A TUTELA DE EVIDÊNCIA
Leandro Maioli
O Código de Processo Civil, entre outras iniciativas tomadas no intuito de aproximar o jurisdicionado do direito, ampliou as hipóteses de aplicação da tutela de evidência.
O Código de Processo Civil atual é fruto de um movimento de modernização da sistemática processual vigente, que tem como principal intuito melhorar a efetividade da justiça, e aproximar a lei processual dos anseios da sociedade.
Não por acaso, assim é inaugurada a exposição de motivos do anteprojeto do Código ora vigente:
“Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito.
Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo.”
Nesse sentido, o Código extingue, funde e cria institutos visando reduzir o tempo médio de duração do processo, ou, na pior das hipóteses, abrandar os efeitos negativos decorrentes da demora.
Seguindo essa linha, amplia de forma significativa a possibilidade de aplicação da tutela de evidência no processo.
CONCEITO
A tutela de evidência é uma das espécies das tutelas provisórias, ao lado das tutelas de urgência, como demonstra o esquema abaixo:
A tutela de evidência, junto com as demais espécies de tutelas provisórias, é instrumento de importância ímpar no movimento de aproximar a justiça do jurisdicionado, e extirpar ou reduzir os males gerados pelo prolongamento do processo no tempo.
O instituto amplia de forma considerável a possibilidade de se conceder à parte, instantânea e preliminarmente, direito que só seria reconhecido ao final o procedimento, com a prolação da sentença.
A tutela de evidência, como o próprio nome indica, pode ser concedida com base em apenas um requisito: a plausibilidade do direto invocado. Havendo elementos suficientes a demonstrar, preliminarmente, a existência do direito, e estando presentes determinadas condições, a tutela de evidência torna-se cabível.
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER[1] é precisa ao caracterizar a tutela de evidência e sua função: “Há situações em que o direito invocado pela parte se mostra com um grau de probabilidade tão elevado, que se torna evidente. Nessas hipóteses, não se conceber um tratamento diferenciado, pode ser considerado como uma espécie de denegação da justiça, pois, certamente, haverá o sacrifício do autor diante do tempo do processo. (…) É, pois, com esse foco que se estruturou no NCPC um tratamento diferenciado para as tutelas de evidência, permitindo-se ao autor, mediante a demonstração da evidência de seu direito, a antecipação dos efeitos da tutela final ou mesmo uma tutela conservativa.”
O valor do instituto é justamente o de poder anular ou minimizar prejuízos decorrentes do tempo de tramitação do processo, concedendo antecipadamente a tutela à parte que mais e aproxima do direito em disputa.
HIPÓTESES DE APLICAÇÃO
De início, parece questionável autorizar a antecipação dos efeitos da tutela tão somente porque a parte autora apresentou fundamentos consistentes defender o direito invocado.
Mas a Lei, de forma didática, tratou de limitar sua aplicação a hipóteses predefinidas. Somente quando verificadas as hipóteses previstas em Lei, portanto, haverá suficiente evidência do direito demonstrado pelo autor, justificando a concessão da tutela.
O caput do artigo 311 do Código, primeiramente, reafirma que a tutela de evidência pode ser concedida “independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo”. Na sequência, passa a estabelecer em seus incisos quais as situações em que o instituto poderá ser aplicado.
O inciso I trata da possibilidade de concessão da tutela de evidência quando há “abuso do direito de defesa” ou “manifesto propósito protelatório” do réu.
É interessante a lógica estabelecida pelo Legislador de, ao verificar manifesta intenção do réu de retardar o processo, inverter as regras do jogo, e antecipar ao autor o direito que lhe seria concedido apenas e tão somente quando proferida a sentença, ou quando julgado o recuso de apelação, que em regra tramita sob efeito suspensivo.
A antecipação da tutela nessa hipótese causa dois efeitos muito positivos: (i) evita ou minimiza os prejuízos causados ao autor com o atraso da marcha processual; e (ii) força o réu a mudar de postura, na medida em que somente uma atuação ativa e incisiva poderá, se houver justa razão para tanto, reverter a concessão da tutela de evidência ao autor.
LUIZ GUILHERME MARINONI[2] vai além, e afirma que tal inciso “deve ser lido como uma regra aberta que permite a antecipação da tutela sem urgência em toda e qualquer situação em que a defesa do réu se mostre frágil diante da robustez dos argumentos do autor – e da prova por ele produzida – na petição inicial”.
Poder-se-ia questionar, nesse cenário, onde está o direito evidente do autor, se é a conduta do réu que dá ensejo à concessão da tutela. O ponto a ser observado é que justamente na conduta procrastinatória do réu revela-se a probabilidade do direito do autor. Medidas protelatórias, adotadas para retardar o andamento do feito traduzem-se em atestado de culpa. Teme a sentença aquele que deve. Quem possui o direito faz questão de persegui-lo, e anseia pela decisão final.
