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A TEORIA DOS CONTRATOS RELACIONAIS E SUA APLICAÇÃO AOS CONTRATOS DE CONSUMO

A TEORIA DOS CONTRATOS RELACIONAIS E SUA APLICAÇÃO AOS CONTRATOS DE CONSUMO

Por Rogério Zuel Gomes

A Teoria dos Contratos Relacionais tem como um de seus principais fundadores o norte-americano Ian Macneil,[1] porém, nos valeremos do posicionamento de Ronaldo Porto de Macedo Junior, o qual analisa com mais profundidade as questões relativas entre o poder, a solidariedade e a teoria relacional,[2] acrescentando que este autor apresenta trabalho pioneiro no que diz respeito aos contratos relacionais de consumo.

O influxo de constantes mudanças em processos produtivos, relacionados a elementos constitutivos de produtos e serviços acabam impossibilitando a redução de incertezas e neutralização de riscos a níveis minimamente aceitáveis.[3] Esta constatação reflete intensamente na esfera de direitos dos consumidores,  que na verdade, são, ao mesmo tempo, alvo e os responsáveis pela manutenção e impulso desta estrutura. Da necessidade de contratar determinados serviços contínuos, ao contrário do que acontecia até meados do século XX, onde se contratava basicamente de forma descontínua, surgem modalidades de contratação que se prolongam no tempo, tendo como uma das características a incomensurabilidade na equivalência de trocas projetadas para o futuro.[4]

Nota-se assim que a relação contratual relacional obedece a uma dinâmica exógena, cuja influência torna-se inegável às partes contratantes, à medida que tal relação passa a ter fundamento em deveres de cooperação mútua e de boa-fé.

Em tais contratos, em que a adaptabilidade é uma das características, ocorre o que Ricardo Lorenzetti denomina desmaterialização do objeto contratual, pois não se trata de bens ou coisas, senão regras de procedimento de atuação, fazendo com que ao longo do processo de cumprimento do contrato estas regras se adaptem a determinadas circunstâncias.[5] A forma com que esta adaptação se dá, queremos crer, é que será balizada, tendo em vista os deveres de cooperação recíproca, solidariedade, boa-fé, as condições de contratação e a posição dos contratantes, especialmente nos casos dos contratos de adesão que tratam de importantes formas de prestação de serviços.

Fenômeno contratual decorrente da massificação das relações interpessoais, o contrato relacional[6] é resultado da proliferação de fórmulas contratuais de massa, visando o fornecimento de serviços no mercado. Sua principal característica é a criação de relações jurídicas complexas de longa duração, importando, em função dessa complexidade, em dependência dos clientes consumidores.[7] Como observa Donald Nolan, o principal argumento que diferencia os contratos relacionais dos não-relacionais (descontínuos) é que aqueles partem da premissa segundo a qual a relação contratual deve responder a eventuais mudanças de circunstâncias, para que possa subsistir[8] e, neste contexto, os contratos de consumo cada vez mais passarão a estar protegidos, especialmente porque o desenvolvimento dessa relação jurídica será pautado por um dever de conduta guiado pela boa-fé.[9] A relação contratual, assim vista, abandona a concepção (clássica) estática do contrato[10] que o concebia como um instrumento que começa pelo consentimento dos contratantes e tem fim mediante a simples verificação de uma causa extintiva, para ser vista, a partir da constatação do fenômeno da sociedade de massa e de suas consequências, como efetivo instrumento de circulação de riquezas baseado na boa-fé, solidariedade e cooperação, importando deveres que vão para além daqueles expressamente previstos no pacto.

Cumpre observar, com Cláudia Lima Marques, que o novo aqui não é a espécie de contrato (seguro, por exemplo), mas a sua relevância no contexto atual, a sociedade de consumo atual beneficia e fomenta estes serviços, considerados, então, socialmente essenciais, a necessitar uma nova disciplina[11]. Se no atual modelo de Estado (pós-moderno, globalizado, mínimo, etc.) este desenvolve cada vez menos as atividades que lhe eram inerentes no modelo do Estado do Bem-Estar,  cresce abruptamente a procura dos consumidores por serviços básicos prestados pela iniciativa privada, na sua maioria contratados por adesão e de trato sucessivo, v.g. planos de saúde, previdência privada, ensino, etc. Aos exemplos mencionados podem ser acrescentados os contratos bancários , o de cartão de crédito e o de fornecimento de outros serviços essenciais, além daqueles contratos de trabalho e os de natureza eminentemente empresarial (franquia, fornecimento, representação comercial, cooperação tecnológica, transferência contínua de tecnologia, etc).

