência de outros meios de readequação corporal capazes de avizinhar o aspecto daquele indivíduo ao seu sexo de identificação. Destarte, pode-se dizer que a intervenção cirúrgica encontra-se na esfera do tratamento, e não no âmbito dos direitos 63.
Outro não podia ser o entendimento, porque não se pode exigir que para reconhecimento de direitos, mormente a possibilidade de alteração de um nome registral que afronta a identidade da pessoa transexual, esta tenha que se submeter a uma cirurgia. Há que se respeitar o direito de as pessoas trans simplesmente não desejarem submeter-se a qualquer operação de transformação dos órgãos sexuais. Negar este direito representa uma afronta do Judiciário ao direito à identidade, à intimidade, à privacidade de quem apenas deseja adequar-se à sua identidade social sem transgredir a sua integridade física. Compulsar alguém a submeter-se a uma intervenção cirurgia – extremamente delicada – à qual não deseja se submeter, para assegurar-lhe o direito à identidade, afronta patentemente o direito à liberdade, além de violar a própria tarefa estatal de proteger todos os seus cidadãos 64.
Essa ideia parece já estar a inspirar outros ordenamentos. Em 2012, o Tribunal Administrativo de Apelações da Suécia considerou que a exigência da cirurgia (e consequente esterilização) para reconhecimento do gênero legal invade a privacidade das pessoas e não pode ser visto como uma escolha voluntária, uma vez que os indivíduos são compelidos a sofrer esterilização, a fim de obter o reconhecimento do gênero legal. Em 2013, o Parlamento sueco revogou tais requisitos de esterilização em uma revisão da Gender Recognition Act (Lei de Reconhecimento de Gênero). A legislação modificada permite que as pessoas maiores e capazes, que tenham se sentido “por algum tempo” como pertencentes ao gênero preferido, tenham o reconhecimento legal desse gênero. A lei não exige qualquer evidência ou diagnóstico médicos para esse reconhecimento 65.
Em 2014, a Dinamarca seguiu os passos da Suécia e revogou o requisito de submissão à cirurgia de redesignação de sexo para a mudança de gênero legal. De igual modo, a legislação dinamarquesa não exige que o requerente forneça provas médicas, a fim de receber esse reconhecimento. Ao invés disso, a lei exige um período de espera de seis meses entre o pedido inicial e a emissão de uma nova certidão de nascimento e outros documentos de identidade pelo governo 66.
Ainda em 2012, a Argentina aprovou a legislação de identidade de gênero, que é considerada uma das mais (senão a mais) avançadas do mundo e a única que não patologiza a identidade trans. Com a aprovação da Lei nº 26.743, foi estabelecido o direito à identidade de gênero das pessoas daquele país.
De acordo com o art. 1º da referida normativa, toda pessoa tem o direito ao reconhecimento da identidade de gênero (alínea a); ao livre-desenvolvimento de sua pessoa de acordo com sua identidade de gênero (alínea b); e a ser tratado de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificado desta maneira nos instrumentos que comprovem sua identidade em relação ao nome, à imagem e ao sexo com o qual não tiver sido registrado (alínea c).
O art. 2º da Lei traz a definição de identidade de gênero, que seria a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa a sente. Essa vivência pode corresponder ou não com o sexo atribuído no momento do nascimento, incluindo a experiência pessoal do corpo. Isto pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos, intervenções cirúrgicas ou outros, desde que seja livremente escolhido. Também se incluem outras expressões de gênero, como o vestuário, o modo de falar e os costumes.
Assim, qualquer pessoa pode solicitar a mudança de nome e sexo e a consequente retificação de registro civil, sempre que a imagem, o prenome e o sexo legal não coincidam com sua identidade de gênero autopercebida (art. 3º). Os seguintes requisitos deverão ser observados, de acordo com o art. 4º: idade mínima de 18 anos; apresentação perante o Registro Nacional das Pessoas ou seus escritórios seccionais de um requerimento manifestando encontrar-se amparado pela legislação e pleiteando a retificação do registro de nascimento e o novo documento nacional de identidade correspondente, conservando o número original; indicar o novo prenome com o qual deseja ser identificado.
A legislação é bem explícita na sua inclinação em não patologizar as identidades trans ao indicar que em nenhum caso será requisito acreditar intervenções cirúrgicas por redesignação genital parcial ou total, nem comprovar terapias hormonais ou qualquer outro tratamento psicológico ou médico para que as referidas mudanças sejam levadas a cabo.
Relativamente a menores de idade, o requerimento do procedimento previsto no art. 4º deve ser feito através de seus representantes legais e com expresso consentimento da criança, tendo em conta os princípios da capacidade progressiva e do melhor interesse da criança, em conformidade com as disposições da Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças e da Lei nº 26.061 de proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes (art. 5º).
O art. 6º estabelece que, uma vez cumpridos os requisitos estabelecidos nos arts. 4º e 5º, o funcionário público competente notificará de ofício, em necessidade de qualquer trâmite administrativo ou judicial, o registro civil da jurisdição onde foi emitida a certidão de nascimento para que retifique o sexo e modifique o nome da pessoa em causa e emita um novo registro de nascimento e um novo documento nacional de identidade que reflita essas modificações 67. É proibida qualquer referência à Lei de Identidade de Gênero no assento de nascimento retificado e no documento de identidade expedido em virtude da retificação. O art. 9º indica que apenas as pessoas que tenham autorização do titular ou autorização judicial mediante pedido por escrito e fundamentado terão acesso ao assento de nascimento original.
