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TÉCNICA DE JULGAMENTO DE RECURSOS REPETITIVOS E NOVA ORDEM PROCESSUAL CIVIL: ESTABILIDADE, INTEGRIDADE E COERÊNCIA NAS DECISÕES JUDICIAIS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

TÉCNICA DE JULGAMENTO DE RECURSOS REPETITIVOS E NOVA ORDEM PROCESSUAL CIVIL: ESTABILIDADE, INTEGRIDADE E COERÊNCIA NAS DECISÕES JUDICIAIS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Elaine Harzheim Macedo

Marcos Adilson Correia de Souza

SUMÁRIO: 1 Introdução: o Fenômeno da Numerosidade no Processo Civil. 2 A Origem: Reforma do Poder Judiciário e Emenda Constitucional nº 45/04. 3 Recursos Repetitivos e o Novo CPC. 4 Distinção e Revisão da Tese Jurídica. 5 Considerações Finais. 6 Referências Bibliográficas.

           

1 Introdução: o Fenômeno da Numerosidade no Processo Civil

A preocupação com a unicidade do direito não é um fenômeno contemporâneo, acompanhando o desenvolvimento da jurisdição e do processo e gerando, tanto nos países do sistema da common law como no da civil law, a construção de mecanismos para obstar, na medida do quanto possível, a no mínimo desconfortável situação de casos iguais serem decididos e a descrença no Poder Judiciário.

Trata-se de um permanente paradoxo a ser enfrentado na atividade jurisdicional: a concretude dos conflitos a exigir a resolução própria e adequada em face das características individualíssimas dos fatos e dos sujeitos da relação objeto do conflito e a necessidade ideológica de que as decisões proferidas pelo Poder Judiciário devem manter, entre si, harmonia com vistas à unicidade do trato do direito objetivo, quase se afigurando uma missão impossível.

Já Castanheira Neves denunciava, a propósito de sua crítica aos assentos do direito português, caracterizando-se tais precedentes pela força vinculativa ao efeito de atender uma função de coesão ideológica do sistema jurídico, presente a ideia de univocidade do direito e de buscar, ao fim e ao cabo, a unidade da legislação pela unidade da jurisdição (1983), o que não deixa de ser uma utopia que seduz o operador jurídico.

Se assim era na segunda metade do século passado, maior a atração desse modelo nas últimas três décadas, na medida em que cada vez mais a sociedade se comporta de forma massificada, em blocos, em grupos, enquanto que a legislação deve tratar com novos direitos que se voltam menos ao indivíduo, mais à sociedade, como as relações de consumo, os direitos sociais, os direitos de informação e de comunicação, entre outros, em que a individualidade muitas vezes é absorvida pela coletividade.

Vem de José Maria Rosa Tesheiner a lição de “que mais importante do que assegurar o direito de ação é assegurar ao maior número possível, mesmo aos que não propuseram ação, o gozo de seus direitos“, comportando uma nova tarefa entregue ao Judiciário, pois já não mais basta resguardar os direitos subjetivos, impondo-se-lhe concretizar o direito objetivo (2016, p. 20).

O fenômeno da numerosidade no processo civil conta com diversas facetas, do processo individual ao processo coletivo, do processo subjetivo ao processo repetitivo, da ação individual às ações homogêneas, representando algumas das manifestações desse fenômeno, exemplos esses que sequer esgotam todas as possibilidades engenhadas no afã de se alcançar a manifestação judiciária diante da insegurança do cotidiano fático e jurídico, alcançando números estratosféricos. Em 2015, para dar maior visibilidade ao excesso de litigiosidade que abate todas as instâncias do Poder Judiciário, por iniciativa da AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, foi lançada uma campanha “Placar da Justiça: Não Deixe o Judiciário Parar“, instituindo o processômetro, acusando o número de processos que tramitam em todas as esferas judiciais. Em 2015, o número que viajou o Brasil em placar eletrônico foi o de 105.420.099 processos, alcançando atualmente mais de 109 milhões [1].

Mudanças na legislação processual se fizeram valer já na vigência do Código de Processo Civil de 1973, entre as quais revela-se a técnica de julgamento dos recursos repetitivos, mas ainda assim os resultados foram insuficientes. Sobreveio, em 2015, o novo Código de Processo Civil, onde a sistematização dos precedentes (terminologia sem consenso na doutrina) vinculantes (de força e grau diversos) passou a ocupar espaço importante na lei processual e na dogmática jurídica, até porque rompe com alguns paradigmas pretéritos. Manteve-se, porém, no novo estatuto, ainda que revisitada, a técnica de julgamento dos recursos repetitivos, a constituir um dos instrumentos com força vinculativa, por isso a relevância e a importância de seu estudo.

Este trabalho se propõe, através de pesquisa bibliográfica, partindo de uma premissa fundada na constatação geral do fenômeno da numerosidade dos processos para, através de uma análise crítica, enfrentar um, entre tantos outros, modelo específico construído pela legislação processual, mais precisamente a técnica de julgamento dos recursos repetitivos, de enfrentamento e superação do problema, avaliando-se não só a questão procedimental, que apresenta algumas dificuldades específicas, mas, especialmente, as hipóteses em que o modelo não se ajusta como solução para o conflito individual, a exigir a devida distinção ou, ainda, quando a tese fixada mostra-se superada nas suas bases culturais, sociais, econômicas.

