A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA
Luíza Cunha
INTRODUÇÃO
A personalidade jurídica é diretamente conectada à economia e ao mercado, mas, simultaneamente, cumpre com os fins sociais objetivados pelo direito. Assim, é um instrumento para conceder direitos e deveres aos entes jurídicos, de forma que estes não se misturem com os de seus administradores. As pessoas físicas que administram qualquer ente possuem a garantia de que seus bens e atos da vida civil sejam separados dos atos e negócios jurídicos. Logo, entende-se que, “pelo fato de as pessoas jurídicas possuírem personalidade própria, a existência destes entes não se confunde com a de seus membros.’’ (NADER, 2018, p. 251) Todavia, em determinadas circunstâncias, em que verificam-se irregularidades caracterizadas por abusos e fraudes, há a possibilidade de se desconsiderar a personalidade jurídica para responsabilizar aqueles que de fato infringiram a lei.
O presente trabalho visa a tratar da desconsideração da responsabilidade jurídica e de sua aplicação no direito brasileiro.
1 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica defende que, sob circunstâncias específicas, os fatores e obrigações que atingem a pessoa jurídica se estendam à personalidade civil de seus sócios. Dessa maneira, quando aquela é utilizada de forma ilícita, incorrendo em fraude ou abuso do direito, o patrimônio pessoal dos sócios torna-se elegível para honrar com as obrigações da empresa. A desconsideração atua como um instrumento corretivo para coibir o uso indevido da personalidade jurídica, que tem a sua autonomia temporariamente suspensa. O magistrado passa a decidir, então, como se a personalidade jurídica não existisse.
Vale ressaltar que o objetivo não é anular a personalidade jurídica da empresa, e sim, apenas declarar a sua ineficácia para determinados efeitos. Ao serem ressarcidos todos os prejuízos, a empresa retorna a sua normalidade de pessoa dotada de autonomia patrimonial.
2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA POSITIVADA
A desconsideração da personalidade jurídica começou a ser tratada no Brasil na década de 1970, tendo como principal voz o jurista Rubens Requião. Houve o desenvolvimento doutrinário da matéria e esta passou a ser reconhecida nos tribunais e em algumas leis (Lei n.º 8078/90 – Código de Defesa do Consumidor, Lei n.º 8884/94 – Meio Ambiente, Lei n.º 9605/98 – Antitruste), contudo, foi o Código Civil de 2002 que a consagrou no país, no seguinte desenlace:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
3º O disposto no capute nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caputnão autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”.
Por muito tempo, o artigo 50 não possuía parágrafos e incisos, o que abria espaço para muitas interpretações. De forma geral, a doutrina caracterizava o desvio de finalidade como a desvirtuação da função social para se alcançar vantagens sem respaldo contratual ou legal. Já a confusão patrimonial se daria quando as atitudes do sócio ou do administrador fossem facilmente diferenciáveis do funcionamento da própria sociedade, não havendo a separação clara de seus bens. As interpretações não sofreram grandes mudanças, mas com a lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) que trouxe mais especificidade às questões tratadas pelo Código Civil no artigo em questão, se restringiu o espaço do magistrado para aplicar a desconsideração.
A Lei também promoveu maior segurança jurídica à autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de incentivar o empreendedorismo e a livre iniciativa. Foi reforçada a concepção de que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser utilizada de maneira excepcional, não como direito absoluto. Como exemplo, tomamos uma decisão do Superior Tribunal de Justiça de São Paulo que data de janeiro de 2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei nº 13.874/2019. Vejamos:
“AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS AUSENTES. DISSOLUÇÃO IRREGULAR E AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS. INSUFICIÊNCIA. 1. A jurisprudência do STJ firmou o entendimento no sentido de que a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. 2. Agravo interno a que se nega provimento.”
(STJ – AgInt no REsp: 1787751 SP 2018/0337831-0, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 11/02/2020, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/02/2020)
O Código do Consumidor também apresenta grande expressividade frente ao tema em nossa legislação, trazendo em seu artigo 28 a regulação para proteger o consumidor dos atos que o artigo 50 do Código Civil elencou.
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
1° (Vetado).
2ºAs sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
3ºAs sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
4ºAs sociedades coligadas só responderão por culpa.
5ºTambém poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
O que mais chama atenção na redação do artigo é que há basicamente a dispensa da apresentação de prova de fraude ou confusão patrimonial para haver a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Basta, nesse sentido, que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor, ou, ainda, o obstáculo que a personalidade jurídica representa para sanar a dívida.
Conclui-se que existe uma distinção teórica entre o artigo 50 e o artigo 28. Correspondendo o primeiro à teoria maior (ou subjetiva) da desconsideração da personalidade jurídica e o segundo à menor (ou objetiva). A teoria maior só reconhece a desconsideração quando fica configurado que os sócios agiram com abuso ou fraude, ela trata a medida como de caráter excepcional, não podendo, pois, ser utilizada indistintamente. A teoria maior é mais ampla, pois não exige as provas, apenas a configuração de que a empresa, enquanto dotada de autonomia patrimonial, não pode arcar com os seus credores.