O art. 11 consagra o direito ao livre-desenvolvimento pessoal ao estabelecer que todas as pessoas maiores de 18 anos poderão, de acordo com o art. 1º da Lei e a fim de garantir o gozo de sua saúde integral, ter acesso a intervenções cirúrgicas totais e parciais e/ou tratamentos hormonais para adequar seu corpo, incluindo sua genitalidade, à sua identidade de gênero auto percebida, sem necessidade de requerer autorização judicial ou administrativa. Indica-se ainda no mesmo dispositivo que os operadores do sistema público de saúde, sejam estatais, privados ou do subsistema de obras sociais, deverão assegurar de forma permanente os direitos reconhecidos pela lei. Todas as prestações de saúde contempladas estão incluídas no Plano Médico Obrigatório, ou o que o substitua, conforme regulamente a autoridade de aplicação.
Desta forma, recomenda-se que a salvaguarda de reconhecimento da pessoa na sua diversidade e a viabilização do exercício de direitos dentro de todas as suas singularidades devem ser buscadas mais à luz da ideia da identidade e menos em decorrência da submissão à cirurgia plástico-construtiva. Desta forma, propõe-se na doutrina uma alteração do âmago do estudo, da biologia para o direito, com tônica nos princípios constitucionais 68.
6 Considerações Finais
Em regra, as pessoas transgêneras e transexuais estão expostas e sujeitas a uma enormidade de situações constrangedoras e incômodas ao longo de suas vidas. Uma das razões primaciais para a existência de tais fatos – que causam sofrimento, angústia e também frustrações – reside no fato de as pessoas trans não se encaixarem nos confins das definições aceitáveis de masculino e feminino e terem essa condição patologizada. A patologização das identidades trans termina por perpetuar a discriminação, o preconceito e a violência direcionada a essa parcela da população LGBTI.
Conforme indica a World Professional Association of Transgender Health, apenas algumas pessoas com variabilidade de gênero irão vivenciar a disforia de gênero em algum ponto das suas vidas. Ser uma pessoa trans ou com variabilidade de gênero é uma questão de diversidade, e não de patologia. E importa referir, mais uma vez, que boa parte, a maioria esmagadora dos problemas mentais que acometem a população trans, possui sua origem na discriminação e no repúdio social, que levam a uma enorme angústia psíquica que pode gerar transtornos mentais. Assim, é evidente que não é a identidade de gênero que é uma doença, mas a falta de compreensão e o desacato a essa identidade que podem ocasionar desordens psíquicas de caráter patológico.
7 Referências
AMAYUELAS, Esther Arroyo i. Sexo, indentidad de género y transexualidad. In: Matrimonio homosexual y adopción: perspectiva nacional e internacional. Madrid: Editorial Reus, 2006.
BALLARD, Amy. Sex change: changing the face of transgender policy in the United States. Cardozo Journal of Law & Gender, v. 18, p. 775-799, 2012.
BARBOZA, Heloísa Helena. Direito dos transexuais à reprodução. In: DIAS, Maria Berenice (Org.). Direito das famílias: contributo do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: RT, 2009.
BENJAMIN, Harry. The transsexual phenomenon. Disponível em: <http://www.symposion.com/ijt/benjamin/chap_02.htm>. Acesso em: 23 ago. 2008
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
COLOPY, Travis Wright. Setting gender identity free: expanding treatment for transsexual inmates. Health Matrix: Journal of Law-Medicine, v. 22, n. 1, p. 227-272, 2012.
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
______. Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6. ed. ref. São Paulo: RT, 2014.
______. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004.
FERNÁNDEZ, Carlos Sessarego. El cambio de sexo y su incidencia en las relaciones familiares. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, ano 15, n. 56, p. 7-50, abr./jun. 1991.
GARCIA, Iberê Anselmo. A segurança na identificação: a biometria da íris e da retina. Dissertação de Mestrado em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia. São Paulo: FDUSP, 2009.
GONÇALVES, Camilla de Jesus Mello. Transexualidade e direitos humanos: o reconhecimento da identidade de gênero entre os direitos da personalidade. Curitiba: Juruá, 2014.
JOHNSON, Jaime. Recognition of the nonhuman: the psychological minefield of transgender inequality in the law. Law & Psychology Review, v. 34, p. 153-164, 2010
LEVASSEUR, M. Dru. Gender identity defines sex: updating the law to reflect modern medical science is the key to transgender rights. Vermont Law Review, v. 39, p. 943-1.004, 2015.
MARQUES, J. P. Remédio. Mudança de sexo. O problema jurídico: o problema do “paradigma corporal” da identificação/identidade sexual no registo civil. Tese de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas. Coimbra: FDUC, 2001.
RAPPOLE, Amy. Trans people and legal recognition: what the U.S. Federal Government can learn from foreign nations. Maryland Journal of International Law, v. 30, p. 191-216, 2015.
RESINA, Judith Solé. Não-discriminação e transexualidade: a doutrina mais recente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a solução do direito espanhol. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Porto Alegre, Magister, v. 5, p. 63-74, ago./set. 2008.
SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: RT, 2011.
SPENGLER, Fabiana Marion. Os transexuais e a possibilidade jurídica do casamento. In: WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO, Rolf Hanssen (Coord.). Direitos fundamentais do direito de famíla. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo: RT, 1999.
TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade. Coimbra: Almedina, 2006.