É da necessidade recíproca de manutenção do vínculo contratual relacional que surge uma das principais diferenças em relação aos contratos descontínuos, ressaltando-se que a necessidade não precisa ocorrer de ambos os lados.[12] É que nesta relação contratual a parte que dispõe a prestação de serviço ao consumidor se coloca, via de regra, em situação de superioridade em relação ao consumidor, que apenas adere ao contrato. Se nos  contratos descontínuos prepondera o maior interesse na rescisão do vínculo com a devida restituição do que foi eventualmente pago e eventual cumprimento de cláusula penal, nos contratos relacionais, em função das características já destacadas, o consumidor não teria interesse na ruptura do vínculo contratual. Nesse tipo contratual avulta o conceito de cooperação, solidariedade e boa-fé, especialmente porque nessa relação as obrigações que emergem não são conformes à Teoria Contratual Clássica.[13] Sob a ótica desta teoria, o contrato é visto como algo isolado e descontínuo. Atualmente, nos contratos, pactuam-se também procedimentos e regras de atuação correta, que unem as partes e que irão se especificando no decorrer do seu cumprimento.[14]

A Teoria dos Contratos Relacionais, assim posta, mostra-se como mais uma forma de limitar a autonomia privada. Como observa Ronaldo Porto Macedo Junior, é certo que o reconhecimento das relações de poder nos contratos não nega o princípio da liberdade contratual. Por outro lado, não é menos correto que o seu reconhecimento abala sensivelmente os pressupostos clássicos da liberdade contratual e o papel do Estado como agente regulador e disciplinador das relações contratuais.[15] Ora, se há um dever de cooperação recíproca orientado pelo princípio da boa-fé objetiva[16], por óbvio, a autonomia privada, com maior intensidade neste modelo contratual, resta ainda mais mitigada quanto maior a essencialidade do objeto do contrato.

A pressão exercida sob um dos atores contratuais em função de sua vulnerabilidade pode significar abuso de poder ou ato contrário aos bons costumes e à boa-fé exigida no tráfico jurídico, especialmente ao se levar em consideração uma categoria específica de contratante, os idosos e as pessoas de meia-idade, que não raro enfrentam sérias dificuldades para firmar contratos de planos de saúde e de seguros de vida. Nos contratos relacionais, as expectativas de continuidade do vínculo são compartilhadas pelos contratantes, de modo que se tal vínculo é rompido de forma unilateral e abruptamente, a parte prejudicada encontraria muita dificuldade para celebrar um novo contrato, em termos e condições idênticos, com um terceiro parceiro contratual. Esse modelo contratual traz em sua essência a geração de expectativa de parceria mútua, inspirado pela confiança e cooperação verificadas no decorrer de seu cumprimento.

O Superior Tribunal de Justiça apreciou um caso que, não obstante não fazer menção expressa à teoria dos contratos relacionais, levou em consideração o fato de a administração do plano de saúde não poder, a seu talante, rescindir unilateralmente a relação contratual justificada pela impossibilidade de manutenção da avença. O entendimento valeria mesmo que a lei aplicável à espécie não tivesse afastado a rescisão unilateral (Lei n° 9.696/97, art. 13, inciso II, alínea “b”), observou o relator. É que nestas hipóteses os riscos do negócio são levados em conta quando do cálculo do prêmio do seguro. Além disso, porque se ocorrerem mais sinistros do que aqueles previstos pela seguradora não é o segurado quem tem que responder por isso. O vínculo relacional, in casu, restou bem salientado no voto do relator Min. Castro Filho[17] quando se referiu ao bem jurídico tutelado pelo contrato e o necessário dever de cooperação, decorrente da boa-fé objetiva, já que havia o consumidor sido submetido ao prazo de carência e que um eventual novo contrato, com outra seguradora, certamente o deixaria sem cobertura durante o novo prazo de carência. Note-se que se o Judiciário anuísse com tal prática o consumidor acabaria exposto a uma prática leviana, porquanto a seguradora poderia, por um estudo estatístico, ao findar o primeiro ano de contrato, escolher contratar apenas com aquelas pessoas que pouco utilizavam o plano de saúde, o que, por certo, lhe retiraria o ônus do risco da atividade desenvolvida transferindo-o para o consumidor.[18]

Acrescente-se, ainda, tratando de questões controvertidas de planos de saúde, aquelas hipóteses em que o consumidor necessite ser atendido, não tendo concorrido de nenhuma forma para a causa do atendimento, e tenha os benefícios do plano de saúde negado por não ter o prazo de carência se esgotado. Nestas hipóteses também o beneficiário poderá exigir o cumprimento do avençado, porquanto se por razões imprevisíveis necessitou dos benefícios do plano de saúde, este não lhe pode negar a cobertura.[19] Bem de ver no exemplo acima que a já apontada e necessária adaptabilidade dos contratos relacionais, pautados por regras de procedimento de atuação, oportuniza e impõe a necessidade de adaptação a determinadas circunstâncias, segundo os deveres de cooperação, boa-fé e solidariedade contratual.