2 A Origem: Reforma do Poder Judiciário e Emenda Constitucional nº 45/04          

Nos anos de 1992 a 2004 tramitou no Congresso Nacional projeto de emenda constitucional tendo por foco o Poder Judiciário. A motivação, de um modo geral, era a concretização de um processo mais célere e efetivo, quando, na verdade, culminaram as reformas aprovadas pela EC nº 45/04 confirmando, em determinada medida, o paradigma pré-existente e consolidando a concentração de poderes junto aos Tribunais Superiores, sem embargo de estabelecer alguns parâmetros capazes, por si só, de construção de um novo processo, mais democrático e voltado a construir o direito do caso concreto (MACEDO, 2005), desiderato a ser perseguido pela legislação infraconstitucional, a partir dos vetores constitucionais, talvez esse o maior mérito daquela movimentação constitucional. De qualquer sorte, o que revela para o momento, a Emenda Constitucional trouxe importante contribuição para a futura edificação de um sistema de precedentes nas decisões judiciais, definitivamente acolhido pelo Código de 2015, a saber:

  1. a) o estabelecimento da cláusula da repercussão geral no recurso extraordinário (art. 102, III, § 3º), com vinculação implícita, como adiante se verá;
  1. b) a vinculação expressa, relativamente aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual ou municipal, no caso de decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade (art. 102, I, § 2º) [2]; e
  1. c) a instituição da súmula vinculante, cuja decisão, a exemplo das decisões proferidas no âmbito das ações de constitucionalidade, vincula todos os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública direta ou indireta, independentemente de se tratar de esfera federal, estadual ou municipal (art. 103-A).

A legislação infraconstitucional não ficou acanhada, avançando nesse mesmo caminho, até porque o fenômeno da numerosidade de processos espraiava-se pelas mais variadas áreas de concentração, sobrevindo as Leis ns. 11.418/06 e 11.672/08, as quais inseriram no estatuto de ritos, respectivamente, os arts. 543-A (voltado a regulamentar a cláusula da repercussão geral) e 543-B, e o art. 543-C, permissivos esses últimos que pretendiam oferecer maior valoração à jurisprudência pátria, tanto no âmbito da jurisdição constitucional como no da infraconstitucional.

Nesse passo, relembrando a ordem legal anterior, atualmente vencida pelas novas diretrizes trazidas pelo CPC/2015, a Seção II do antigo CPC classificava as técnicas destinadas à recepção dos recursos extraordinário e especial, concomitantemente, tratando do tema sob a nomenclatura de multiplicidade de recursos, estabelecia:

Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.

Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo.”

Na época em que houve a inserção do que, hoje, se denomina de recursos repetitivos, o que se buscava, no intento de aprisionar julgamentos iguais para casos iguais, era que os recursos preditos estivessem motivados por dois fatores: (i) recurso com fundamento em idêntica controvérsia; e (ii) recurso com fundamento em idêntica questão de direito. Com isto o legislador almejava produzir concentração, celeridade e simplicidade das decisões dos recursos extraordinário e especial.

Quanto ao seu procedimento, competia ao Tribunal local a realização de uma triagem frente aos inúmeros recursos interpostos, escolhendo um ou mais recursos representativos da controvérsia e o(s) encaminhava ao Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça, resguardadas as respectivas competências constitucionais, para pronunciamento sobre a controvérsia. Os demais permaneciam sobrestados (CPC, art. 543-B, § 1º). Para a numerosidade de processos que já tivessem alcançado as instâncias superiores, caberia a esses Tribunais a triagem.

Instaurava-se o que José Carlos Barbosa Moreira denominou de “decisão por amostragem” (2009, p. 219), estabelecendo-se, em nome da segurança jurídica e da isonomia, a meta de, para casos iguais, decisões iguais.

Cabe rememorar que o Superior Tribunal de Justiça, por meio da Resolução nº 08/08, atribuiu aos Tribunais Regionais capacidade para escolher, enviar e deter recursos repetitivos:

Art. 1º Havendo multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito, caberá ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido (CPC, art. 541) admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando os demais suspensos até o pronunciamento definitivo do Tribunal.” (BRASIL, 2008, acesso eletrônico)

Nesse contexto, mesmo com a possibilidade de ofertar maior celeridade aos trâmites dos recursos perante o STJ e o STF, seja na antiga, seja na novel técnica de julgamentos, não há como não se aceitar o entendimento descrito por Dalton Sausen quando diz que a chegada de súmulas vinculantes, repercussão geral e recursos repetitivos, guarda correlação com a crise do Judiciário (2013). Crise essa que, dizendo de outra forma e na trilha de Ovídio A. Baptista da Silva, é (ou seria) estrutural, jamais funcional (2004), a exigir outro olhar se efetivamente se pretendesse mudar o statu quo do funcionamento do Judiciário e da sobreposição de suas instâncias.

De qualquer sorte, pode-se observar que o uso pelos Tribunais Superiores da técnica da persuasão – antiga e tradicional função da jurisprudência dominante ou das súmulas – não mais atingia as causas, apenas se limitando às consequências, com a reforma dos julgados pronunciados pelas instâncias inferiores. O resultado, de todos cediço, o excesso de recursos perante as Cortes que deveriam ser Corte de vértices, mas que não logravam alcançar esse desiderato. No particular, a lição de Daniel Mitidiero, para quem o ideal é a existência de Cortes voltadas à solução do conflito sob o aspecto da legalidade e com foco nas partes (Tribunais locais), enquanto que às Cortes Superiores cumpre a formação dos precedentes, estabelecendo a segurança jurídica e assegurando a efetividade dos princípios constitucionais da isonomia, tendo como foco a sociedade (2014).