VENTURA, Miriam. Transexualidade: algumas reflexões jurídicas sobre a autonomia corporal e a autodeterminação da identidade sexual. In: RIOS, Roger Raupp (Org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
VIEIRA, Tereza Rodrigues. O direito do transexual e a bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 125, 8 nov. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4354>. Acesso em: 9 out. 2014.
______. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: RT, 2011.
______. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. 2. ed. São Paulo: RT, 2014.
WPATH. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Disponível em: <http://www.wpath.org/uploaded_files/140/files/SOC{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}20-{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}20Portuguese.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2015.
[1] Note-se, entretanto, que o sexo genital não constitui o único fator determinante na identidade sexual de um indivíduo e nem sempre o sexo morfológico coincide com o sexo psicossocial daquela pessoa, o que levou à criação do que se denomina de identidade de gênero. Cfr. neste sentido: BARBOZA, Heloísa Helena. Direito dos transexuais à reprodução. In: DIAS, Maria Berenice (Org.). Direito das famílias: contributo do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: RT, 2009. p. 273.
[2] Sobre a diferenciação entre travestilidade e transexualidade, Harry Benjamin afirma que “the transsexual (TS) male or female is deeply unhappy as a member of the sex (or gender) to which he or she was assigned by the anatomical structure of the body, particularly the genitals. To avoid misunderstanding: this has nothing to do with hermaphroditism. The transsexual is physically normal (although occasionally underdeveloped). These persons can somewhat appease their unhappiness by dressing in the clothes of the opposite sex, that is to say, by cross-dressing, and they are, therefore, transvestites too. But while ‘dressing’ would satisfy the true transvestite (who is content with his morphological sex), it is only incidental and not more than a partial or temporary help to the transsexual. True transsexuals feel that they belong to the other sex, they want to be and function as members of the opposite sex, not only to appear as such. For them, their sex organs, the primary (testes) as well as the secondary (penis and others) are disgusting deformities that must be changed by the surgeon’s knife. This attitude appears to be the chief differential diagnostic point between the two syndromes (sets of symptoms) – that is, those of transvestism and transsexualism” (The transsexual phenomenon. Disponível em: <http://www.symposion.com/ijt/benjamin/chap_02.htm>. Acesso em: 23 ago. 2008).
[3] Cfr. TALAVERA, Glauber Moreno. União civil entre pessoas do mesmo sexo. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 56.
[4] Como indica: BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 40.
[5] A identificação do sexo é feita no momento do nascimento do indivíduo, pelas características anatômicas, registrando-se a pessoa como pertencente a um ou outro sexo principalmente pela análise dos órgãos genitais externos. Todavia, a identificação do gênero não se origina apenas nas características anatômicas, não havendo mais legitimidade em se considerar o conceito de sexo “fora de uma apreciação plurivetorial, resultante de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais” (DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre homoafetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 135). No mesmo sentido: SPENGLER, Fabiana Marion. Os transexuais e a possibilidade jurídica do casamento. In: WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO, Rolf Hanssen (Coord.). Direitos fundamentais do direito de famíla. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 104. Sobre a temática, manifesta-se J. P. Remédio Marques afirmando que, “uma vez lavrado o assento de nascimento, adquire eficácia tendencialmente duradoura, pelo que respeita, justamente a menção do sexo, determinando o ‘destino’ e a construção da ‘biografia registral’ da pessoa” (Mudança de sexo. O problema jurídico: o problema do “paradigma corporal” da identificação/identidade sexual no registo civil. Tese de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas. Coimbra: FDUC, 2001. p. 134).
[6] Pode-se afirmar que o fato é que o transexual constrói uma nova identidade psicológica e social para si, em concordância com o sexo que acredita que deveria possuir, ignorando, indubitavelmente, aquele que lhe foi dado pela natureza. Neste sentido, consultar: SPENGLER, Fabiana Marion. Os transexuais e a possibilidade jurídica do casamento. In: WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO, Rolf Hanssen (Coord.). Direitos fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 105.
[7] DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça. 3. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 120.
[8] Por exemplo, o Departamento de Estado dos EUA implementou uma nova política relativa aos passaportes daquele país. A partir de 2010, as pessoas trans – ainda que não tenham se submetido e nunca venham a se submeter à cirurgia de redesignação sexual – podem fazer com que o sexo do seu passaporte corresponda ao sexo da sua identidade de gênero. Afirma-se que, com essa medida, os EUA deram alguma esperança às pessoas trans, diante das leis e políticas inconsistentes, anacrônicas e injustas que a população trans se encontra submetida (BALLARD, Amy. Sex change: changing the face of transgender policy in the United States. Cardozo Journal of Law & Gender, v. 18, p. 775-799, 2012, p. 775).
[9] Cfr. neste sentido: VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. 2. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 541.
[10] Cf. COLOPY, Travis Wright. Setting gender identity free: expanding treatment for transsexual inmates. Health Matrix: Journal of Law-Medicine, v. 22, n. 1, p. 227-272, 2012, p. 231-232.
[11] A transexualidade ainda é considerada uma forma de transtorno psíquico, designada pela Classificação Internacional de Doenças da OMS, como transtorno de identidade de gênero. Segundo a CID-10, a transexualidade caracteriza-se por “um desejo de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade do seu próprio sexo anatômico e o desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia, para seu corpo ficar tão congruente quanto possível com o sexo preferido”. Texto original disponível em: <http://www.who.int/classifications/apps/icd/icd10online/>. Acesso em: 22 jun. 2012.