Portanto, mesmo que a ruptura do vínculo ou a negativa de cumprimento do pactuado encontre respaldo legal ou contratual, ela deverá ser analisada sob a perspectiva contratual relacional, considerando as características próprias desta relação contratual.


Notas e Referências:

[1] Ian Macneil, jurista e professor da Escola de Direito da Northwestern University of Chicago,  reconhecido internacionalmente como autoridade em matéria de contratos e de arbitragem. Ao jurista norte-americano juntam-se os de origem europeia, tais como, Hugh Collin, Thomas Wilhelmson e Patrick Selim Atyiah.

[2] MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto de. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 147 e ss. Tratamos também desse tema com maior ênfase na 2ª edição ainda não publicada no nosso Teoria contratual contemporânea (Ed. Forense – 2004).

[3] FARIAS, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 207.

[4] MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto de. Contratos relacionais e defesa do consumidor. p. 160.

[5] LORENZETTI, Ricardo Luis. Esquema de una teoria sistemica del contrato. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, V. 33, p. 68-69, out.-dez./1998. p. 51-78.

[6] Cláudia Lima Marques (In Contratos no código de defesa do consumidor. p. 68 e ss.) prefere a denominação contratos cativos de longa duração, cunhada pela doutrina contratualista européia. José Eduardo Faria (In O direito na economia globalizada. p. 208 e ss.) prefere a denominação contratos contínuos. Este último autor desenvolve a teoria contratual relacional com maior ênfase em contratos empresariais, não abordando, portanto, contratos de consumo.

[7] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002 p. 68.

[8] NOLAN, Donald. The classical legacy and modern english contract law. The classical legacy and modern english contract law. The Modern Law Review. Oxford, V. 60, p. 617, jul./1996. p. 617.

[9] NOLAN, Donald. The classical legacy and modern english contract law. p. 618.

[10] LORENZETTI, Ricardo Luis. Esquema de una teoria sistemica del contrato. p. 67.

[11] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. p. 69.

[12] Par se ter uma melhor noção acerca dos fundamentos de uma relação contratual relacional e suas distinções em relação aos contratos descontínuos, remetemos o leitor à já indicada obra de Ronaldo Porto de Macedo Junior, especialmente ao Capítulo IV, p. 147-258.

[13] Assim também ATIYAH, Patrick Selim. An introduction to the law of contract. 5. ed. Oxford: Oxford University, 1996. p. 51.

[14] LORENZETTI, Ricardo Luis. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos fre a terceros. p. 27.

[15] MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. p. 192.

[16] Antunes Varela (In Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 108) já observava, ao comentar o Código Civil brasileiro de 1916, que os deveres decorrentes do princípio geral da boa-fé, são relativamente freqüentes nas relações obrigacionais duradouras (como o contrato de seguro, o mandato, o  depósito, o fornecimento, a conta-corrente, a locação e outras semelhantes, entre os quais o ‘leasing’, em qualquer de suas variantes). Mas avultam sobretudo nas relações obrigacionais que comprometem, em maior ou menor extensão, a própria personalidade dos contraentes no cumprimento dos deveres ou no exercício dos direitos contratuais.

[17] CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. CLÁUSULA ABUSIVA. NULIDADE. RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO PELA SEGURADORA. LEI 9.656/98. É nula, por expressa previsão legal, e em razão de sua abusividade, a cláusula inserida em contrato de plano de saúde que permite a sua rescisão unilateral pela seguradora, sob simples alegação de inviabilidade de manutenção da avença. Recurso provido. STJ. REsp. n° 602.397/RS. Min. Castro Filho, DJU 1°/8/2005, p. 443.

[18] Sobre a distribuição dos riscos do contrato, consultar: LORENZETTI, Ricardo Luis. Esquema de una teoria sistemica del contrato.. p. 60.

[19] Neste sentido decidiu o STJ: PLANO DE SAÚDE. Prazo de carência. Internação de urgência. O prazo de carência não prevalece quando se trata de internação de urgência, provocada por fato imprevisível causado por acidente de trânsito. Recurso conhecido e provido. REsp n. 222.339/PB. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 28/6/2001, v.u.