Até aqui, tratamos da despersonalização da personalidade jurídica direta, mas esta também pode ocorrer de forma inversa.
3 A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Na desconsideração inversa, a responsabilização incide sobre a pessoa jurídica, que responde pelos atos praticados pelos sócios enquanto pessoas físicas. Para Fábio Ulhôa Coelho, a “desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”.
Para haver a desconsideração inversa, o sócio deve utilizar-se da personalidade jurídica para esconder bens e atos que seriam referentes à pessoa física. Isto é, declarar um bem como sendo da empresa quando, na verdade, é de uso pessoal. Sendo assim, afasta-se a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para que os seus bens sejam elegíveis para responder pelas obrigações adquiridas e não cumpridas por seus sócios. A medida visa a não apenas ressarcir os credores pessoais do sócio, como também evitar que haja a transferências de bens do particular para o empresarial a fim de declarar insolvência.
A aplicação da desconsideração inversa também é verificada em face do direito de família, e o exemplo mais comum é quando há o divórcio com filhos e uma das partes deve pagar pensão. A fim de se eximir da responsabilidade, ou de pagar um valor inferior ao que seria justo, o indivíduo, sócio em uma empresa, alega que não possui condições e declara uma situação de vida abaixo da situação real, pois seus bens foram passados para o nome da pessoa jurídica, ou até originalmente adquiridos nele. Neste caso, assim como na desconsideração da personalidade jurídica direta, o juiz julga como se não houve distinção entre a pessoa física e a pessoa jurídica. Ao fim do processo, a desconsideração cessa e a autonomia patrimonial é restabelecida, sendo então, também temporária.
Para ser aplicada, a desconsideração inversa da personalidade jurídica, assim como a direta subjetiva e diferentemente da maneira em que a aplicação se dá nas relações de consumo, deverá estar provada a confusão patrimonial, a fraude ou o abuso de direito por parte dos sócios-administradores que se utilizaram da personalidade jurídica como meio para esconder os seus próprios bens.
4 A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA POSITIVADA
A teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica por muito tempo foi empregada a partir do entendimento jurisprudencial e doutrinário, onde alegava-se que, sendo possível a desconsideração direta, arcando a pessoa natural com as obrigações da pessoa jurídica, seria justo que também em situações excepcionais a pessoa jurídica pudesse arcar com as responsabilidades da pessoa natural. Mas a transcrição dessa ideia em lei material só houve em 2016, pelo Código de Processo Civil, que versa sobre a matéria da seguinte forma:
“Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
1ºO pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
2ºAplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.”
No artigo 133 percebemos que, além da positivação da desconsideração inversa da personalidade jurídica que aqui tratamos, houve também a intenção de uniformizar os processos de desconsideração de personalidade jurídica, enquadrando-a no princípio do devido processo legal, que é um direito concedido a todos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica é uma forma encontrada para resguardar a empresa e a função social da pessoa jurídica. Com ela, é possível suspender a autonomia patrimonial da pessoa jurídica temporariamente para sanar injustiças causadas por fraudes e abusos do direito decorrentes de ações de seus sócio-administradores, responsabilizando-os diretamente por tais danos.
À luz do artigo 50 do Código Civil, para que a desconsideração seja possível, deve haver provas das fraudes e dos abusos. A Lei de Liberdade Econômica diminuiu ainda mais a discricionariedade do magistrado sobre o assunto, alterando o artigo 50 e impondo limites mais rígidos à aplicação da desconsideração visando proteger a personalidade. Todavia, a lei em questão não atingiu as relações de consumo, que admitem a teoria objetiva da desconsideração da personalidade jurídica em prol do consumidor, quando este for financeiramente prejudicado pela falta de recursos da empresa para pagá-lo, ainda que não haja provas de fraude ou abuso de direito.
A desconsideração inversa também obedece aos parâmetros do artigo 50, ainda que esteja expressamente positivada apenas do Código Processual Civil. No Brasil, ela é, muitas vezes, peça chave no direito de família (mas também atinge outros âmbitos), pois evita que os sócios escondam seus bens atrás da personalidade jurídica para não arcar com as suas responsabilidades.
Vale destacar que em todos os casos apresentados no presente trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser utilizada de maneira excepcional, não como direito absoluto, pois a sua banalização geraria efeito oposto ao que a teoria propõe e fragilizaria a pessoa jurídica.
BIBLIOGRAFIA:
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PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Lei da Liberdade Econômica é bem vinda, mas não aplicável às relações de consumo. Conjur, 2019. Disponível em: <https://www.conjur. com.br/2019-dez-30/direito-civil-atual-lei-liberdade-economica-bem-vinda> Acesso em: 17 de abr. de 2020.
NADER, Paulo. Curso de DIREITO CIVIL: parte geral. 11. ed. Forense, 2018.
ULHÔA, Fábio. Manual de direito comercial: direito de empresa. 23. ed. Saraiva, 2011.