A TESE DE CLEMÊNCIA NO TRIBUNAL DO JÚRI: UMA SOLUÇÃO POSSÍVEL
Orlando Faccini Neto
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Primeira Posição e a sua Crítica. 3 A Segunda Posição e a sua Crítica. 4 O Adequado Balizamento da Clemência. 5 Conclusão. Referências.
1 Introdução
Um dos objetivos declarados da reforma processual levada a cabo no ano de 2008, no concernente ao Tribunal do Júri, consistiu no escopo de simplificar a quesitação, em ordem a evitar que a pluralidade de perguntas, a respeito das teses defensivas, gerasse o risco de equívocos e desvirtuamento do julgamento, derivados da evidente circunstância de os jurados não ostentarem conhecimento técnico-jurídico.
Passados, contudo, alguns anos, a verdade é que a simplificação empreendida ensejou questionamentos ainda não resolvidos, e que cumpre, a esta altura, esclarecer.
Abordaremos um tema apenas, atualmente carente de solução estável, e que sucede quando, apesar do reconhecimento da materialidade e da autoria, na votação dos quesitos respectivos em Plenário do Júri, alcança-se a absolvição do acusado, por força da votação do quesito obrigatório, previsto no art. 483, § 2º, do CPP, porquanto invocada a tese de defesa consistente na clemência.
O caso a ser tomado como exemplo, em síntese, refere-se a julgamento pelo Tribunal do Júri em que a defesa expressamente invocou a tese de aplicação da clemência ao acusado.
2 A Primeira Posição e a sua Crítica
Ao votar no HC 350.895/RJ, cujo julgamento, no momento em que escrevemos, ainda não se concluiu, a Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura, do STJ, depreendeu correto o acórdão proferido pelo TJRJ, cuja ementa apontava que:
“Submetido o apelado a julgamento pelo egrégio Conselho de Sentença, os jurados votaram afirmativamente o primeiro quesito, referente à materialidade, e o segundo quesito, referente à autoria. Ao apreciarem o quinto quesito, genérico, com a indagação o jurado absolve o acusado?, o Conselho de Sentença votou afirmativamente, o que resultou na absolvição do apelado.
(…)
Embora o Conselho de Sentença não precise mostrar as razões do seu convencimento, nem por isso está dispensado de julgar o feito em conformidade com as provas contidas nos autos. Ao verificar a contradição nas respostas, deve o juiz-presidente aplicar o art. 490 do CPP.
Provimento do recurso. Unânime.”
Resumidamente, para a Ministra Maria Thereza, em “prol da obtenção da real vontade do júri, dever-se-ia proceder de modo a aclarar a quaestio, nos termos do art. 490 do Estatuto Processual Repressivo, o que não foi realizado pelo magistrado singular (…)“.
A hipótese versada neste caso, como parece curial, ostenta grande importância, em razão da imensa quantidade de Plenários do Júri que se realizam no país. A circunstância, ainda, de ser o Júri popular competente para o julgamento dos crimes que afrontam o bem jurídico de maior importância, qual seja a vida, incrementa a necessidade de uma definição efetiva sobre as balizas da quesitação e os seus corolários.
O voto aqui referido traz consequências, cujo exame não se pode olvidar.
Em primeiro lugar, visto que subjacente à tese de que a afirmação dos quesitos de materialidade e autoria implicaria em contradição com a absolvição pelo quesito genérico, está a interdição da apreciação de teses trazidas pela defesa, sobretudo quando expressamente debatidas no julgamento.
Cabe lembrar que, na situação delineada, a defesa esgrimiu, às expressas, a tese da clemência.
Entre as disposições constitucionais concernentes ao Júri sabidamente está a que o vincula ao princípio da plenitude de defesa, de extensão mais alargada do que a própria ampla defesa, em ordem tornar idônea a postulação de teses não necessariamente previstas na literalidade do art. 386 do CPP, como tendentes à absolvição do réu.
Essa limitação à invocação de teses que encontrem supedâneo nos termos do art. 386 do CPP, e que é sugerida pelo entendimento em análise, inclusive confronta com a jurisprudência do próprio STJ, que não afasta a arguição das assim chamadas causas supralegais, a exemplo da inexigibilidade de outra conduta.