Nunca é demais lembrar, também, que a grande maioria de recursos que se alojam nos Tribunais provém do Estado, diante dos benefícios concedidos pela legislação brasileira, que indistintamente esbarram na administração da coisa pública, por inúmeros fatores que aqui não cabe explorar, bem como de grupos econômicos bem definidos, como instituições financeiras, telefonia e planos de saúde, cujo conjunto provoca o resultado deletério que a lei processual insistentemente procura corrigir. Aliás, outro fator que merece destaque e que também culmina por ser atingido pelo fenômeno da numerosidade, ao contrário do que possa parecer, é a ofensa ao livre-acesso das partes, princípio constitucional em declínio, isto porque nem sempre as técnicas propostas pela lei processual afirmam a segurança jurídica, a isonomia ou mesmo a estabilização de suas decisões judiciais. Se, de um lado, milhares de sujeitos provocam a atuação jurisdicional, de outro, dando uma falsa aparência de acesso à justiça, o custo temporal e financeiro e o desconhecimento ou a desilusão por vezes faz com que outros milhares não busquem a solução de seus conflitos, não sendo destinatários de quaisquer decisões que possam interferir na condução jurídica adequada para o conflito repetitivo.

Esse panorama traz para os grandes fornecedores de produtos e serviços, públicos ou privados, a visão do processo por sua ótica econômica: mais vale manter a conduta negocial ou funcional, investindo na estatística (significativa parte dos consumidores não procura o Poder Judiciário) e só alterando a sua prática após longo e tumultuado processo, caso a caso, se assim reconhecido ou determinado pela justiça.

Nesse fio, veio o novo Código de Processo Civil, que toma emprestada a técnica dos julgamentos de recursos repetitivos e agrega outras, como o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência, objetivando o estabelecimento de um sistema de precedentes vinculantes ao efeito de superar a crise do Poder Judiciário e o fenômeno da numerosidade de processos.

De carona, o novo sistema processual olha um pouco mais adiante, visando a uma racionalidade e uma previsibilidade do direito, com superação da subjetividade nas decisões que, nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni, se agravou com a utilização de cláusulas gerais e a adoção de princípios constitucionais para a composição dos conflitos. É do autor paranaense a afirmação que para extrair o direito do texto legal através da interpretação, é preciso um longo caminho para que o direito se torne efetivamente uma prática argumentativa, ou seja:

Na verdade, a prática judiciária brasileira revela que, não obstante se parta da premissa de que decidir não é simplesmente revelar a norma contida no texto legal, ainda não se transformou o ato de fundamentar numa atividade de argumentar racionalmente para justificar as opções decisórias – inclusive a decisão final – tomadas no curso do raciocínio decisório.” (2014)

Também essa é a crítica de Lenio Luiz Streck, ao questionar o atual modelo de decisão judicial que perpassa o imaginário jurídico, ao denunciar severamente o sincretismo ad hoc reproduzido nos juízos de “livre-convencimento“, “íntima convicção” e o que dá nome ao manifesto “decido conforme minha consciência” (2012) em que o juiz deixa de ser juiz para ser deus.

3 Recursos Repetitivos e o Novo CPC         

Todavia, a tarefa aqui pretendida é a de analisar se os métodos judiciais destinados aos julgamentos dos recursos repetitivos asseguram relevantes avanços à celeridade processual almejadas pelos jurisdicionados. Nesse passo, o debate seguirá caminho mais técnico, no intento de analisar o funcionamento das (novas, melhoradas ou repetidas) técnicas positivadas.

Com efeito, o procedimento destinado ao julgamento dos recursos repetitivos, prima facie, preconizado nos arts. 12, III, 976, 979, 1.030 e 1.036/1.042 do CPC/2015, produz algumas alterações que investem em ser instrumento eficiente a desafogar o excesso de recursos repetitivos em tramitações perante o STJ e o STF.

Relembremos, por mais, que a Emenda Constitucional nº 45/04 ratificou a preocupação de se criar mecanismos que pudessem diminuir os excessos de recursos com as mesmas matérias e decisões iguais e desiguais ao mesmo tempo, ao inserir a repercussão geral no texto constitucional (CF/88, art. 102, § 3º).

Além disto, a moldura em que se encaixam as técnicas de julgamento atuais encontra amarras. Talvez, a ideia sugestionada por Ovídio A. Baptista da Silva, segundo a qual a reintrodução do sistema de arguição de relevância, como requisitos de admissibilidade dos recursos destinados aos Tribunais Superiores, pudesse minorar a crise vivida no judiciário, sendo de lamentar que não se tenha investido mais nessa solução (2004).

Nesse caminhar, a lição apresentada por Michele Taruffo é condizente com a crise que assola o judiciário brasileiro, na medida em que,

“(…) se é razoável a ideia de filtros e critérios de seleção que reduzam de maneira radical o número de recursos (…), para utilizar uma fórmula sintética é necessário que a Corte Superior trabalhe menos para que possa trabalhe melhor.” (2016, acesso eletrônico)

Bem ou mal, a nova legislação optou por uma via distinta, mais comprometida com a dimensão da numerosidade dos processos, focando no conflito repetitivo. Destarte, nesse fio e retornando ao regramento atual, é preciso partir do fato de que os recursos denominados excepcionais objetivam o domínio da jurisprudência, sem desproteger as partes que, não raro, utilizam-se das técnicas recursais visando a modificar, no todo ou em parte, decisões que lhe são desfavoráveis.

As novas regras (CPC/2015) informam-se desse intuito de superação do fenômeno da numerosidade já desde as normas processuais fundamentais, quando:

Art. 12. Os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão.      

 (…)    

  • 2º Estão excluídos da regra do caput:

 (…)

II – o julgamento de processos em bloco para aplicação de tese jurídica firmada em julgamento de casos repetitivos;   

III – o julgamento de recursos repetitivos ou de incidente de resolução de demandas repetitivas;” (grifou-se)

Ou seja, identificando o juiz ou os Tribunais que no rol de conclusão de processos mesclem casos pontuais e casos repetitivos, opta o sistema por privilegiar temporalmente esses últimos, em detrimento dos demais. Aqui, já se pode notar que os Tribunais Superiores brasileiros vêm adotando o modelo de julgamentos de processos em bloco, ainda que, em alguns casos, as decisões corram o risco de não ser as mais adequadas, com amparo na legislação revogada e agora com expressa previsão entre as normas fundamentais de processo civil.