[12] Cf. FERNANDES, Taísa Ribeiro. Uniões homossexuais e seus efeitos jurídicos. São Paulo: Método, 2004. p. 27. No mesmo sentido, afirma Remédio Marques que, “em traços gerais, o transexualismo corresponde a um persistente mal-estar, convicção inelutável que o seu verdadeiro sexo está em contradição com o seu sexo cromossómico/gonadal/morfológico, que nada tem a ver com qualquer tipo, v.g., de hermafroditismo, outras disfunções cromossómico-morfológicas ou parafilias como o feiticismo, travestismo, (…) que raramente colocam a problemática de mudança de sexo” (Mudança de sexo, cit., p. 147-148).
[13] Acerca da diferenciação entre a transexualidade e a homossexualidade, assevera Sessarego Fernandéz que, “en el primer caso el deseo de pertenecer al género opuesto es permanente y obsesivo, por lo que los transexuales están decididos a modificar su aspecto sexual mediante una dolorosa intervención quirúrgica a fin de adecuarlo al que corresponde a su propia vivencia. El transexual, tal como se há apuntado, siente profunda repugnancia por sus órganos genitales, a los que califica como el resultado de un ‘error de la naturaleza’. De otra parte, y en mérito a una honda convicción, no tiene un sentimiento de culpa en lo que atañe a sus relaciones amorosas y sexuales. El homosexual, en cambio, carece de tales precisas características. De ahí que no este decidido a modificar su morfologia sexual ni experimenta repugnancia por sus órganos sexuales sino que, por el contrario, sienta por ellos atracción y complacencia” (El cambio de sexo y su incidencia en las relaciones familiares. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, ano 15, n. 56, p. 7-50, abr./jun. 1991, p. 18-19). No mesmo sentido, cf.: MARQUES, J. P. Remédio. Mudança de sexo, cit., p. 160-163.
[14] Segundo a Associação Espanhola de Endocrinologia, para que um indivíduo possa conseguir a sua identidade sexual, deve ser incluído em uma equipe multidisciplinar que aplique os protocolos estabelecidos internacionalmente. Este processo se baseia no consenso da Associação Harry Benjamin em que se pormenorizam os passos a seguir. Deve ser atendido, inicialmente, por um psiquiatra que diagnostique o caso e sirva de suporte psicológico durante todo o processo. Efetivamente, primeiro deve-se descartar a possibilidade de o indivíduo sofrer de psicose ou algum transtorno de personalidade. A seguir, o especialista em endocrinologia prescreverá o tratamento hormonal adequado, por um período de mais ou menos dois anos. Durante este tempo, as modificações no corpo irão acompanhando as modificações sociais. Por fim, com pareceres favoráveis do endocrinologista e do psiquiatra, a pessoa em questão será submetida às intervenções cirúrgicas que farão desaparecer os caracteres sexuais que abomina e implantar os caracteres do novo sexo. As transexuais femininas terão mamas implantadas e o pênis amputado, com a consequente modelação de uma vagina artificial. Os transexuais masculinos terão os seios extirpados, assim como o útero e os ovários, e posteriormente deverão se submeter a uma reconstrução do pênis, de técnica complexa, e a uma implantação de próteses de testículos. Cf. AMAYUELAS, Esther Arroyo i. Sexo, indentidad de género y transexualidad. In: Matrimonio homosexual y adopción: perspectiva nacional e internacional. Madrid: Editorial Reus, 2006. p. 118.
[15] Como indica COLOPY, Travis Wright. Setting gender identity free: expanding treatment for transsexual inmates. Health Matrix: Journal of Law-Medicine, v. 22, n. 1, p. 227-272, 2012, p. 231.
[16] Nesse sentido, ver: LEVASSEUR, M. Dru. Gender identity defines sex: updating the law to reflect modern medical science is the key to transgender rights. Vermont Law Review, v. 39, p. 943-1.004, 2015, p. 951-952.
[17] A Resolução nº 1.955/2010 do CFM utiliza a terminologia “transexualismo”.
[18] A Resolução fala em “ausência de outros transtornos mentais”. Todavia, em virtude da postura adotada pela Associação Americana de Psiquiatria (ainda não adotada em território brasileiro) opta-se por não se considerar a transexualidade um transtorno mental. Também se manifesta pela despatologização da transexualidade Heloísa Helena Barboza (Direito dos transexuais à reprodução. In: DIAS, Maria Berenice [Org.]. Direito das famílias: contributo do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: RT, 2009. p. 277.