Com efeito, sob o regime anterior à reforma processual de 2008, a asserção de que essa causa de exclusão da culpabilidade afigurava-se, muitas vezes, como supralegal, não impedia, antes determinava, a sua quesitação em plenário. Por exemplo, assim decidiu o STJ, em 2001:
“HOMICÍDIO. JÚRI. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. TESE DA DEFESA. POSSIBILIDADE. Por ocasião do julgamento pelo Júri, tendo a defesa formulado a tese de inexigibilidade de conduta diversa, o quesito correspondente deve ser formulado aos jurados, mesmo que inexista expressa previsão legal sobre tal tese nos dispositivos do Código Penal. Precedentes. Ordem concedida para que se possibilite a formulação de quesito acerca da causa supralegal de exclusão da ilicitude (inexigibilidade de conduta diversa).” (HC 12.917/RJ, 5ª T., Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJe 10.06.02)
Do mesmo modo, assim se pronunciou a Corte no ano de 2003: “Esta Corte firmou entendimento no sentido da possibilidade de quesito referente à causa supralegal de excludente de culpabilidade, desde que apresentada pela defesa nos debates perante o Tribunal do Júri (…)” (REsp 509.766/RS, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 29.09.03).
No HC 150.985/PE, relatado pelo Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador Convocado do TJAP), apontou-se no voto prevalecente que “não se pode excluir a hipótese de inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, bem como negar que sejam formulados quesitos acerca dessa tese no Tribunal do Júri, apenas porque não prevista em lei“.
Este entendimento foi reproduzido recentemente, em voto do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ao examinar invocação de nulidades de júri realizado em 2008, em acórdão cuja ementa registra o seguinte:
“(…)
- Nas razões da apelação e do recurso especial, o recorrente asseverou que a tese defensiva referente à inexigibilidade de conduta diversa foi levantada em plenário pela defesa técnica.
(…)
- Pela simples leitura da degravação, ora juntada aos autos, sem que haja necessidade de incursionar no conjunto fático-probatório – vedado pela Súmula nº 7/STJ -, constata-se que a inexigibilidade de conduta diversa foi alegada pela defesa em Plenário. Todavia, não foi formulado quesito a seu respeito.
- Nos termos do entendimento da Súmula nº 156 do STF, ‘é absoluta a nulidade do julgamento, pelo júri, por falta de quesito obrigatório’.
- Agravo regimental provido para, acolhida a preliminar relativa à ausência de quesito obrigatório, anular o julgamento, determinando que o réu seja a outro submetido, com a estrita observância das formalidades legais, ficando prejudicado o mérito recursal.” (AgRg no REsp 1.113.349/MS, 5ª T., Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 01.08.2016)
Essas remissões estão a revelar que a conclusão estabelecida pela posição restritiva acabaria por inviabilizar a indagação aos jurados sobre a inexigibilidade de conduta diversa, porque tanto ela quanto outras teses defensivas, que não estejam linearmente descritas nos termos da lei penal, poderiam, aceita que fosse a premissa, ensejar sempre a afirmação de contrariedade nas respostas dadas aos jurados.
Isto, para além de implicar um verdadeiro overruling, pelo qual o STJ passaria a limitar a invocação de teses de defesa aos estritos termos normativos, não resistiria a um cotejo constitucional com o princípio da plenitude de defesa.
Há mais, porém.
A solução alvitrada pela Ministra Maria Thereza consistia na aplicação do art. 490 do CPP, cujo teor é: “Se a resposta a qualquer dos quesitos estiver em contradição com outra ou outras já dadas, o presidente, explicando aos jurados em que consiste a contradição, submeterá novamente à votação os quesitos a que se referirem tais respostas“.
Sucede, porém, que a aplicação do preceito aqui apontado pode conduzir a um irremovível impasse. Bastar-nos-ia supor de que modo se resolveria a hipótese, acaso o magistrado de primeiro grau determinasse a realização de nova votação e, nesta, viesse a subsistir o mesmo resultado havido, qual seja o da afirmação da materialidade e da autoria com, não obstante, a resposta afirmativa diante do quesito genérico absolutório.