Mais adiante, o estatuto processual inova, criando um incidente próprio para demandas repetitivas, a saber:

Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:  

I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;           

II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.”

Nas hipóteses acima, resta caracterizada a homogeneização do direito, com o fim de reduzir a quantidade de processos (e recursos), por meio da padronização do direito aplicado, levando-se em conta, tão somente, as teses jurídicas, desprezando-se, por vezes, as questões de fato.

A mesma orientação de solução é adotada para os recursos extravagantes, embora sob outra roupagem. Assim, o art. 1.030 do CPC/2015, que trata do juízo de admissibilidade do recurso pelo Tribunal competente (extraordinário e especial), estabelece:

Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:           

I – negar seguimento:         

(…)

  1. b) a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos;

II – encaminhar o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir do entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça exarado, conforme o caso, nos regimes de repercussão geral ou de recursos repetitivos;        

III – sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se trate de matéria constitucional ou infraconstitucional.” (grifou-se

Ademais, tratando-se de juízo de admissão positivo, o inciso V faculta ao presidente ou vice-presidente do Tribunal adotar a seguinte hipótese:

V – realizar o juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, desde que: a) o recurso ainda não tenha sido submetido ao regime de repercussão geral ou de julgamento de recursos repetitivos.” (grifou-se)

Todavia, a simpatia do legislador pela técnica de julgamento que privilegia a teoria dos precedentes, da repercussão e, no caso deste estudo, das decisões que envolvem recursos repetitivos, tomou forma por meio dos arts. 1.036 a 1.041, que tratam especificamente do procedimento e do julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos.

A técnica é definida, em princípio, pelo teor do art. 1.036:

Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.” (grifou-se)

Da maneira em que se encontra contextualizado na disposição em comento, não resta a menor dúvida de que o legislador, como já insinuado alhures, almejou padronizar as decisões dos Tribunais Superiores, tendo em mira a repetição de causas. Não é à toa que o legislador, sem se preocupar com a dogmática jurídica, pretenda resolver o abismo quase infindável dos recursos existentes nos Tribunais pátrios, com a adoção de medidas impactantes, que, às vezes, recebem a rebeldia da doutrina e da própria jurisprudência, movido quase que pelo dilema da Escolha de Sofia, o que já vinha sendo denunciado pela doutrina, a exemplo desta passagem:

Assim, se de um lado abre-se mão da dialeticidade da qual os julgamentos colegiados se alimentam – ou devem ser alimentar – de outro objetiva-se que haja um alinhamento priorizando, especialmente nas ações repetitivas, o entendimento manifestado pelos tribunais recursais ou recursais superiores, evitando-se um périplo de altíssimo custo para o Judiciário e para a sociedade em geral, buscando-se um mínimo de segurança jurídica nas decisões judiciais e na composição dos conflitos.” (MACEDO; VIAFORE, 2015, p. 180)

Nesse sentido, o § 1º do art. 1.036 apresenta duas soluções para a padronização das decisões: (i) seleção de dois ou mais recursos representativos da controvérsia; e (ii) encaminhamento ao STF ou STJ para fins de afetação, com o sobrestamento de todos os processos individuais ou coletivos pendentes.

Registre-se que a hipótese acima não contempla o recurso (RE ou REsp) em que for demonstrado, pela parte interessada, ter sido interposto intempestivamente (§ 2º do art. 1.036). Nesse caso, se houver rejeição do pedido de exclusão da decisão de sobrestamento do recurso, cabe agravo interno (§ 3º, art. 1.036) [3].

Note-se que não apenas o presidente ou o vice-presidente dos Tribunais locais podem atuar na seleção de recurso e sobrestamento de feito, mas o próprio relator junto ao Tribunal Superior detém igual competência (§§ 4º e 5º, art. 1.036), funcionando como uma segunda filtragem, seja porque os processos já chegaram às instâncias finais, seja porque as instâncias locais não aplicaram adequadamente o sistema de seleção de recursos. Não obstante, é no § 6º que surge necessária cautela na escolha dos recursos:

“§ 6º Somente podem ser selecionados recursos admissíveis que contenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida.”

Talvez permissivo, isoladamente, não resolva o problema da padronização das técnicas aqui discutidas, até porque o alvo, em grande parte dos casos judiciais (eis que, ainda, não se encontrou soluções menos drásticas para o acúmulo de processos, de recursos, de decisões, de procedimentos, entre outras metodologias jurídicas intrínsecas no conjunto de normas existentes no sistema processual brasileiro), inclina-se em direção à customização da prestação jurisdicional.

Este é o mérito e também o demérito dos julgamentos por amostragens. Isso porque do mesmo modo que não é possível desprezar novas medidas procedimentais, ainda que desagrade operadores do direito, julgadores e, nalguns casos, os jurisdicionados, a padronização das decisões deve mover-se em controle simétrico na criação de súmulas (inclusive vinculantes), estabelecimento de teses em sede de repercussão geral e, sobretudo, orientações firmadas nos recursos repetitivos.

