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“SUBSOCIEDADE” E O DIVÓRCIO

“SUBSOCIEDADE” E O DIVÓRCIO

Rénan Kfuri Lopes

 

De plano, cumpre observar que na sociedade de pessoas o liame da relação contratual que a constitui é ligação de cunho pessoal, affectio societatis, na qual os sócios guardam entre si vínculos que extrapolam o mero interesse de empreender juntos para a realização do objeto social.

FÁBIO ULHÔA COELHO alumia que “a affectio societatis é a disposição dos sócios em formar e manter a sociedade uns com os outros. Quanto não existe ou desaparece esse ânimo, a sociedade limitada pluripessoal não se constitui ou deve ser dissolvida”.[1]

Especialista na matéria, GLADSTON MAMEDE assevera que “A contratação, em sentido largo, pressupõe o problema do ânimo de contratar (animus contrahendi), da intenção consciente de estabelecer um vínculo contratual e, destarte, constituir uma obrigação sobre si (vinculada a seu patrimônio). Essa intenção (animus) é, muitos casos, o elemento distintivo entre uma contratação e outra…Nos contratos de trato continuado, que se alongam no tempo, esse animus deve prologar-se para uma correta execução das prestações…No plano específico do contrato de sociedade, essa intenção (animus) deve manifestar-se por meio de ações e omissões que se harmonizem com os objetos da instituição da pessoa jurídica. A affectio societatis é, por cento ângulo, um elemento subjetivo que dá origem à sociedade; enfocada de forma coletiva, a englobar todos os sócios, será justamente o elo psicológico necessário para a constituição da sociedade em comum e de sua transformação em sociedade simples ou empresária”.[2]

Bem por isso, a ação de apuração de haveres em sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada cabe somente a quem dela seja sócio.

Aquele que adquire quotas de um sócio sem o consentimento dos demais ou mesmo por intermédio de uma determinação judicial, não é admitido como sócio; posto que prevalece o princípio da affectio societatis, ou seja, como dito, exige a anuência dos demais sócios.[3]

Esse estranho associado no quinhão do sócio constitui com ele uma “subsociedade”, sem direito de ingerência sobre a administração e o destino da sociedade.

MARIA HELENA DINIZ preleciona que “o sócio poderá associar um estranho ao seu quinhão social, sem o concurso dos autos, porque formará com ele uma subsociedade, que nada terá que ver com os demais sócios; porém não poderá, sem aquiescência dos demais, associá-lo à sociedade de pessoas, alienando sua parte, ante a relevância do intuito personae”.[4]

No divórcio a partilha de bens não torna o ex-cônjuge automaticamente sócio!

A existência de quotas sociais entre os bens a partilhar, não pode – salvo expressa previsão no contrato social – permitir a titularização das mesmas ao ex-cônjuge não sócio quando a sociedade é limitada, ao contrário do que acontece numa firma individual ou sociedade anônima.

No ambiente legal a vedação vem do comando esculpido pelo art. 1.027 do Código Civil, in verbis:

“Art. 1.027. Os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”

Prelecionam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD:

“…quando um dos separandos é sócio ou cotista de alguma empresa, também, haverá controvérsia quanto à partilha das cotas sociais. Seguindo a regra do art. 1.027 da Codificação, respeitando a ´affectio societatis´ e a própria função social da empresa (já que não seria razoável extinguir a pessoa jurídica somente em razão da dissolução do casamento de um dos sócios),a empresa continuará operando normalmente, e o ex-cônjuge do sócio terá direito a receber a cota que lhe couber sobre a divisão periódica dos lucros até a dissolução da sociedade.

De fato, o direito do cônjuge que está se separando, cinge-se à parcela dos lucros que o sócio (ex-cônjuge) receberá na divisão periódica a liquidação social. Apena quando a sociedade estiver sendo dissolvida é que o separado poderá participar da divisão dos bens componentes do capital social”.[5]

Significa dizer, o ex-cônjuge não se torna sócio, mas sim titular do valor patrimonial relativo à quota do sócio de quem se separou, tendo direito a concorrer na divisão periódica dos lucros na proporção que lhe foi destinada na partilha, que foram distribuídos ao sócio/ex-cônjuge dentro do estabelecido no contrato social ou por deliberação dos sócios. E ainda lhe resta participação no capital social quando da dissolução da sociedade.