[19] Há alguns anos existe um movimento pela despatologização das identidades trans. Neste sentido, foi publicado um manifesto pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo:
“Embora a instituição do chamado ‘Processo Transexualizador’ no SUS tenha sido uma grande conquista, entendemos que o acesso à saúde é um direito de tod@s e que a assistência médica e psicológica a pessoas trans, o tratamento hormonal e cirúrgico pelos serviços públicos de saúde não devem estar condicionados a um diagnóstico psiquiátrico. Defendemos o princípio da integralidade do SUS, considerando uma concepção positiva de saúde, em que a mesma não é sinônimo de ausência de doença, e sim do bem-estar biopsiquicossocial das pessoas. Os estudos de gênero e as próprias experiências vividas por pessoas trans demonstram que a concepção binária de gênero presente no ocidente e o alinhamento entre sexo, gênero e desejo não são algo ‘natural’. A ideia da existência de dois gêneros opostos, feminino e masculino, baseada na diferença entre os sexos, é algo construído culturalmente. A realidade de sexo, de gênero e do corpo não pode ser imposta. Ela tem que ser observada nas formas e nas experiências do indivíduo e do grupo. As sexualidades, os gêneros e os corpos que não se encaixam no binarismo convencional (masculino/feminino, macho/fêmea) não podem servir de base para uma classificação psicopatológica. A normatividade do binarismo de sexo e de gênero só permite aos deslocamentos, como a transexualidade, a travestilidade, o crossdressing, as drag queens, serem vistos como maneiras de existir desviantes, criando-se categorias linguísticas e psiquiátricas que conferem inteligibilidade à vivência destas pessoas. Portanto, numa concepção que desnaturalize o gênero, a pluralidade das identidades de gênero refere possibilidades de existência, manifestações da diversidade humana, e não transtornos mentais. Ser considerad@ um@ ‘doente mental’ só traz sofrimento à vida de quem possui uma identidade de gênero trans. Apesar de considerar que vivências como a transexualidade e a travestilidade podem e, em geral, geram muito sofrimento, entendemos que isto tem mais a ver com a discriminação do que com a experiência em si. A patologização das identidades trans fortalece estigmas, fomenta posturas discriminatórias e contribui para a marginalização das pessoas. A ‘doença’ trans é social: é a ausência de reconhecimento destas pessoas como cidadãs, é a ausência de reconhecimento de seu direito de existir, de amar, de desejar e de ser feliz. Retirar o rótulo de ‘doente mental’ das pessoas trans signicará devolver a elas uma potência perdida na ideia de que são ‘seres desviantes’, proporcionando uma abertura para que possam se apropriar de suas identidades e desenvolver sua autonomia. Defendemos: a não medicalização da sociedade; a retirada do ‘transtorno de identidade de gênero’ dos manuais internacionais de diagnóstico; que o direito à mudança de nome e sexo nos documentos de identificação não seja condicionado a um tratamento obrigatório ou diagnóstico; o investimento na formação de profissionais qualificad@s para o atendimento integral para tod@s.” (Texto integral do manifesto disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=365>. Acesso em: 9 out. 2014)
[20] Terminologia utilizada para delimitar a desagregação entre o sexo físico e o sexo psicossocial.
[21] COLOPY, Travis Wright. Setting gender identity free: expanding treatment for transsexual inmates, cit., p. 235.
[22] WPATH. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Disponível em: <http://www.wpath.org/uploaded_files/140/files/SOC{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}20-{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}20Portuguese.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2015.
[23] “À medida que o campo profissional progrediu, os/as profissionais de saúde reconheceram que, embora muitas pessoas precisem tanto de terapia hormonal como de cirurgias para aliviar a disforia de gênero, outras precisam de apenas uma dessas opções de tratamento, e algumas não precisam de nenhuma das duas (BOCKTING; GOLDBERG, 2006; BOCKTING, 2008; LEV, 2004). Muitas vezes, com a ajuda da psicoterapia, alguns indivíduos conseguem integrar seus sentimentos trans no papel de gênero que lhes foi atribuído ao nascer e não sentem a necessidade de feminilizar ou masculinizar seu corpo. Para outras pessoas, mudanças no papel e na expressão de gênero são suficientes para aliviar a disforia de gênero. Algumas pessoas podem precisar de hormônios, de uma possível mudança no papel de gênero, mas não de cirurgias; enquanto outras podem exigir uma mudança no papel de gênero junto com as cirurgias, mas não de hormônios. Em outras palavras, o tratamento para disforia de gênero tornou-se mais individualizado” (WPATH. Normas de atenc¸a~o a` sau´de das pessoas trans e com variabilidade de ge^nero, cit., p. 5 e 9).
[24] WPATH. Normas de atenc¸a~o a` sau´de das pessoas trans e com variabilidade de ge^nero, cit., p. 10-11.
[25] WPATH. Normas de atenc¸a~o a` sau´de das pessoas trans e com variabilidade de ge^nero, cit., p. 4.
[26] “Infelizmente, em muitas sociedades ao redor do mundo há um estigma associado à variabilidade de gênero. Tal estigma pode levar ao preconceito e à discriminação, resultando no chamado ‘estresse de minoria’ (I.H. Meyer, 2003). O estresse de minoria é único (além dos estressores gerais experimentados por todas as pessoas), crônico, e de base social, e pode aumentar a vulnerabilidade das pessoas trans e com variabilidade de gênero para desenvolver problemas de saúde mental tais como ansiedade e depressão (Institute of Medicine, 2011). Além do preconceito e da discriminação na sociedade em geral, o estigma pode contribuir para o abuso e a negligência nas relações com companheiros/as e familiares, que, por sua vez, pode conduzir ao sofrimento psíquico. No entanto, esses sintomas são socialmente provocados, e não são inerentes ao fato de ser uma pessoa trans ou com variabilidade de gênero” (WPATH. Normas de atenc¸a~o a` sau´de das pessoas trans e com variabilidade de ge^nero, cit., p. 5).
[27] Cf. JOHNSON, Jaime. Recognition of the nonhuman: the psychological minefield of transgender inequality in the law. Law & Psychology Review, v. 34, p. 153-164, 2010, p. 153.
[28] Cf. LEVASSEUR, M. Dru. Gender identity defines sex: updating the law to reflect modern medical science is the key to transgender rights. Vermont Law Review, v. 39, p. 943-1.004, 2015, p. 946.
[29] Cf. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6. ed. ref. São Paulo: RT, 2014. p. 268.