Exceto se consentirmos com a renovação sucessiva de votações tidas por contraditórias, até o ponto em que os jurados condenassem, ao fim, o acusado, o círculo vicioso assim revelado mostra que a aplicação do art. 490 do CPP a situações similares não é isenta de crítica.
A indagação a fazer-se, destarte, é se realmente há contradição na afirmação dos quesitos de materialidade e autoria, com o sucessivo voto favorável ao quesito de absolvição.
Em certos casos, não há dúvida de que essa contradição será manifesta, e não é inusual a ocorrência de julgamentos pelo Júri nos quais a defesa sustente meramente a exclusão de circunstâncias qualificadoras ou o reconhecimento do privilégio, de maneira que, em tais hipóteses, a votação dos jurados em favor da absolvição encerrará inequívoca hipótese de nova formulação dos quesitos, visto que não lhes é dado decidir com arbitrariedade.
Noutros termos, se a absolvição não foi tese desenvolvida nem mesmo pela defesa, técnica ou pessoal, tornar-se-á incongruente a afirmação do quesito absolutório, rendendo ensejo à aplicação do art. 490 do CPP.
No caso, entretanto, em que há tese defensiva de clemência, não se pode subtrair a sua análise pelos jurados, como parece ser o consectário da posição em exame, e, no mesmo compasso, o seu acatamento não pode implicar, inexoravelmente, o reconhecimento de qualquer contradição.
3 A Segunda Posição e a sua Crítica
A questão central a ser respondida é, pois, a da possibilidade ou não de reconhecimento da clemência pelos jurados.
Sua afirmativa, todavia, requer cautela, para o efeito de evitar os corolários que se extraem do voto do Ministro Saldanha Palheiro, o qual, no mesmo caso concreto, seguiu caminho diametralmente oposto ao que, no tópico anterior, comentamos.
O voto do Ministro Saldanha Palheiro, com efeito, no mesmo HC 350.895/RJ, acompanhou a divergência inaugurada na Sexta Turma do STJ pelo Ministro Rogerio Schietti e, em suma, assentou que “podem os jurados absolver o acusado, ainda que sem embasamento probatório suficiente apresentado pela defesa, sem que possa, contudo, ser combatido, ainda que por uma única vez, através do recurso de apelação à decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos“, visto que este recurso não se compatibilizaria com a metodologia da quesitação adotada a partir da reforma processual de 2008.
Dito de outro modo, consoante o voto divergente, para além de a clemência ter sido consagrada no nosso ordenamento jurídico, ter-se-ia, como consequência da nova formulação dos quesitos, a retirada da possibilidade de o MP recorrer da decisão que lhe seja desfavorável, sob o fundamento de ser, essa decisão, manifestamente contrária às provas dos autos.
O Ministro Saldanha Palheiro aduziu, ainda, duas ordens de indagações, quais sejam a de saber-se (I) se o art. 483, III, do CPP introduziu a absolvição por clemência e, em caso positivo, (II) se tal deliberação desafia o reexame por deliberação manifestamente contrária à prova dos autos. Segundo seu entendimento, a resposta positiva à primeira indagação exclui a incidência da segunda, sob pena de dar-se ensejo ao que qualifica como um paradoxo insuperável.
Pensamos que não.
Em primeiro lugar porque, colocada em termos técnicos, a afirmação de que o art. 593, III, d, do CPP doravante deveria ser lido como suscetível de viabilizar apenas e tão somente recurso pela defesa cuidar-se-ia da adoção, por via transversa, de uma declaração de nulidade parcial sem redução do texto, a qual, mantendo hígido o texto normativo, afastá-lo-ia, por inconstitucional, de uma constelação de casos sobre os quais se mostraria hábil para incidir.
Sucede que, já aí, por cuidar-se a possibilidade alvitrada de típica técnica exercida para o controle de constitucionalidade, estaria o STJ jungido aos parâmetros do art. 97 da CF, que estabelece a cláusula de reserva de plenário, para efeitos do controle difuso. A suposição de uma revogação parcial do dispositivo, em ordem a inviabilizar apenas o recurso pelo MP, confrontaria, ademais, com a teoria das normas e fragilizaria em demasia o princípio do duplo grau de jurisdição.