A “subsociedade” é uma relação entre os ex-cônjuges e não tem força legal de inclusão na sociedade contra a vontade dos demais sócios/terceiros, posto que estes não estão obrigados a receber um novo sócio em seu quadro societário em razão de acordo firmado entre aqueles participantes da partilha em ação de divórcio.[6]

As quotas foram destinadas ao ex-cônjuge pelo sócio, mas não com os outros sócios —socci mei socius meus socius non est—[7]; por isso, não o conduz ao status legal de sócio da empresa.

O quinhão destinado ao ex-cônjuge lhe dá direito aos lucros na sua proporção que será apurado, ajustado e pago nesta relação de “subsociedade”. E também lhe restará a participação no capital social apenas quando da dissolução da sociedade.

Acentuou o colendo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que se apresenta “incabível provimento jurisdicional específico que determine o ingresso compulsório de sócio quando ausente a affectio societatis, motivo pelo qual se impõe a reforma do acórdão recorrido para decretar a resolução do contrato, a fim de que se resolva a questão em perdas e danos” [Resp 1.192.726/SC, DJe 20.03.2015; Resp 1.187.518-TO, DJe 05.04.2017].

Portanto, não há legitimidade ativa do ex-cônjuge para promover ação de dissolução parcial da sociedade como anotado pelo    SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: “a ação de apuração de haveres em sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada cabe somente a quem dela seja sócio, não se equiparando a tal a tal quem adquire quotas de outro sócio, ainda que por partilha em dissolução de casamento pelo regime de comunhão de bens”.

Extrai-se do corpo do acórdão trecho do voto condutor do Min. DIAS TRINDADE: “O fato da partilha, contudo, não faz sócio o ex-marido da sócia, dado que não é apenas a aquisição de quotas que impõe a admissão societária, pois que necessário se apresenta o consentimento dos demais sócios e, em complementação, o arquivamento da Junta Comercial da alteração do contrato” [Resp 29.897-4/RJ, j.14.12.1992, apud RSTJ 138/123].

Noutra ótica, sem que haja autorização expressa no contrato social, a cessão de quotas para outro cônjuge não lhe garante o direito de ingressar nas sociedades sem a concordância de ao menos 3/4 do quadro social, como dispõe o art. 1.057 do Código Civil, ex legis:

Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.

Parágrafo único. A cessão terá eficácia quanto à sociedade e terceiros, inclusive para os fins do parágrafo único do art. 1.003, a partir da averbação do respectivo instrumento, subscrito pelos sócios anuentes.

Único o posicionamento jurisprudencial dos tribunais pátrios sobre o tema:

“A atribuição de parte das cotas do sócio à ex-cônjuge formam uma subsociedade entre os então cônjuges, mas não tem forma de incluí-la na sociedade contra a vontade dos demais sócios, posto que estes não estão obrigados a receber uma nova sócia em seu quadro societário em razão de acordo firmado entre aqueles em ação de divórcio”

[TJMG, Apel. Cível 1.0317.13.002789-7/004 –NU 0027897-34.2013.8.13.0317, DJe 21.07.2020]

“O direito à meação das cotas de sociedade integrada por ex-companheiro é uma subsociedade e impossível seu ingresso automático como sócia, a teor do art. 1.027 do Código Civil”

[TJRJ, Apel. Cível 1038893-52.2011.8.19.002,

DJe 09.03.2021]

“O ex-cônjuge não se torna sócio de pronto, mas se cria uma subsociedade, é sim titular do valor patrimonial da quota parte referente a eventual divisão periódica dos lucros, e não de ingressar na sociedade com sócio”