Por outro lado, e quiçá com o comedimento que não se pode afastar da tendência natural do julgador ao tomar decisão que afete o conjunto de recursos ainda pendentes de julgamento, a norma prevista no § 4º do art. 1.037 do CPC/2015 reconheceu a necessidade de ofertar celeridade ao procedimento, ordenando:

“§ 4º Os recursos afetados deverão ser julgados no prazo de 1 (um) ano e terão preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.” (grifou-se)

Nesse contexto, Dalton Sausen dá acréscimo à questão ao demonstrar:

“(…) Muito embora as súmulas e os mecanismos da repercussão geral e recursos repetitivos tenham sido transformados, paulatinamente, pela dogmática jurídica, em atenção a interesses políticos e econômicos (…), ninguém irá duvidar que esses mecanismos, se utilizados adequadamente – de modo autêntico -, configuram-se como importantes aliados para a construção da integridade e coerência do direito, pois, como já disse Lenio Luiz Streck, e o que nunca é demais repetir, não são eles um mal em si, razão pela qual mereceriam (merecem) melhor atenção e tratamento por parte da dogmática jurídica e dos operadores do direito.” (2013, p. 112) (grifou-se)

Na sequência, o art. 1.039 do CPC/2015 impõe que os recursos afetados e sobrestados serão decididos de acordo com a orientação adotada pelo Tribunal Superior, seja para serem julgados prejudicados ou o Tribunal decidirá aplicando a tese firmada e revendo a decisão recorrida. O mesmo ocorre, na ordem do parágrafo único do art. 1.039, quando dar-se a negativa de repercussão geral: serão considerados automaticamente inadmitidos os recursos extraordinários sobrestados.

De bom registro, é observar que com a publicação do acórdão paradigma (art. 1.040), o presidente ou o vice-presidente, conforme disposto pelo respectivo Regimento Interno, negará seguimento aos recursos especiais ou extraordinários detidos na origem, quando o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Tribunal Superior.

Dalton Sausen, citando Lenio Streck, relembra que de acordo com o criador do controle ou superação da estandardização do direito, deve ser considerado um grau de objetivação abrangente, que possibilitará a utilização das súmulas, repercussão geral e recursos repetitivos na análise de casos novos (2013, p. 113-114). E arremata:

“(…) O problema não está em aplicar precedentes no direito pátrio (…). Mas, indubitavelmente, no modo inautêntico com que a dogmática jurídica tem feito isto, ou seja, de forma descontextualizada do caso concreto e com pretensões de universalidade, de modo a abarcar todas as hipóteses possíveis.” (2013, p. 116)

Insiste-se, ao mesmo tempo, que o fenômeno da numerosidade dos processos exige novo tratamento processual, também não é possível abdicar de todo da substancialização do processo: o direito é uma ciência social aplicada e o processo, por excelência, enquanto demanda subjetiva, não pode se afastar do fato litigioso.

Analisando as tendências contidas nos arts. 1.036 a 1.041, constatamos, ainda que alguns dos métodos ali adotados sejam questionáveis, não se pode dizer que elas não representam um avanço, até porque o direito de buscar a solução de seus direitos é garantia constitucional (direito de petição) que o legislador não detém competência, e nem se atreveu, para modificar. E aqui, também, a garantia alcança os entes públicos, com a vantagem que lhes é peculiar de sobrecarregar os Tribunais com recursos repetitivos, com a finalidade, no mais das vezes, de protelar o adimplemento de crédito ou direito, que se arrastam por anos em nome de um princípio que precisa, no mínimo, ser revistado, qual seja que o interesse público se sobrepõe ao privado.

O adequado seria adotar, ainda que guardadas as devidas proporções, o pensamento de Maurício Ramires:

O caminho mais curto para o esquecimento do mundo concreto e para o encobrimento dos fatos da vida é a busca de lições jurídicas em meros verbetes ou ementários jurisprudenciais, em vez de acórdãos ou decisões completas (que ao menos são dotadas obrigatoriamente de um relatório do processo, com um resumo do caso decidido).” (2010, p. 49-50)

Não se quer dizer com isto que as novas tendências devam ser expurgadas do contexto jurídico brasileiro. Ao contrário, até porque o sistema de persuasão (súmulas, repercussão geral e recursos repetitivos) é necessário, diante do que ocorria no passado: um amontoado de processos, sendo julgados por meio de decisões desiguais para casos iguais. Permanecer deste modo é (era) sufocar a ordem constitucional, seja no tocante à segurança jurídica e à isonomia, seja quanto à devida celeridade processual às contendas aportadas no judiciário brasileiro.

Como a virtude está sempre no meio, a solução passa necessariamente pela adequada aplicação do art. 489 e seus parágrafos do CPC/2015, pois é na fundamentação que se pode detectar o aspecto substancial do conflito – com a definição do caso concreto em julgamento ao efeito de comparar o que efetivamente representa a identidade fática – e a ordem jurídica incidente, a ser construída para aquele(s) caso(s) hermeneuticamente, com o enfrentamento das teses defendidas pelas partes em conflito.

4 Distinção e Revisão da Tese Jurídica          

Com a inclusão do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), inovação jurídica inserida no ordenamento jurídico pelos arts. 976 a 987 do CPC/2015, estabeleceu-se a necessidade de se ampliar o entendimento relativo à distinção e à revisão da tese jurídica, das quais também a técnica de julgamento de recursos repetitivos não pode abdicar.

Para melhor se compreender o sentido da revisão ou mesmo da distinção na aplicação da tese jurídica, é preciso se partir do sentido de que, mesmo no âmbito do sistema da civil law, se atribui ao stare decisis, conforme ensina Hermes Zaneti Junior:

Stare decisis e precedentes são costumeiramente utilizados como sinônimos em razão de seu sentido próximo, contudo não se equivalem, da mesma forma que stare decisis não se equivale à common law. O princípio do stare decisis assegura um predicado – a estabilidade – para as decisões do Tribunal, sendo especialmente voltado para as próprias Cortes que estabelecem o precedente, forçando o cotejo racional das decisões dos casos-precedentes com os casos-atuais.” (2015, p. 332)

De certa forma, como explica em sequência o professor da UFES, só é possível admitir-se um sistema de precedentes se acolhida a regra do stare decisis, na medida em o precedente deverá atuar com função vinculativa para os demais casos, presentes ou futuros (2015, p. 333).