Além disso, a exclusão da possibilidade de o MP recorrer, pelo mérito, das decisões do Tribunal do Júri representaria inequívoca mácula ao princípio da paridade de armas, um vez que apenas hipóteses muito restritas, como os embargos infringentes em segundo grau, é que se compadecem com a admissão de recursos exclusivos pela defesa. Isto para não dizer que o STJ não está, constitucionalmente, destinado ao exercício do controle de constitucionalidade, o qual, assim, cumpre-lhe efetivar em situações excepcionais, e não por intermédio de um de seus órgãos colegiados.
O argumento, finalmente, inverte a ordem natural das coisas. É que, até a reforma processual de 2008, que introduziu o quesito genérico de absolvição, jamais se cogitou da inviabilidade de o MP recorrer das decisões do Júri pelo mérito, e parece efetivamente incongruente fazê-lo em virtude do advento de mera lei ordinária, como é a que promoveu as alterações na legislação processual.
Não podemos nos esquecer de que o Tribunal do Júri configura-se como órgão do Poder Judiciário e, se bem que ostente amplas garantias quanto à tomada de suas deliberações, não decide num vácuo jurídico ou, para dizer o mesmo em outras palavras, não está situado naquilo que se poderia qualificar como espaço livre de direito (Rechtsfreier Raum). Tanto assim que, frise-se, além dos recursos relacionados à alínea d do inciso III do art. 593 do CPP, o cabimento de revisão criminal, em certos casos, está a indicar que o poder conferido ao Júri não pode ser tido como absoluto.
Vale a pena notar, aliás, que a jurisprudência do STJ vai neste sentido, inclusive à luz da disciplina legal atual, que prevê o quesito genérico de absolvição. Na ementa do HC 243.716/ES, julgado à unanimidade pela Quinta Turma do Tribunal, fez-se registrar que:
“(…)
- Insustentável a tese de que, com as alterações promovidas no CPP pela Lei nº 11.689/08 – especialmente à luz do art. 483, III, do CPP -, passou a ser vedada a interposição de recurso de apelação ministerial com base no art. 593, III, d, do mesmo codex. Independentemente do motivo que levou os jurados a absolver o acusado, a capacidade postulatória recursal do Parquet, quando o julgamento se afigura contrário à prova dos autos, e consentânea com a paridade de armas inerente ao princípio do contraditório e do devido processo legal, em nenhum momento foi objeto de restrição pela precitada lei. Precedente.” (HC 243.716/ES, 5ª T., Relª Minª Laurita Vaz, DJe 28.03.2014)
Não é trivial essa temática, máxime em virtude de uma repercussão muitas vezes olvidada, e que diz respeito aos interesses da vítima ou de seus familiares, a respeito dos fundamentos da absolvição. A regulação normativa da ação civil, a ser intentada pela vítima ou seus familiares, consoante a previsão dos arts. 65 a 67 do CPP, não exclui que, a depender do fundamento do juízo absolutório, não obstante possa a vítima ou o interessado movimentar, em ação de conhecimento, pretensão indenizatória.
O voto do Ministro Saldanha Palheiro, porém, para além de recusar ao MP a possibilidade de recorrer da decisão do Júri com fundamento na contrariedade à prova, retira da vítima a possibilidade de, em qualquer caso de absolvição, ajuizar pedido de reparação.
Isto porque, se está admitido em seu voto que os jurados podem absolver por qualquer fundamento, ainda que em descompasso com a prova produzida, sendo, isto, insuscetível de controle judicial, pela negação à possibilidade de recurso, a rigor acaba-se por consentir com que a absolvição pelos jurados se faça por um fundamento desconhecido, oculto, em razão do qual, na órbita civil, a vítima verá interditado um direito que lhe é garantido inclusive se a absolvição derivar de legítima defesa ou estado de necessidade, em especial nos casos de desvio na execução (aberratio ictus), a teor dos arts. 929 e 930 do Código Civil.
Há uma outra consequência preocupante e que se potencializaria com a consagração da tese veiculada no voto divergente. Cuida-se, aqui, de olhar o argumento sob outra perspectiva.
