TRANSAÇÃO HOMOLOGADA: ANULATÓRIA OU RESCISÓRIA?
Teresa Arruda Alvim
Maria Lúcia Lins Conceição
A doutrina divergia profundamente a respeito de qual seria o discrimen adequado para se saber se, de uma sentença homologatória de transação, deveria caber ação anulatória ou rescisória.
À época em que estava em vigor o CPC de 1973, havia muita controvérsia em torno de qual seria a medida cabível para desconstituir (ou anular) sentença homologatória de atos de disposição de direito material. Se, de um lado, parecia caber a ação rescisória, tendo em vista que o art. 269, do CPC/73 (art. 487, do CPC/15), incluía esses pronunciamentos judiciais no rol das sentenças de mérito, e, ademais, o art. 485, V, fazia menção a transação, de outro, havia o art. 486, que previa a ação anulatória para atos que seriam objeto de homologação (“meras” homologações).
Além disso, a redação dos dispositivos do CPC/73 era muito confusa, principalmente a do art. 486, o que acirrava a controvérsia. O artigo dizia: “Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil“. Por atos judiciais, a lei queria referir-se a atos das partes realizados em juízo. A expressão “pode ser rescindida”, entendia-se à época, deveria ser lida como “podem ser anulados”. A referência à lei civil era tida por injustificadamente restritiva, devendo-se entender que os motivos de anulabilidade seriam os previstos em quaisquer normas de direito material, inclusive em lei estrangeira.
O art. 485, VIII, por sua vez, dispunha ser cabível ação rescisória quando houvesse “fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença”. Ocorre que nem a confissão era ato sujeito à homologação, nem a desistência levava à sentença de extinção do processo com julgamento de mérito, único pronunciamento judicial (à luz do CPC/73) de que seria cabível a ação rescisória. Por isso, a interpretação que se fazia do art. 485, VIII, era no sentido de que (i) a expressão confissão deveria ser entendida no sentido amplo, compreendendo o reconhecimento jurídico do pedido; (ii) a expressão desistência, por sua vez, deveria ser lida como renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação; (iii) uma vez que o art. 352, II, do CPC/73, também se referia à confissão, a interpretação harmônica com o art. 485, VIII, deveria ser no sentido de que a ação anulatória seria cabível para anular a confissão emanada de erro, dolo ou coação, ou qualquer outra causa de invalidação, quando o processo em que se deu ainda estivesse em curso. Depois do trânsito em julgado, e desde que a sentença tivesse por fundamento, senão único, mas determinante, a confissão viciada, cabível seria a ação rescisória.
Fazia-se, à época, uma distinção, para resolver os problemas criados pela lei: a parte deveria lançar mão da ação anulatória, quando sua pretensão estivesse voltada ao vício de invalidação do ato de disposição do direito material. Quando, porém, o objeto da ação fosse a invalidação da própria homologação do ato de disposição, por vício presente no ato estatal, cabível seria a ação rescisória. Isto porque as situações de homologação de transação, renúncia e reconhecimento jurídico do pedido pareciam encartar-se em ambos os dispositivos. Este discrimen resolvia a situação.
Também porque o art. 486 do CPC de 1973 trazia a expressão meramente homologatória, a doutrina procurava, com base na palavra meramente, estabelecer outro critério para se considerar cabível ação rescisória ou ação anulatória. Dizia-se que quando o juiz havia participado da concepção do teor do acordo, seria caso de ação rescisória; sendo, todavia, a sentença, meramente homologatória, caberia ação rescisória.
A nosso ver, estes malabarismos interpretativos se tornaram desnecessários porque (i) no art. 966, I a VIII, a lei não traz mais hipóteses de rescisão de atos autocompositivos do litígio (ii) a lei não usa mais a expressão “meramente”. Portanto, toda e qualquer interpretação que encampe tais explicações para problemas que a nova lei não traz mais, devem, a nosso ver, ser afastadas.
O CPC atual procurou, de fato, dissipar a controvérsia, não reproduzindo o teor do art. 485, VIII, do CPC/73. Dispôs, em seu art. 966, § 4°, que “Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei“.
