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A TAXATIVIDADE MITIGADA DO ARTIGO 1.015 DO CPC

A TAXATIVIDADE MITIGADA DO ARTIGO 1.015 DO CPC

José Aurélio de Araújo

 

A doutrina já alertou, suficientemente, para os problemas quanto à preclusão e à insegurança jurídica impostos pela solução adotada no julgamento do Tema Repetitivo nº 988, pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de relatoria da Min. Nancy Andrighi, ocorrido em 05 de dezembro de 2018, que consolidou o entendimento de que o artigo 1.015, do Código de Processo Civil de 2015 (CPC) encerra uma taxatividade mitigada. Entre esses trabalhos doutrinários, destacamos os vários textos veiculados neste espaço, com os quais concordamos na totalidade, em especial aqueles de autoria do professor Marcelo Pacheco Machado e o dos professores André Vasconcelos Roque et alia.

Cremos, no entanto, que duas faces desta questão concernentes ao sistema funcional do CPC perduram na penumbra: as escolhas do legislador pela irrecorribilidade imediata de decisões acerca da matéria de competência e pelo princípio da irrecorribilidade das interlocutórias aplicado a um fracionado procedimento comum, não concentrado e escrito.

Uma das lições mais importantes que tive de Direito Processual me foi dada pela Professora Paula Costa e Silva, que pode ser concentrada na seguinte expressão: o processo é um sistema de vasos comunicantes, ou seja, não é possível avaliá-lo em partes separadamente, mas somente dentro da funcionalidade do sistema, como a um corpo ou a uma máquina, no qual a alteração ou a mudança imposta em uma pequena parte gera efeitos na funcionalidade do todo.

Não nos parece que o sistema do CPC tenha simplesmente esquecido de elencar, na enumeração do artigo 1.015, as questões acerca de competência entre aquelas recorríveis; muito pelo contrário, optou por não anular as decisões prolatadas por juízos absolutamente incompetentes (artigo 64, CPC), como fazia o artigo 113, § 2º, CPC/1973, adotando a teoria quanto ao aproveitamento dos atos processuais e quanto à nulidade somente do julgamento de mérito, da translatio judicii, trazida para o nosso Direito pelo Professor Leonardo Greco[1].

Segundo esta doutrina, “A nulidade dos atos decisórios, a que se refere o § 2º do artigo 113 do nosso Código de Processo Civil, diz respeito apenas aos atos decisórios finais para os quais o juízo de origem era incompetente” preservando-se “Em princípio, todas as decisões sobre questões processuais, sobre matéria probatória, assim como as decisões provisórias sobre o direito material”.

Assim, aplicando este princípio ao sistema do CPC, não há necessidade imediata de impugnar as decisões quanto à incompetência, mesmo a absoluta, que vai atingir tão somente a decisão final de mérito, prolatada pelo juízo incompetente, aproveitando-se os demais atos após a remessa dos autos ao juízo competente.

Necessário, portanto, que se reflita como esse sistema pensado originalmente pelo legislador passa a funcionar a partir do julgamento do Tema nº 988, pois a recorribilidade imediata acerca de competência esvazia a celeridade pretendida pelo aproveitamento das interlocutórias.

A outra questão relativa ao sistema do Código, de maior profundidade, que é a causa, em verdade, dessa necessidade de imediata recorribilidade das interlocutórias, diz respeito à própria escolha originária do legislador pelo princípio da irrecorribilidade das interlocutórias.

A impugnabilidade ou não das decisões quanto à competência, como de qualquer outra decisão, só será eficaz se recordarmos que o princípio da irrecorribilidade das interlocutórias foi estruturado por Chiovenda[2] como parte do sistema da oralidade, vinculado aos seus demais subprincípios, em especial seu consectário necessário: a concentração.

A irrecorribilidade das interlocutórias é um “vaso comunicante” inserido como peça do maquinário da oralidade.

O princípio da irrecorribilidade é aplicável ao processo oral e concentrado em uma ou poucas audiências, sendo desnecessário o recurso contra a interlocutória, pois a decisão final já se avizinha e, portanto, é evidentemente mais eficiente que sua impugnação ocorra em eventual impugnação contra a sentença, em especial para que se verifique a permanência do interesse recursal.