A ilimitação da possibilidade de os jurados absolverem ao arrepio de qualquer elemento de convicção, somada ao impedimento de controle judicial dessa decisão, afigurar-se-ia hábil para fazer surgir o risco de julgamentos calcados em puro preconceito pois a hipótese de atuações policiais excessivas, ou mesmo o desenvolvimento de grupos tendentes ao extermínio de indivíduos relacionados com a criminalidade, poderia, por razões várias, levar o Plenário do Júri à proclamação de um veredicto de absolvição, calcado em equivocadas premissas de defesa social ou eliminação de delinquentes, as quais, na conformidade do voto divergente, simplesmente deveriam ser acatadas, dada a inviabilidade de recurso pelo MP, tudo em ordem a legitimar a proliferação de tais tipos de teses e, quiçá, de tais tipos de comportamentos.
Daí a necessidade de se percorrer uma via intermediária, que não limite em demasia a atuação do Tribunal Popular, por adstringir as suas decisões às balizas estritas do art. 386 do CPP, mas que, por outro lado, também não a amplie sem mais, retirando da apreciação recursal o fundamento da decisão, de maneira a configurar para o Júri uma tal liberdade que facilmente ver-se-ia na virtualidade de converter-se em arbítrio.
4 O Adequado Balizamento da Clemência
Em texto publicado no sítio jurídico Conjur, no dia 18 de junho de 2016, os Professores Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade afirmaram que “não se pode tirar da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri a tese de que o jurado não tem compromisso com a coerência ou com a integridade do direito. Se for verdadeira a tese de que o júri absolve como quer, tem-se também que ele pode condenar como quer. Logo, anarché“.
Nesta linha, retornando a um argumento anteriormente tratado, é de se relembrar que o STJ, por várias vezes, no regime anterior alusivo ao Júri, admitiu a formulação de quesitos aos jurados sobre a inexigibilidade de conduta diversa, tida como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
A circunstância de a tese não estar prevista em dispositivo legal específico não significa, tout court, que esteja para além das muralhas da cidadela jurídica. Dito em outras palavras, ser a tese supralegal não é o mesmo que dizer que não se situe no âmbito do direito, considerado como um todo. Faria Costa (2009, p. 121), aliás, é quem lembra que o “preenchimento, quadrícula a quadrícula, por mais infinitesimal que seja, da rede de comportamentos humanos através de normas jurídicas” mais não é do que uma expressiva manifestação do “Estado punitivo“.
Não se mostra diverso o que sucede com a clemência.
Em primeiro lugar, porquanto há, ainda que com nomenclatura própria, figuras pertencentes ao nosso ordenamento jurídico que convergem ao mesmo caminho trilhado pela clemência, a exemplo do perdão judicial, previsto no art. 121, § 5º, do CP, e pelo qual o juiz pode deixar de aplicar a pena quando, no homicídio culposo, as consequências da infração atingirem o agente de forma tão grave que a sanção se torne desnecessária. Também o indulto e a graça, constitucionalmente previstos, não deixam de assimilar uma ideia de perdão, realizado em favor daquele que comprovadamente tenha praticado um crime.
Pois este é o sentido mais profundo da clemência: uma disposição para perdoar aquele que efetivamente tenha atuado de modo injusto.
Donde se vê, desde logo, o desacerto que há em afirmar-se serem contraditórias as respostas aos quesitos da materialidade e da autoria, com posterior absolvição calcada na clemência. Deveras, só se concebe a aceitação da clemência quando, antes, tiver sido afirmada a existência do fato, imputável ao autor.
Recolhe-se da filosofia de Sêneca (1990, p. 42) a alusão de que: sem crime é a clemência supérflua, visto que ela se cuida da única virtude que se retrai entre pessoas inocentes.
Bem é de se considerar que a doutrina penal vem estabelecendo critérios outros, para além da conhecida situação da inexigibilidade de conduta diversa, os quais, outrossim, em situações específicas, não obstante a ausência de previsão legal, podem afigurar-se como de interesse da defesa, para arguição perante o Tribunal do Júri.
Palma (2005, p. 141) aborda, em obra específica, o assim chamado princípio da desculpa, cuja ideia jurídica, em suas palavras, é “normativa no sentido não de resultar automaticamente do direito positivo, constituindo um dever ser emanado de um fundamento aceitável ou de uma justificação susceptível de ser aceite“.