O legislador aprimorou a redação do dispositivo, mas, ainda, assim, há aspectos que não traduzem com nitidez qual é o objeto da ação anulatória e a cujos vícios diz respeito. A própria expressão ação anulatória dá a equivocada impressão de que somente seria cabível nas hipóteses de vícios que ensejam a anulabilidade, previstas no Código Civil, o que não é correto, vez que também poderão dizer respeito a causas de nulidade absoluta.
Embora a disciplina da ação anulatória tenha se mantido no mesmo capítulo destinado à ação rescisória (o que não se justifica), a redação do art. 966, § 4° afasta de vez a posição no sentido de que se teria encampado o posicionamento no sentido de que o meio adequado para impugnar os atos de disposição de direitos – reconhecimento jurídico do pedido, renúncia à pretensão e transação – homologados em juízo é a ação rescisória, até porque nada se diz a respeito no art. 966, I a VIII.
Não se justifica, dessa forma, à luz do art. 966, § 4°, do CPC/15, que, na doutrina[1] e jurisprudência[2], ainda haja vozes que pretendam manter a discussão, insistindo no cabimento da ação rescisória porque se estaria em face de sentença de mérito, nos termos do art. 487 do mesmo diploma legal. Nada se diz, na lei, quanto à impossibilidade de sentenças de mérito ficar sujeitas à ação anulatória!
Aliás, isto não seria propriamente uma novidade no processo civil brasileiro. Como se lembrou, a doutrina divergia profundamente a respeito de qual seria o discrimen adequado para se saber se, de uma sentença homologatória de transação, deveria caber ação anulatória (art. 486) ou rescisória (art. 485). Muitos optavam por entender que sentenças de mérito poderiam ser impugnadas pela ação do art. 486, apesar de haver trânsito em julgado. Nestes casos: ou se sustenta que a ação anulatória teria verdadeira função rescindente; ou que, anulado ou declarado nulo o ato homologado, a homologação se esvaziava, passava a carecer de sentido jurídico.
Embora o legislador tenha feito referência, no § 4°, do art. 966, a atos de disposição de direitos praticados pelas partes ou participantes do processo, parece-nos que a ação anulatória não tem por objeto, exclusivamente os atos praticados pelas partes, posteriormente levados à homologação judicial, mas também, como se disse, a própria homologação[3]. No CPC revogado a menção a “atos judiciais” levava a confusão e fazia com que se pudesse pensar que, na verdade, apenas a sentença homologatória é que estaria sendo anulada, porque, esta em si mesma, estaria viciada, e não o ato de disposição de direitos subjacente.
Avançou-se, sem dúvida. Agora é esperar que a doutrina e a jurisprudência entendam que as controvérsias geradas pela lei revogada não subsistem, porque o Código de 2015, propositadamente, as afastou.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/287442/transacao-homologada–anulatoria-ou-rescisoria
[1] “Se há homologação de negócio jurídico sobre o objeto litigioso (transação, renúncia ao direito sobre o que se funda a ação ou reconhecimento da procedência do pedido), há decisão judicial de mérito, que, uma vez transitada em julgado, somente poderá ser desfeita por rescisória ou querela nullitatis”. Fredie Didier Jr e Leonardo Carneiro da Cunha. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3, Salvador: Juspodivm, 2017, p. 509-510.
[2] “O propósito recursal é definir, além da suposta ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, se a ação rescisória é via adequada para desconstituir sentença que homologa a renúncia ao direito sobre que se funda a ação. 3. Não há que se falar em violação dos arts. 535 do CPC/73 e 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de origem, aplicando o direito que entende cabível à hipótese, soluciona integralmente a controvérsia submetida à sua apreciação, ainda que de forma diversa daquela pretendida pela parte. 4. A decisão que homologa a renúncia ao direito em que se funda a ação tem natureza de sentença de mérito, desafiando, para a sua impugnação, o ajuizamento de ação rescisória”. (STJ, REsp 1674240/SP, 3.ª T., j. 05.06.2018, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 07.06.2018).
[3] O acordo extrajudicial é homologável perante a justiça comum. A sentença homologatória é apelável e, se transitada em julgado, anulável, pela via da ação anulatória do art. 966, § 4º, CPC.