Se inserirmos esse princípio em um processo escrito e preclusivo como o nosso de 2015[3], vamos incorrer no mesmo erro do CPC de 1939, impondo que advogados, defensores, procuradores, juízes e tribunais, enfim, adotem corruptelas hermenêuticas na tentativa de superação dos nocivos efeitos que a irrecorribilidade impõe quando submetida à demora de um processo fragmentado e prevalentemente escrito.

Na tentativa de superar um problema estrutural do sistema de irrecorribilidade das interlocutórias do CPC, o STJ cria outro: a inserção de um conceito jurídico indeterminado (“urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”) na regra taxativa de cabimento do recurso de agravo de instrumento do dispositivo do artigo 1.015, CPC.

A Tese nº 988 posta para julgamento na Corte Especial já indicava fórmula interpretativa aberta e, portanto, juridicamente insegura[4], pois não se limitava a interpretar a impugnabilidade imediata da decisão sobre competência. O STJ, que tem por função precípua a interpretação e integração da norma federal, acaba por emitir um “cheque em branco” de discricionariedade aos intérpretes da regra do artigo 1.015, CPC, quando deveria cumprir a missão de reduzir as incertezas quanto ao cabimento de tão relevante recurso do dia a dia forense: deveria ter dito que as decisões quanto à competência são recorríveis por agravo de instrumento sob pena de preclusão e ponto final.

Pode-se caminhar com aqueles que entendem que a função jurisdicional constitui-se em atividade criativa de norma e não meramente interpretativa – com a qual não concordamos – mas agregar conceito jurídico indeterminado, espaço de discricionariedade amplo, à regra relativa ao sistema processual de aplicação geral produz o efeito contrário que deveria produzir: insegurança jurídica. Quando devo ou quando não devo recorrer, de imediato, sob pena de preclusão?

O conceito jurídico indeterminado faz parte do sistema evidentemente e serve para aquelas hipóteses nas quais o legislador concede ao aplicador da norma espaço de discricionariedade, de escolha, na adequação do fattispecie à norma abstrata, diante da incapacidade do legislador de estar lá para identificar a melhor hipótese[5].

A solução adotada pelo “cheque em branco hermenêutico”, subvertendo a regra do artigo 1.015, CPC, e usurpando a competência constitucional do legislador, não vai nos salvar das incertezas e do fracasso da irrecorribilidade das interlocutórias inserida em um processo escrito, preclusivo e fragmentado, como, da mesma forma, não aponta saída para o que devemos fazer com o sistema de aproveitamento de atos praticados pelo juiz incompetente.

A partir de um problema e de uma tentativa de solução, agora nos deparamos com vários problemas e solução nenhuma.

Por ironia, a correção de rumo retorna àquela que possui competência constitucional para enfrentar a questão: somente a alteração legislativa que empreenda um processo concentrado e oral ou o retorno à última fórmula do CPC de 1973, de recorribilidade imediata, poderá corrigir tal estado de insegurança jurídica.

 

[1] GRECO, Leonardo. Translatio iudicii e reassunção do processo. Revista de Processo. RT. São Paulo, n. 166, p. 9-26, dez. 2008.

[2] CHIOVENDA, Giuseppe. Relazione sul progetto di riforma del procedimento elaborato dalla Commissione per il dopo guerra In: Saggi di Diritto Processuale Civile (1894-1937), volume II. Milão: Giuffrè, 1993.

[3] ARAUJO, José Aurélio de. O Código de Processo Civil de 2015 é um Código josefino? A oralidade e a preclusão no procedimento comum (Parte II). Revista de Processo. vol. 287/2019. Jan/2019. p. 145 – 175.

[4] “Definir a natureza do rol do artigo 1.015 do CPC/2015 e verificar possibilidade de sua interpretação extensiva, para se admitir a interposição de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que verse sobre hipóteses não expressamente versadas nos incisos do referido dispositivo do novo CPC”.

[5] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados In Temas de Direito Processual. Segunda Série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 66-67.