Para a professora portuguesa, uma teoria da desculpa “é reclamada pelas condições individuais que não são susceptíveis de normativização em sentido próprio, isto é, de passar a prova de uma universalização definidora do permitido” (PALMA, 2005, p. 142).
Roxin (2006, p. 226-267), por sua vez, alude à categoria da responsabilidade (Verantwortlichkeit), no sentido de que se deve saber se o sujeito individual (der individuelle Täter) merece, realmente, uma pena pelo injusto que houver realizado. Segundo seu entendimento, para a afirmação da responsabilidade, ademais da culpabilidade, dever-se-á verificar se o caso concreto revela uma necessidade preventiva de punição (eine präventive Bestrafungsnotwendigkeit).
Tais construções doutrinárias, na singularidade dos casos concretos, podem ser importantes para os interesses das partes, mormente para os interesses da defesa, e não se pode tolher o seu exercício, em especial diante da consagração constitucional de que a defesa se exerce, máxime no Tribunal do Júri, em plenitude.
O ponto crucial, portanto, parece ser o de escapar à afirmação do Ministro Saldanha Palheiro de que a possibilidade de invocação de tais teses, entre as quais a clemência traria como consequência ter-se por inadmissível o recurso do MP, fundado na alínea d do inciso III do art. 593 do CPP.
No mais antigo dos casos, julgado pelo STJ em 23.05.90, a respeito da possibilidade de invocação de causa supralegal perante o Tribunal do Júri, apontou-se na ementa:
“Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão da culpabilidade, cuja admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada. (…)” (REsp 2.492/RS, 5ª T., Rel. Min. Assis Toledo, DJe 28.05.90)
O voto proferido pelo saudoso Ministro Assis Toledo, em seu tópico final, todavia assinalou que, para a arguição da tese, deveria a defesa “indicar os fatos e as circunstâncias outras que se ajustam à tese da não exigibilidade, a fim de que possam ser objeto de quesitos objetivos e simples (…)“.
Certo que, na atualidade, a partir da reforma processual de 2008, as teses defensivas não serão, individualmente, submetidas aos jurados à guisa de quesitos. Concentram-se, de certa maneira, no quesito genérico, alusivo à pergunta sobre a absolvição. Mas o alvitre trazido pelo leading case subsiste. Ou seja, os fundamentos absolutórios invocados pela defesa devem ser registrados, porquanto apenas assim é que se permite o controle da decisão dos jurados na instância recursal.
Este entendimento nada tem de extravagante.
Muito ao contrário, visto que, do que se cuida, é de dar-se cumprimento ao art. 495, XIV, do CPP, não considerado nos dois votos mais detalhadamente analisados, e cuja redação, ao tratar da ata de julgamento pelo Júri, é a seguinte:
“Art. 495. A ata descreverá fielmente todas as ocorrências, mencionando obrigatoriamente:
(…)
XIV – os debates e as alegações das partes com os respectivos fundamentos.“
É eloquente que a regulamentação processual, antes do ano de 2008, ao tratar da ata de julgamento do Tribunal do Júri, não contivesse determinação semelhante. À época, com efeito, cada uma das teses defensivas desdobrava-se em quesitos próprios, de modo que a mera análise da quesitação já fazia depreender quais as teses alegadas.
A partir da reforma processual de 2008, entretanto, e sendo certo que se instituiu um quesito genérico de absolvição, é somente a consignação em ata de julgamento, na forma do art. 495, XIV, do CPP, que permitirá à Corte recursal cotejar a virtual absolvição havida, com os fundamentos para tal invocados.
Neste sentido, precisamente, é a lição de Mendonça (2009, p. 135), quando diz: “(…) agora deve constar da ata não apenas os debates, mas também as alegações das partes, com os respectivos fundamentos. A questão ganha importância diante do quesito genérico estabelecido pela nova lei e será relevante para que as partes possam impugnar, em via recursal, a decisão dos jurados“.
De notar-se que a estrutura narrativa das causas legais, que podem levar à absolvição, em geral já está fixada pela legislação, de modo que, diante de uma alegação defensiva de legítima defesa, por exemplo, desde logo saber-se-á que se está a aludir à exclusão de ilicitude como tal conformada pelo art. 25 do CP.