[30] Cf. LEVASSEUR, M. Dru. Gender identity defines sex: updating the law to reflect modern medical science is the key to transgender rights. Vermont Law Review, v. 39, p. 943-1.004, 2015, p. 947.
[31] Sobre o sofrimento dos transexuais, assevera J. P. Remédio Marques que “a sexualidade, só por si, impregna a personalidade da pessoa. Na realidade, a tradicional distinção entre os caracteres sexuais anatómicos e funcionais já não se esgrime com sucesso, pois que a marca da sexualidade se topa, aqui e acolá, em todas as manifestações da vida. Ou melhor, aqui mais do que alhures, a relação corpo-alma compensada, por sua vez, pela identificação normativa sexual, a partir dos dados externo-corpóreos. Intui-se, deste modo, o drama daqueles indivíduos que, por formas diversas, apresentam um desenvolvimento sexual-anatómico-funcional ou psicológico-social desviante” (Mudança de sexo, cit., p. 136).
[32] Neste sentido, vide: VENTURA, Miriam. Transexualidade: algumas reflexões jurídicas sobre a autonomia corporal e a autodeterminação da identidade sexual. In: RIOS, Roger Raupp (Org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 142.
[33] Cf. VENTURA, Miriam. Transexualidade: algumas reflexões jurídicas sobre a autonomia corporal e a autodeterminação da identidade sexual. In: RIOS, Roger Raupp (Org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 142.
[34] Como está bem esmiuçado, relativamente a Portugal e a outros Estados europeus, em: MARQUES, J. P. Remédio. Mudança de sexo, cit., p. 413 e ss; relativamente ao Brasil, alguns consideram o casamento de um transexual inexistente, outros consideram um casamento anulável, com fundamento no erro essencial da pessoa do cônjuge (art. 1.557, I, do CC). Entretanto, existem aqueles que afirmam que o casamento é válido, uma vez que o sexo biológico fora alterado, juntamente com a genitália do indivíduo. Para além disso, a capacidade procriativa não é requisito para a validade de um casamento. Ademais, “a dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre qualquer estrutura institucional”. Neste sentido, vide: SPENGLER, Fabiana Marion. Os transexuais e a possibilidade jurídica do casamento, cit., p. 116-117.
[35] No mesmo sentido, cf.: DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI, cit., p. 269.
[36] Cf. arts. 6º e 196 da CF.
[37] De igual maneira se manifesta: VIEIRA, Tereza Rodrigues. O direito do transexual e a bioética. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 125, 8 nov. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4354>. Acesso em: 9 out. 2014.
[38] Consultar em igual sentido: DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI, cit., p. 280.
[39] VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade. Coimbra: Almedina, 2006. p. 73.
[40] “Tanto o nome quanto o gênero sexual – que é a identificação através da designação do grupo social – não têm mais importância na identificação do indivíduo. O nome e o gênero sexual cumprem duas funções: de representação, que é como o sujeito se reconhece e assim se apresenta no meio social; e de identificação, como o meio social o reconhece. Convenção social determina que o prenome seja capaz de identificar o gênero sexual. Assim, incoerente e atentatório ao próprio fundamento do nome sobre o cidadão que este seja uma imposição ou uma fonte geradora de discriminação, como no caso dos indivíduos transexuais e travestis.” (DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI, cit., p. 279)
[41] “ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração de registro civil. O nome das pessoas, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte.” (TJRS, AC 70013909874, 7ª C. Cív, Relª Desª Maria Berenice Dias, j. 05.04.06)
[42] “Biometria é a ciência do reconhecimento da identidade de alguém por meio de atributos físicos ou comportamentais, como a face, impressões digitais, voz e íris utilizando para isso tecnologia eletrônica e recursos informáticos. A utilização de técnicas biométricas tem sido cada vez maior, como, por exemplo, em documentos de identidade nacional e internacional, controle de acesso físico ou de dados, controle da identidade para fins de transações comerciais, finalidades criminais, etc. As evoluções desse campo acompanham o ritmo da evolução da tecnologia contemporânea, ou seja, são extremamente aceleradas.
Entre as técnicas de biometria encontram-se as que se baseiam em atributos oculares como as características da íris e da retina. Sobretudo a primeira, a biometria da íris, tem encontrado uma utilização cada vez mais frequente no dia a dia do cidadão comum, e tende a ter cada vez maior utilização prática.” (GARCIA, Iberê Anselmo. A segurança na identificação: a biometria da íris e da retina. Dissertação de Mestrado em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia. São Paulo: FDUSP, 2009. p. 1-2)
[43] “O conteúdo recomendado das cartas de referência para cirurgias é:
- Características gerais de identificação da pessoa usuária do serviço;
- Resultados da avaliação psicossocial da pessoa usuária do serviço, incluindo diagnósticos;
- Duração da relação do/a profissional com a pessoa usuária do serviço, incluindo o tipo de avaliação e terapia ou aconselhamento até a data;
- Uma explicação que os critérios para a terapia hormonal foram cumpridos, e uma breve descrição do raciocínio clínico para apoiar o pedido da pessoa para a terapia hormonal;
- Uma declaração sobro o fato de que a pessoa usuária do serviço entregou o seu consentimento informado;
- Uma indicação de que o/a profissional de saúde que encaminha está disponível para a coordenação dos cuidados e espera um telefonema para defini-la.