Por outro lado, o direito é uma ciência cultural e seus enunciados não são perenes. Assim como leis são revistas, reformadas, revogadas, os enunciados produzidos pelos Tribunais também se sujeitam às mutações fáticas e temporais. Mas rever decisões sedimentadas pela regra do stare decisis constitui função exclusiva dos Tribunais e, no sistema brasileiro, praticamente dos Tribunais Superiores, como adiante se verá, ajustando à realidade eventual orientação distinta daquela tomada no passado.

Não se pode olvidar, contudo, como esclarece Cassio Scarpinella Bueno (2015, p. 615), reproduzindo o Enunciado nº 87, advindo do Fórum Permanente de Processuais Civis, que o incidente – e está se falando exatamente no IRDR – não se ajusta à quantidade de ações que discutam as mesmas questões, mas à possibilidade de invalidação da isonomia e segurança jurídica. Ou seja, os vetores a serem considerados em primeiro plano ao efeito de se adotar o sistema de precedentes vinculantes encontram fundamento constitucional, agregando, também, como produto secundário, a vantagem da celeridade, na medida em que a técnica ofertada oferece, pelo menos em tese, julgamentos mais rápidos porque inúmeros outros feitos serão decididos em bloco, com a adoção da tese fixada no incidente. Por coerência, como a tese jurídica deve guardar procedimento adequado para sua aplicação, sua eventual revisão também deve atender certos pressupostos, especialmente o de legitimidade para sua provocação e juízo competente, resguardando de igual modo a isonomia e a segurança jurídica.

De qualquer sorte, tendo presente a orientação do Enunciado nº 87, numa ou noutra situação, é possível se defrontar com a discussão da revisão da tese jurídica. No primeiro caso, ações repetitivas, mas que vêm sendo decididas uniformemente, com decisões que seguem uma determinada orientação apenas por força da convicção judicial, irrelevante a instância julgadora, a revisão do entendimento se dará ao natural, julgado a julgado. No segundo caso, isto é, quando firmada tese jurídica em sede de IRDR, há que se adotar o procedimento previsto, em apertada síntese, no art. 986 do CPC/2015.

De modo que, preliminarmente, o estatuto processual prevê expressamente que a revisão de tese se dará pelo mesmo Tribunal que fixou a tese.

Quanto ao juízo competente para a revisão, importante registrar que em sede de IRDR nada impede que a revisão se dê pelo Tribunal local, julgador do incidente. Contudo, como o nosso direito é fundamentalmente constitucional ou federal, há de se ter presente o disposto no art. 987 do CPC/2015, que prevê o recurso extraordinário ou especial no caso de julgamento de mérito, o que tende, dada a nossa tradição recursal, a transferir a última palavra para os Tribunais Superiores. Em sendo este o caso, será da competência desses Tribunais a revisão de tese.

Relativamente à legitimidade para promover a revisão, tem-se o art. 986, que remete ao art. 977, inciso III, ambos do CPC/2015, apontando como legitimados para sua proposição o Ministério Público e a Defensoria Pública, autorizando, também, como não poderia deixar de ser, sua instauração de ofício pelo próprio Tribunal autor da fixação da tese. Daí por que afirmar-se acima que só agirá de ofício para revisão de tese o Tribunal local, quando a decisão do IRDR tenha transitado na instância local. Caso contrário, concentra-se no STJ e no STJ eventual iniciativa nesse sentido. É a verticalização das Cortes Superiores, tão defendida por Daniel Mitidiero (2014), conforme já citado.

Está em discussão, em apertada síntese, que as questões jurídicas, conquanto ligadas a situações pretéritas e/ou presentes, produzirão os efeitos descritos nos incisos I e II do art. 985 do CPC/2015, cabendo, todavia, se alteradas as situações de fato ou de direito, a revisão, cujo fundamento maior é a própria justiça da decisão, mas que nem por isso renunciam ao devido cabimento e procedimento.

Talvez não fosse demasiado afirmar-se que o conjunto de métodos usados na nova versão do Código de Processo Civil tenha absorvido as dimensões do ativismo judicial adotado pelo STF, abordagem crítica levada a efeito por Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2014) [4].

Além do mais, as demandas repetitivas alcançam a tutela dos direitos transindividuais homogêneos, lado a lado dos direitos ou interesses difusos ou coletivos. Logo, pode-se dizer que as demandas repetitivas se completam com a técnica utilizada nos precedentes normativos (stare decisis).

Nesse sentido, os Tribunais começam a adotar a revisão da tese jurídica, consoante ocorreu, recentemente, no IRDR 0302355-11.2014.8.24.0054/50000, de Rio do Sul/SC, cujo teor reforça a tese de aplicabilidade imediata do instituto predito:

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDA REPETITIVA – IRDR. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTOS E TERAPIAS PELO PODER PÚBLICO. DISTINÇÃO ENTRE FÁRMACOS PADRONIZADOS DOS NÃO COMPONENTES DAS LISTAGENS OFICIAIS DO SUS. NECESSÁRIA REPERCUSSÃO NOS REQUISITOS IMPRESCINDÍVEIS AO NASCIMENTO DA OBRIGAÇÃO POSITIVA DO ESTADO. 1. Teses jurídicas firmadas. 1.1 Para a concessão judicial de remédio ou tratamento constante do rol do SUS, devem ser conjugados os seguintes requisitos: (1) a necessidade do fármaco perseguido e adequação à enfermidade apresentada, atestada por médico; (2) a demonstração, por qualquer modo, de impossibilidade ou empecilho à obtenção pela via administrativa (Tema nº 350 do STF). 1.2 Para a concessão judicial de fármaco ou procedimento não padronizado pelo SUS, são requisitos imprescindíveis: (1) a efetiva demonstração de hipossuficiência financeira; (2) ausência de política pública destinada à enfermidade em questão ou sua ineficiência, somada à prova da necessidade do fármaco buscado por todos os meios, inclusive mediante perícia médica; (3) nas demandas voltadas aos cuidados elementares à saúde e à vida, ligando-se à noção de dignidade humana (mínimo existencial), dispensam-se outras digressões; (4) nas demandas claramente voltadas à concretização do máximo desejável, faz-se necessária a aplicação da metodologia da ponderação dos valores jusfundamentais, sopesando-se eventual colisão de princípios antagônicos (proporcionalidade em sentido estrito) e circunstâncias fáticas do caso concreto (necessidade e adequação), além da cláusula da reserva do possível. 2. Aplicação ao caso concreto. 2.1 Recursos do Município e do Estado conhecidos e parcialmente providos para excluir da condenação o fornecimento dos fármacos não padronizados.” (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 0302355-11.2014.8.24.0054/50000, de Rio do Sul, Rel. Des. Ronei Danielli, Caderno Jurisdicional do Tribunal de Justiça, Diário de Justiça do Estado de Santa Catarina – DJSC, edição de 24.11.2016, p. 282)