Já na hipótese prevista no inciso II do artigo 311, autoriza-se a concessão da tutela de evidência quando “as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante”.
A probabilidade do direito aqui precisa ser robusta, quase inafastável. No aspecto fático, a Lei exige comprovação documental (prévia e suficiente), e no aspecto do direito, tese firmada em precedente vinculante.
Quanto ao precedente, tem se admitido sua ampliação, podendo ser considerada qualquer súmula dos Tribunais Superiores, ainda que sem força vinculante[3].
O desafio daquele que postula pela tutela com base nesse inciso é realizar o devido cotejo analítico, demonstrando que o precedente possui similitude fática com o caso concreto.
No inciso III, admite-se a concessão da tutela de evidência quando “se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito”.
A medida serve para exigir do réu a devolução de bem depositado aos cuidados da parte adversa. Aqui também se exige prova documental prévia. Mas nesse caso, a prova é específica, o próprio contrato, ou outra apta a demonstrar que se obrigou o réu a fazer guarda do bem.
Sobre o tema, o Código de Processo Civil antecedente dedicava capítulo exclusivo à “ação de depósito” prevendo, inclusive, a prisão do depositário infiel[4].
Mesmo antes do advento do Código atual, a possibilidade de prisão civil do depositário infiel já havia sido rechaçada por pacificada jurisprudência. Isso não impede, contudo, eventual prisão em flagrante ou condenação do depositário infiel pelo crime de apropriação indébita, se houver indícios suficientes para tanto.
Hoje já não há mais disposição específica sobre a ação de depósito, de modo que, com a concessão da tutela de evidência, o processo seguirá o rito comum.
Por fim, a tutela de evidência pode ser concedida quando “a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável”, hipótese prevista no inciso IV do artigo de Lei sob análise.
Aqui a plausibilidade do direito também precisa ser demonstrada, mas num nível aquém das hipóteses previstas nos incisos II e III, por uma razão muito simples: a tutela só poderá ser concedida após o exercício do contraditório.
A prova documental preliminar permanece indispensável. A tese jurídica, por sua vez, também precisa ser robusta, mas não necessariamente amparada em precedente vinculante.
As provas e argumentos trazidos pelo autor são confrontados com os argumentos trazido pelo réu em contestação. Caberá a tutela se o réu não obter êxito em “gerar dúvida razoável” acerca do direito demonstrado pelo autor.
É verdade que o pedido de tutela baseado nessa hipótese força o Juízo a realizar um pré-julgamento da causa, e se pender a balança para o lado do autor, a tutela poderá ser antecipada.
Não há qualquer risco à imparcialidade do magistrado no caso, na medida em que a decisão é preliminar, e poderá ser revista a qualquer tempo até a prolação da sentença.
Ainda, se o réu não foi capaz de levantar dúvida razoável quanto ao direito invocado pelo autor, não merece ser beneficiado pelo lapso temporal de tramitação do processo. O tempo passa a servir quem largou na frente.
Deve-se distinguir, ainda, a hipótese prevista no inciso IV do artigo 311, com aquela prevista no artigo 355, inciso I, que autoriza o julgamento antecipado.
A não oposição, em contestação, de prova capaz de gerar dúvida razoável quanto ao direito pleiteado pelo autor não autoriza, por si só, o julgamento antecipado.
O protocolo de uma defesa pobre não impede o réu de produzir provas que podem fortalecer sua defesa. É seu direito produzi-las.
Porém, tal instrução probatória acaba prejudicando o autor, que de largada apresentou robusta documentação a comprovar seu direito.
É exatamente para evitar esse prejuízo que a tutela de evidência tem aplicação, antecipando a tutela à parte que largou na frente, e postergando uma análise definitiva e exauriente sobre a questão na sentença, quando estiver concluída a instrução probatória.
Salienta-se que conforme disposto no parágrafo único do artigo 311, nas hipóteses previstas nos incisos II e III, a concessão da medida pode ser imediata, inaldita altera pars. A contrário senso, nas demais hipóteses (incisos I e IV), o contraditório mostra-se imprescindível.
Faz-se a observação de que, protocolada a petição inicial e apresentada a contestação, formado está o contraditório, podendo, a partir desse momento, ser apreciada a aplicação da tutela com base nos incisos I e IV. Parece exagerado e contraproducente interpretar que o réu precisa se manifestar especificamente sobre o pedido de tutela antes de ser apreciado o pedido.
Como se vê, o grande trunfo da tutela de evidência, no aspecto prático, é o de permitir a antecipação da tutela, independentemente da demonstração do binômio fumus boni iuris x periculum in mora, que fundamenta todo e qualquer outro pedido de antecipação de tutela.