Para os(as) fornecedores(as) que trabalham dentro de uma equipe multidisciplinar especializada, uma carta pode não ser necessária; a avaliação e a recomendação podem ser documentadas no registro clínico da pessoa usuária do serviço.” (WPATH. Normas de atenc¸a~o a` sau´de das pessoas trans e com variabilidade de ge^nero, cit.)
[44] Segundo a Associação Espanhola de Endocrinologia, para que um indivíduo possa conseguir a sua identidade sexual, deve ser incluído em uma equipe multidisciplinar que aplique os protocolos estabelecidos internacionalmente. Este processo se baseia no consenso da Associação Harry Benjamin, no qual se pormenorizam os passos a seguir. Deve ser atendido, inicialmente, por um psiquiatra que diagnostique o caso e sirva de suporte psicológico durante todo o processo. Efetivamente, primeiro deve-se descartar a possibilidade de o indivíduo sofrer de psicose ou algum transtorno de personalidade. A seguir, o especialista em endocrinologia prescreverá o tratamento hormonal adequado, por um período de mais ou menos dois anos. Durante este tempo, as modificações no corpo irão acompanhando as modificações sociais. Por fim, com pareceres favoráveis do endocrinologista e do psiquiatra, a pessoa em questão será submetida às intervenções cirúrgicas que farão desaparecer os caracteres sexuais que abomina e implantar os caracteres do novo sexo. As transexuais femininas terão mamas implantadas e o pênis amputado, com a consequente modelação de uma vagina artificial. Os transexuais masculinos terão os seios extirpados, assim como o útero e os ovários, e posteriormente deverão se submeter a uma reconstrução do pênis, de técnica complexa, e a uma implantação de próteses de testículos (AMAYUELAS, Esther Arroyo i. Sexo, indentidad de género y transexualidad. In: Matrimonio homosexual y adopción: perspectiva nacional e internacional. Madrid: Editorial Reus, 2006. p. 118).
[45] Curiosamente, mesmo a Resolução tendo sido editada em 2010, ainda faz menção à maioridade civil do Código de 1916. Entende-se que, onde se lê 21 anos, deve-se ler 18 anos, por tal determinação estar em desacordo com as normas vigorantes no sistema atual.
[46] Sobre a questão, afirma Maria Berenice Dias que “para os transexuais o discurso do sofrimento faz parte do diagnóstico, expresso pelo desconforto e vontade de aniquilar os genitais. É o sofrer do cidadão que lhe assegura direitos, e não sua própria cidadania, sua autonomia, seu direito ao livre-desenvolvimento da personalidade. O cidadão transexual tem de, por dois anos, demonstrar o descontetamento com o seu corpo e alegar que isso lhe causa sofrimento para ser considerado transexual, seja isso verdade ou não. A verdade, afinal, ele já traz consigo desde que se descobriu transexual. Mas para ter acesso à cirurgia, à saúde, precisa mostrar que somente ela fará cessar seu sofrimento, real, inventado ou exagerado” (Homoafetividade e os direitos LGBTI, cit., p. 277).
[47] Portaria nº 1.707/08 do Ministério da Saúde, de 18 de agosto.
[48] No mesmo sentido se manifesta VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: RT, 2011. p. 415.
[49] Cf. VENTURA, Miriam. Transexualidade: algumas reflexões jurídicas sobre a autonomia corporal e a autodeterminação da identidade sexual. In: RIOS, Roger Raupp (Org.). Em defesa dos direitos sexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 143.
[50] “REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PRENOME. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE. APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO. O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário à situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada está a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei nº 6.015/73 e da Lei nº 9.708/98. Recurso provido.” (TJRS, AC 70001010784, 7ª C. Cív., Rel. Des. Luis Felipe Brasil Santos, j. 14.06.00)
[51] DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça, cit., p. 123.
[52] SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: RT, 2011. p. 425.
[53] Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
[54] “PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO EM RELAÇÃO AO SEXO. TRANSEXUALISMO. IMPLEMENTAÇÃO DE QUASE TODAS AS ETAPAS (TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO E INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS PARA RETIRADA DE ÓRGÃOS). DESCOMPASSO DO ASSENTO DE NASCIMENTO COM A SUA APARÊNCIA FÍSICA E PSÍQUICA. RETIFICAÇÃO PARA EVITAR SITUAÇÕES DE CONSTRANGIMENTO PÚBLICO. POSSIBILIDADE DIANTE DO CASO CONCRETO. AVERBAÇÃO DA MUDANÇA DE SEXO EM DECORRÊNCIA DE DECISÃO JUDICIAL. REFERÊNCIA NA EXPEDIÇÃO DE CERTIDÕES. É possível a alteração do registro de nascimento relativamente ao sexo em virtude do implemento de quase todas as etapas de redesignação sexual, aguardando o interessado apenas a possibilidade de realizar aneofaloplastia. Recurso provido por maioria.” (TJRS, 8ª C. Cível, AC 70019900513, Rel. Des. Cláudio Fidélis Faccenda, j. 13.12.07).
“APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. PRENOME E GÊNERO. TRANSEXUALISMO. PROBIÇÃO DE REFERÊNCIA QUANTO À MUDANÇA. POSSIBILIDADE. Determinada a alteração do registro civil de nascimento em casos de transexualidade, desde que demonstrada a existência da alopatia, é imperiosa a proibição de referência no registro civil quanto à mudança, a fim de preservar a intimidade do apelado. Negaram provimento.” (TJRS, 8ª C. Cível, AC 70021120522, Rel. Des. Rui Portanova, j. 11.10.07)
[55] Cf. DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito & a justiça (2006), cit., p. 122. Nesse sentido, alguns julgados de Tribunais de todo o Brasil:
“RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUAL QUE PRESERVA O FENÓTIPO MASCULINO. REQUERENTE QUE NÃO SE SUBMETEU À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, MAS QUE REQUER A MUDANÇA DE SEU NOME EM RAZÃO DE ADOTAR CARACTERÍSTICAS FEMININAS. POSSIBILIDADE. ADEQUAÇÃO AO SEXO PSICOLÓGICO. LAUDO PERICIAL QUE APONTOU TRANSEXUALISMO. Na hipótese dos autos, o autor pediu a retificação de seu registro civil para que possa adotar nome do gênero feminino, em razão de ser portador de transexualismo e ser reconhecido no meio social como mulher. Para conferir segurança e estabilidade às relações sociais, o nome é regido pelos princípios da imutabilidade e da indisponibilidade, ainda que o seu detentor não o aprecie. Todavia, a imutabilidade do nome e dos apelidos de família não é mais tratada como regra absoluta. Tanto a lei, expressamente, como a doutrina, buscando atender a outros interesses sociais mais relevantes, admitem sua alteração em algumas hipóteses. Os documentos juntados aos autos comprovam a manifestação do transexualismo e de todas as suas características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável contrariedade pela identificação sexual masculina que tem hoje. O autor sempre agiu e se apresentou socialmente como mulher. Desde 1998 assumiu o nome de ‘Paula do Nascimento’. Faz uso de hormônios femininos há mais de vinte e cinco anos e há vinte anos mantém união estável homoafetiva, reconhecida publicamente. Conforme laudo da perícia médico-legal realizada, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico decorre de transexualismo. O indivíduo tem seu sexo definido em seu registro civil com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento. No entanto, com o seu crescimento, podem ocorrer disparidades entre o sexo revelado e o sexo psicológico, ou seja, aquele que gostaria de ter e que entende como o que realmente deveria possuir. A cirurgia de transgenitalização não é requisito para a retificação de assento ante o seu caráter secundário. A cirurgia tem caráter complementar, visando à conformação das características e à anatomia ao sexo psicológico. Portanto, tendo em vista que o sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo e considerando que o requerente se sente mulher sob o ponto de vista psíquico, procedendo como se do sexo feminino fosse perante a sociedade, não há qualquer motivo para se negar a pretendida alteração registral pleiteada. A sentença, portanto, merece ser reformada para determinar a retificação no assento de nascimento do apelante para que passe a constar como ‘PN’. Sentença reformada. Recurso provido.” (TJSP, AC 0013934-31.2011.8.26.0037, 10ª C. Dir. Priv., Rel. Carlos Alberto Garbi, j. 23.09.2014)
“RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. ALTERAÇÃO DO NOME E DO SEXO. TRANSEXUAL. INTERESSADO NÃO SUBMETIDO À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CONDIÇÕES DA AÇÃO. PRESENÇA. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. AUSÊNCIA. SENTENÇA CASSADA. O reconhecimento judicial do direito dos transexuais à alteração de seu prenome conforme o sentimento que eles têm de si mesmos, ainda que não tenham se submetido à cirurgia de transgenitalização, é medida que se revela em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Presentes as condições da ação e afigurando-se indispensável o regular processamento do feito, com instrução probatória exauriente, para a correta solução da presente controvérsia, impõe-se a cassação da sentença.” (TJMG, AC 1.0521.13.010479-2/001, 6ª C. Cív., Rel. Des. Edilson Fernandes, j. 22.04.2014)
[56] “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO EM QUE SE PLEITEIA A ALTERAÇÃO DE NOME E SEXO EM ASSENTO DE NASCIMENTO. Insurgência contra a decisão que determinou a suspensão do processo até a data marcada para a realização da cirurgia de transgenitalização. Acerto da decisão recorrida quanto à modificação de sexo no registro. Possibilidade de antecipação da tutela no tocante à mudança do prenome, passando a se adotar no registro o nome social do requerente. Art. 273, § 6º, do CPC. Parecer subscrito por dois peritos a confirmar que o requerente é social e profissionalmente reconhecido como mulher. Identidade social em conflito com o nome de registro. Alteração do nome que independe da realização da operação programada. Necessidade da modificação do nome evidenciada. Decisões judiciais sobre a possibilidade de alteração de nome civil. Art. 57 da Lei nº 6.015/73. Recurso parcialmente provido. Art. 557, § 1º-A, do CPC.” (TJRJ, AI 0060493-21.2012.8.19.0000, 6ª C. Cív., Rel. Des. Wagner Cinelli de Paula Freitas, j. 08.03.2013)
[57] “RETIFICAÇÃO DE ASSENTO. PORTADOR DE TRANSEXUALISMO QUE FUNDAMENTA SUA PRETENSÃO EM SITUAÇÕES VEXATÓRIAS E HUMILHANTES. Extinção da ação sob o fundamento de que não realizada a cirurgia de transgenitalização. Descabimento. Informações prestadas pelo médico psiquiátrico, que identificam incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade que a parte autora relatou sentir. Cirurgia de transgenitalização que possui caráter secundário. Sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo. Recurso provido com determinação.” (TJSP, APL 0082646-81.2011.8.26.0002, Ac. 7145642, 8ª C. Dir. Priv., Rel. Des. Helio Faria, j. 30.10.2013)