É dizer: a revisão da tese jurídica deve partir da ratio decidendi, ou seja, as razões que foram adotadas pelo julgador para decidir de determinado modo. Portanto, se as circunstâncias que motivaram o julgamento sofrem alteração em razão de novas situações fáticas ou jurídicas, por óbvio a tese deve ser modificada, já que a vinculação não se perpetua.

Sem contradita, Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Pedron, quando destacam que o instituto, provindo da Alemanha, assegura, pelas novas regras encetadas pelo CPC/2015, auxílio na resolução de questões semelhantes:

Nesse sentido, a contribuição alemã, já indicada em outra sede, pode nos auxiliar, uma vez que lá os critérios usualmente utilizados na eleição são: ‘a) a amplitude da demanda proposta, b) a abrangência de tratamento do maior número de questões fáticas e jurídicas, ou mesmo, um eventual acordo entre os litigantes. A princípio, é importante que a demanda proposta pelo autor-representante cubra a maioria dos aspectos envolvidos na controvérsia’.” (2015, p. 378-379)

Nesse contexto, o IRDR, na atualidade e pelo prestimoso subsídio que atinge as demandas repetitivas, localiza lugar de destaque no sistema processual civil vigente, posto que reforça a presença da vinculação para outros casos que se encontrem discutindo as mesmas matérias. Numa palavra: o instituto se assemelha aos procedimentos adotados nos recursos extraordinários e especiais, de caráter repetitivos, alcançando, pelas razões já explicitadas alhures, a normatização dos precedentes judiciais (arts. 926, § 2º, e 927, § 5º, do CPC/2015).

Contudo, importante destacar que no tratamento legislativo do procedimento dos recursos repetitivos (CPC/2015, arts. 1.036 a 1.041) impera o silêncio sobre qualquer pretensão de revisão de tese jurídica firmada nos respectivos julgamentos. Cediço que entre o IRDR e a técnica de julgamento de recursos repetitivos a diferença se dá muito mais na questão procedimental e na competência do órgão julgador do que na finalidade, porque ambas as previsões destinam-se ao mesmo fim: enfrentar a numerosidade de processos que tenha por fundamento controvérsia sobre questões de direito idênticas, com risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Por certo que os julgamentos realizados pelos Tribunais Superiores segundo essa técnica, concluindo por fixação de tese a ser adotada nos processos em curso e nos futuros (art. 332, inciso II, do CPC/2015), não podem ficar à deriva de uma possível revisão de tese. A ausência de previsão expressa não é obstativa a que se aplique, analogicamente, a regra do art. 986, na forma prevista pelo art. 140 do CPC/2015 e pelo art. 4º da Lei de Introdução às Normas do direito brasileiro.

Quanto à distinção, instituto trabalhado em sede doutrinária à luz do distinguishing do direito alienígena, volta-se para a discordância de uma das partes dos processos sobrestados em sede de recursos extraordinário ou especial repetitivos, objetivando o prosseguimento de seu processo porque – e esse é ônus seu demonstrar – a questão a ser nele decidida é diversa daquela a ser julgada pelas Cortes Superiores nos recursos afetados, não justificando, portanto, a suspensão dos feitos (PORTO; USTÁRROZ, 2016, p. 215). Da distinção cuida expressamente o art. 1.037, §§ 9º e 10, do CPC/2015, podendo o respectivo requerimento ser dirigido ao juiz de primeiro grau; ao relator nos feitos que se encontram sobrestados nos Tribunais junto aos órgãos fracionários dos Tribunais locais; ao relator do acórdão recorrido, se for sobrestado recurso extraordinário ou especial na origem; e ao relator junto aos Tribunais Superiores se o sobrestamento se deu nessa instância.

O procedimento da distinção encontra contraditório (§ 11 do art. 1.037) e a respectiva decisão é recorrível via agravo de instrumento ou agravo interno, conforme a instância judicial decisória (§ 13 do art. 1.037).

Curiosa e inversamente à constatação de previsão de revisão de tese jurídica, conforme antes alardeado, o procedimento de distinção é tratado minuciosamente na seção do julgamento dos recursos extraordinário ou especial repetitivos, mas não encontra previsão no procedimento do IRDR, embora também nele se dê o sobrestamento dos processos e recursos em tramitação (art. 982, inciso I, do CPC/2015). Mais uma vez, é de se colacionar a analogia como forma de suprir essa omissão, adotando-se, no que couber, as regras do art. 1.037, §§ 9º ao 13, do CPC/2015.