[TJRS, AI 0055629-90.2016.8.21.7000, DJe 19.09.2016]

Destarte, terá legitimidade o ex-cônjuge buscar  apuração de haveres do quinhão que lhe pertence na “subsociedade” ou mesmo um através do pleito de extinção de condomínio, em demanda dirigida contra o seu ex-cônjuge e sócio, a quem lhe incumbirá o pagamento; sem, contudo, qualquer responsabilidade da sociedade.[8]

Com efeito, é a data da dissolução fática da comunhão de bens que deve constituir o marco para monetarização dos haveres do cônjuge que se retira da sociedade conjugal. A extinção da sociedade conjugal tem como efeito direto e imediato a resolução da “subsociedade” que se formou entre os cônjuges no tocante às cotas.

Dessa forma, em relação ao cônjuge não sócio, a resolução ou liquidação da sociedade ocorre no momento da separação de fato, postergando-se, apenas, o pagamento dos haveres para a ocasião seguinte da partilha. Extinto o regime de bens, não há mais sociedade alguma entre os cônjuges.

Ainda que não se possa aplicar, de forma automática, o regime do art. 1.031 do Código Civil ao casamento, o fato é que o legislador foi muito claro quando elegeu a data em que a sociedade “termina” como aquela em que se dará a apuração dos haveres.

Não apenas no art. 1.031, quando determina que, “nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, liquidar-se-á com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução”, mas igualmente no art. 1.672, quando disciplina a apuração dos aquestos com base no patrimônio existente “à época da dissolução da sociedade conjugal”.

Ao ocupar-se da ação de dissolução parcial de sociedade, o Código de Processo Civil igualmente dispôs sobre a possibilidade de o cônjuge do sócio, cujo casamento terminou, “requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio” [CPC, art. 600, parágrafo único].

E o legislador processual de 2015 foi taxativo quando decretou, no art. 604, que “para apuração dos haveres, o juiz: I – fixará a data da resolução da sociedade”, bem como no art. 606, cuja dicção ordena que, em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução”.[9]

Em outras palavras, constitui comando categórico da lei adjetiva que a apuração do valor das participações sociais, salvo previsão diversa em contrato social ou estatuto, tem que ser feita com base na data da resolução da sociedade. E tais regras, conforme se infere da redação do parágrafo único do artigo 600 do CPC, são aplicáveis também às situações em que o cônjuge do sócio se retira da sociedade conjugal.

A “resolução” da sociedade conjugal não se dá por ocasião da partilha dos bens comuns, mas no momento em que cessada a convivência. Com a separação de fato, o cônjuge se retira, não apenas da sociedade conjugal, mas também da “subsociedade” formada com o consorte em relação à empresa da qual apenas um deles integrava o quadro social. As duas sociedades se extinguem na data da separação de fato e é esta a data em que se devem apurar os haveres.

Sempre sugiro nesta moldura fática, por experiência profissional, que na dissolução de casamento, quando a partilha de bens envolve a participação societária de um dos cônjuges, quando possível, que se faça a compensação do valor daquelas quotas sociais por outros bens do acervo conjugal; evitando, assim, conflito de interesses com a sociedade.

Sub censura.

BH, 24.V.22

 

[1] COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de Direito Comercial, vol.2: direito de empresa, 18ª ed., Saraiva, 2014, p. 422.

[2] MAMEDE, Gladston, Direito Societário: sociedades simples e empresárias, 10ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2018, p.82.

[3] Resp 1.587.518/TO, DJe 05.04.2017.

[4] Código Civil Anotado, Saraiva, 1.995, p. 824.

[5] Direito das Famílias, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, p.341.

[6] TJMG, Apel. Cível 1.0317.13.002789-7/004 – NU 0027897-34.2013.8.13.0317, DJe 21.07.2020.

[7] “Meu parceiro que ronca não é meu parceiro”

[8] TJSP, AI 0357779-88.2010.8.26.0000, DJe 04.07.2011.

[9] CPC, art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.