Curiosamente, em que pese basear-se a tutela de evidência na demonstração de apenas um dos requisitos, este deve estar presente de forma incisiva, em tinta forte, indelével, para justificar a sua concessão
FUNGIBILIDADE
O princípio da fungibilidade debutou no ordenamento jurídico pátrio no artigo 810 do Código de Processo Civil de 1939, que autorizava o recebimento de um recurso por outro, na hipótese do erro não se configurar erro grosseiro. Até em razão de sua origem histórica, a aplicação do princípio da fungibilidade no ordenamento jurídico brasileiro é muito comum em questões atreladas aos recursos.
Ocorre que tal princípio já extrapola a esfera recursal, e permeia todo o processo civil, tendo atualmente importante aplicação nas tutelas provisórias, em especial no que se refere às tutelas cautelar e antecipada.
Em muitas situações, não é fácil determinar qual delas seria cabível. O Código de Processo Civil, seguindo disposição já existentes no Código revogado, autoriza, pelo princípio da fungibilidade, que o juiz autorize a concessão da tutela antecipada quando requerida sob a denominação de cautelar, e vice-versa (art. 305, parágrafo único).
O que pouco se fala, entretanto, é a possibilidade de aplicação da fungibilidade entre as tutelas de urgência e de evidência.
Em que pese muitos doutrinadores defendam a ideia de aplicação ampla da fungibilidade entre as tutelas provisórias, poucos se debruçam sobre o tema com profundidade.
Em uma breve reflexão sobre o tema, é inegável haver um grande ponto de conexão entre todas as tutelas provisórias. Sendo de urgência ou de evidência, qualquer delas esbarra na consistência jurídica dos argumentos trazidos pela parte (plausibilidade ou evidência do direito invocado).
Desta feita, na hipótese da parte requerer a tutela de urgência, mas conseguir demonstrar apenas a probabilidade do direito, questiona-se se não seria o caso do juízo deferir a tutela, mas a de evidência, aplicando, para tanto, o princípio da fungibilidade.
Em uma interpretação ampliativa da Lei, se a plausibilidade do direito invocada for demonstrada, e aplicar-se ao caso uma das hipóteses do artigo 311 (em especial as dos incisos II e IV), parece justo que Juízo, com base na fungibilidade, defira a tutela de evidência, ainda que se tenha requerido uma tutela de urgência.
A despeito de não enfrentar a questão a fundo, MARINONI[5] defende que a fungibilidade deve ser aplicada “entre os pedidos de tutelas provisórias da maneira mais ampla possível”.
Portanto, ainda que se reconheça restrita sua aplicação, sendo possível a aplicação a fungibilidade entre a tutela de evidência e a tutela de urgência, deve o juízo aplicá-la, para conceder a tutela ao litigante.
CONCLUSÃO
O Código de Processo Civil, entre outras iniciativas tomadas no intuito de aproximar o jurisdicionado do direito, ampliou as hipóteses de aplicação da tutela de evidência.
Essa modalidade de tutela provisória possibilita ao juízo retirar do autor que bem fundamentou seu direito, os prejuízos decorrentes do tempo de duração do processo.
Diferentemente das tutelas de urgência, a tutela de evidência não prescinde de qualquer demonstração de risco para sua concessão. Nem mesmo a demonstração da plausibilidade do direito é suficiente, por si só, para justificar a tutela de evidência. Tal demonstração deve estar presente, mas se filiar a uma das hipóteses previstas nos incisos do artigo 311 do Código de Processo Civil.
Devido ao ponto de contato com as tutelas de urgência, não se pode negligenciar a possibilidade, ainda que limitada, de aplicar o princípio da fungibilidade entre elas.
Possível seria, nessa linha, conceder tutela de evidência ao litigante que, pleiteando pela tutela de urgência, não consiga demonstrar a urgência da medida, mas bem fundamenta seu direito. Ocorre que a fungibilidade só teria aplicação, se aplicável ao caso uma das hipóteses previstas no artigo 311 do Código de Processo Civil.
Lamenta-se, por fim, que pouco difundida e comentada, a tutela de evidência vem sendo subutilizada. Medidas que visam reduzir os impactos causados às partes pelo tempo de duração do processo são importantes e se coadunam com os anseios da sociedade. Espera-se que, com o tempo, o instituto receba o protagonismo que merece.
[1] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros comentários ao novo código de processo civil – artigo por artigo – 2 ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 578.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume II – 2 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 211.
[3] Enunciado 30, ENFAM: É possível a concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, II, do CPC/2015 quando a pretensão autoral estiver de acordo com orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade ou com tese prevista em súmula dos tribunais, independentemente de caráter vinculante.
Enunciado 31, ENFAM: A concessão da tutela de evidência prevista no art. 311, II, do CPC/2015 independe do trânsito em julgado da decisão paradigma.
[4] Art. 904, CPC/73. Julgada procedente a ação, ordenará o juiz a expedição de mandado para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro.
Parágrafo único. Não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão do depositário infiel.
[5] Este conteúdo pode ser compartilhado na íntegra desde que, obrigatoriamente, seja citado o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/347755/a-tutela-de-evidencia
MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume II – 2 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 222.