É pela via da revisão de tese jurídica e do pedido de distinção que se pode corrigir os excessos na customização dos julgamentos pelos Tribunais de causas, em princípio, que versem sobre idêntica controvérsia de direito, evitando-se ou minimizando o risco da estandardização ou, ainda, como acusa Lenio Luiz Streck nesta passagem:

O que resta do direito? Qual é o papel da doutrina? Os julgamentos se tornaram monocráticos…! Milhares de processos são ‘resolvidos’ no atacado…! Não mais discutimos causas, pois passamos a discutir ‘teses’ jurídicas…! Como que a repetir a lenda do ‘leito de Procusto’, as causas são julgadas de acordo com conceitos previamente elaborados (súmulas, repercussão geral, etc.).” (2012, p. 114)

Se, de um lado, impossível negar a conflituosidade massificada da sociedade de consumo, a exigir do sistema uma solução adequada para superação do fenômeno da numerosidade de processos, de outro, não é possível perder-se de vista a concretude de casos distintos ou, mesmo, a necessidade de atualização da tese jurídica firmada pelos Tribunais locais ou superiores, na medida de suas respectivas competências. E esse equilíbrio se dá pela revisão da tese jurídica e pelo pedido de distinção.

5 Considerações Finais

Na verdade, as tendências aqui debatidas adotaram, mesmo que com naturalidade, o poder usado pela Corte estadunidense cognominado de judicial review. Contudo, quando se está frente aos recursos oriundos de ações de massa, repetitivas, a função dos Tribunais se reveste muito mais de mera judicial review para assegurar a racionalidade do direito, atendendo ao que o art. 926 do CPC/2015, em bom tempo, determina: os Tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. O direito não convive com a insegurança jurídica nem tolera a ofensa à isonomia.

Nesse contexto, é inquestionável que todos os tentames destinados a tornar a justiça mais uniforme, previsível e acelerada, primando-se por produzir decisões adequadas, sem ferir a segurança jurídica e a isonomia, vetores constitucionais, são válidos e devem ser recepcionados pela comunidade jurídica.

O fenômeno da numerosidade de processos é real e inevitável numa sociedade globalizada, de consumo e de prestação de serviços públicos e privados que atingem a um grande número de usuários. Como consequência, as demandas de massa chegam aos foros judiciais e culminam por tramitar todas as fases processuais contempladas no ordenamento jurídico, concentrando-se nos Tribunais locais e, especialmente, nos Tribunais Superiores em números miraculantes, inviabilizando a boa prestação jurisdicional.

A técnica do julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos, já recepcionada pelo Código revogado, em reforma que se deu nos anos de 2006 e 2008, foi revisitada pelo Código de 2015, trabalhando, lado a lado com o incidente de resolução de demandas repetitivas, diretamente voltado para a instância dos Tribunais locais, impedindo que sobre o tema enfrentado se multipliquem os recursos extravagantes.

Por outro lado, a massificação dos processos pode esbarrar em um equívoco de identificação da causa a ser decidida ou, ainda, esclerosar-se no tempo. Para tanto, o sistema se vale de duas técnicas específicas, o procedimento de revisão da tese jurídica adotada pelo Tribunal e o pedido de distinção insurgindo-se com a suspensão de processo cujo conflito se divorcia daquele tratado nos recursos afetados para julgamento paradigmático.

No ponto, o Código de 2015 foi insuficiente, na medida que previu o procedimento de revisão da tese jurídica ao tratar do IRDR, olvidando-se de prever seu cabimento no procedimento do julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, enquanto que o pedido de distinção é expressamente regulado nesse, mas omisso naquele. Propõe-se, até porque nenhuma razão lógica impede a dupla incidência, que via analogia se aplique ambos os incidentes – revisão de tese e distinção – nas duas hipóteses de julgamento de demandas repetitivas.

Por fim, não há dúvida de que muito se tem caminhado em direção a uma maior racionalidade na aplicação do direito e na solução dos conflitos, bem como na diminuição do tempo de duração dos processos judiciais brasileiros. Não obstante, mesmo que as novas tendências processuais possam ainda precisar de adequações e aperfeiçoamentos, não é em excesso asseverar que, atualmente, se constituem em meio adequado de conduzir o devido processo legal, preconizado na Carta Política brasileira.

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[1] Com acesso em 12.11.2016, o total indicado é de 109.056.417 processos, conforme: <http://www.amb.com.br/novo/?page_id=23202>.

[2] Embora tal previsão já constasse do art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99 e do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/99, a vinculação, agora, vem por fonte constitucional, afastada qualquer discussão sobre a eventual inconstitucionalidade daqueles dispositivos.

[3] A hipótese de incidência deste recurso não coincide com a previsão do agravo interno do art. 1.021, contemplado para as decisões monocráticas de relator de processo em curso, tanto é assim que o órgão colegiado para o julgamento do agravo interno é aquele que detém a competência para julgar o recurso, incidente ou processo em que foi proferida a decisão monocrática. A decisão a ser recorrida via agravo interno, conforme art. 1.036, § 3º, é a proferida pelo presidente ou pelo vice-presidente em razão do sobrestamento de recurso já julgado na origem, não podendo, por óbvio, sob pena de inversão de hierarquia, vir a ser revista pelo órgão fracionário julgador. Trata-se de uma inconsistência legislativa que os regimentos internos de cada Tribunal deverão resolver, sugerindo-se, no caso, que o recurso venha a ser julgado ou pelo órgão especial ou pelo Tribunal pleno, que são os órgãos que detêm competência para rever atos praticados pelo presidente ou pelo vice-presidente do Tribunal.

[4] A abordagem se dá pela alteração quantitativa e qualitativa do espaço ocupado pelo Supremo nas últimas décadas, especialmente após o advento da Constituição de 1988, processando-se uma reinvenção da própria Corte no cenário sociopolítico brasileiro, caracterizando uma ascensão institucional, que o autor identifica como um ativismo judicial. Em apertada síntese, representa uma criação do direito via jurisprudencial.

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