Quanto à clemência, porém, e quanto aos demais exemplos trazidos neste texto, quais sejam o designado princípio da desculpa ou mesmo a responsabilidade, nestes casos em que a legislação não tenha dado conta de tipificar ou descrever em que substrato se fundamentam, é imprescindível que a estrutura narrativa que os compõem seja delineada na ata de julgamento, visto que, apenas assim, dando-se cumprimento ao art. 495, XIV, do CPP, permitir-se-á que a instância recursal avalie tanto a base fática em que se fundou a alegação como a conformidade dessa base fática com a tese esgrimida.
Noutras palavras, a questão está, efetivamente, não em sabermos se à defesa é lícito sustentar a absolvição com fundamento na clemência, e sim em indagar-se: clemência, por quê?.
A extensão daquilo que se pode vir a conceber como clemência exige que, na ata de julgamento, estejam expressos os seus respectivos fundamentos.
Isso porque pode ser clemência o exemplo em que um acusado, acometido por uma doença terminal, vem a ser julgado por uma acusação de homicídio ocorrido há um significativo intervalo de tempo, como, eventualmente, podem indicar clemência motivos muito específicos, que façam surgir uma ideia de solidariedade, a qual, como se vê na filosofia de Hartmann (1935, p. 386-388), seja capaz de dissolver o sentido objetivo do direito, fazendo idônea a absolvição do réu.
Sem a indicação de tais motivos, sem a indicação dos fundamentos, contudo, também a clemência pode ser banalizada, por isso que, aqui, vale retornar à admoestação de Sêneca (1990, p. 42), em seu De Clementia, quando assevera que “não convém que se perdoe a todos, pois quando se afasta a diferença entre os bons e os maus nasce a confusão e brotam os vícios; de maneira que não é idônea uma clemência promíscua e vulgar, como tampouco uma inacessível, uma vez que tanto é crueldade perdoar a todos, como a nenhum“.
5 Conclusão
De tudo que ficou consignado, é possível dizer que: à possibilidade afirmada de se invocar a clemência, como tese de defesa, que, no Júri, há de realizar-se em plenitude, não se subtrai a necessidade de, a teor do art. 495, XIV, do CPP, serem indicados os seus respectivos fundamentos.
Se é certo que o acolhimento da tese da clemência pressupõe a afirmação da materialidade e da autoria, não existe, pois, contradição prima facie entre a votação positiva de tais quesitos e a absolvição sob este fundamento.
Fixados, contudo, os fundamentos da tese da clemência, na ata de julgamento, seja sob o ponto de vista fático, seja na apreciação sobre se a base fática revelada propende deveras à clemência, poderá a instância recursal, em havendo a apelação própria, avaliar se a decisão do Conselho de Sentença afinou-se ou não com a prova dos autos, por isso que a arguição de tal tese defensiva não inibe, só por isso, o manejo de apelação pelo MP.
Seguramente o desenvolvimento da jurisprudência dará contornos mais específicos à clemência, densificando o conceito.
Com esta solução, evita-se, de um lado, que se abale o princípio da plenitude de defesa, porquanto reconhecida a possibilidade de veiculação da tese de clemência em favor do réu, mas, de outra parte, evita-se também que a decisão dos jurados torne-se insuscetível de exame em sede recursal, na medida em que o ponto de vista aqui preconizado faz valer o dispositivo expresso do art. 495, XIV, do CPP, que requer conste da ata de julgamento as alegações das partes com os respectivos fundamentos.
Em síntese, pode-se dizer que a clemência é tese possível de ser alegada pela defesa, a qual, todavia, deve indicar os seus respectivos fundamentos, sendo certo que estes não escapam, em nível recursal, de apreciação pelo respectivo Tribunal.
Referências
FARIA COSTA, José de. A criminalidade em um mundo globalizado: ou plaidoyer por um direito penal não securitário. In: Direito penal económico e europeu: textos doutrinários. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. v. III.
HARTMANN, Nicolai. Ethik. Berlin und Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1935.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do Código de Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Método, 2009.
PALMA, Maria Fernanda. O princípio da desculpa em direito penal. Coimbra: Almedina, 2005.
ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. Band I. 4. Auflage. München: C.H. Beck, 2006.
SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Petrópolis: Vozes, 1990.