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SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO: COMPREENSÃO CRÍTICA A PARTIR DA TRADIÇÃO INGLESA E NORTE-AMERICANA

SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO: COMPREENSÃO CRÍTICA A PARTIR DA TRADIÇÃO INGLESA E NORTE-AMERICANA

Eduardo Cambi

Rafael Gomiero Pitta

                       

SUMÁRIO: Introdução – 1. O sistema de precedentes inglês – 2. O sistema de precedentes norte-americano – 3. Precedentes no direito brasileiro: uma construção problemática – Conclusão – Referências.

INTRODUÇÃO

Os ingleses, assim como os norte-americanos, levam o precedente a sério. Não há doutrina produzida por autores anglo-americanos em que os casos emblemáticos não tenham um lugar de amplo destaque. Ao longo dos últimos séculos, o direito anglo-americano moldou um método sofisticado de julgamento, utilizando a lógica e a força dos precedentes.

A previsibilidade é inerente ao Estado de Direito e, no sistema common law, não é permitido ao juiz desapontar os cidadãos com decisões imprevisíveis, surpreendentes e que não possam ser imaginadas com antecedência (WAMBIER, 2009, p. 04).

Assim, é importante compreender as razões que fizeram essa cultura jurídica se desenvolver e, conhecendo os instrumentos de aplicação desse sofisticado sistema, encontrar a resposta sobre a possibilidade de aplicação dessa lógica no ordenamento processual brasileiro.

É sabido que a Inglaterra suportou, durante longo período, uma espécie de jurisdição dúplice que, seguindo o padrão consuetudinário do desenvolvimento de seus procedimentos, acabou produzindo um sistema segmentado de prestação jurisdicional.

Nesse sistema jurisdicional dúplice, as cortes de equity e common law conviveram durante longo período. Mesmo após a prevalência gradativa da common law sobre a equity, esta última nunca foi oficialmente extinta, ocorrendo uma sequência de reformas no decorrer do tempo que terminou por fundi-las.

O sistema surgido e desenvolvido na Inglaterra, amplamente conhecido como common law, requer uma significativa atuação dos juízes na construção do direito. Essa atuação jurisdicional se diferencia sobremaneira da criação do direito em relação ao sistema civil law, na medida em que considera a relevância principiológica das decisões de casos anteriores para pautar os julgamentos de casos futuros.([1])

A metodologia de escolha desses casos paradigmas, como já dito, evoluiu com o passar do tempo, e o papel dos juízes na common law, que efetivamente cria o direito a partir dos critérios para sua decisão, pouco se assemelha ao desempenho de um magistrado forjado pela concepção romano-germânica.

A formação de um acadêmico, advogado, juiz ou promotor no sistema common law implica e requer um conhecimento além do ordenamento jurídico e de organização judiciária. O profissional do direito no common law deve conhecer os principais casos paradigmáticos da área em que atua, bem como compreender com exatidão a metodologia de aplicação de precedentes.

Por outro lado, o preparo de um profissional de direito no Brasil exige conhecimento da legislação, da organização judiciária e dos procedimentos processuais adequados a um ramo de atuação específico. O método expositivo, seguindo a herança cultural portuguesa, é o mais utilizado para o ensino do Direito, sendo que o estudo de casos e o desenvolvimento de argumentos para a aplicação de precedentes foi esquecido ou relegado a segundo plano, seja em nível de graduação, pós-graduação ou mesmo nos concursos para preenchimento de cargos no Poder Judiciário e nas demais carreiras jurídicas, bem como na formação continuada desses profissionais.

Mesmo diante da ausência de tradição no direito brasileiro, da falta de uma cultura de respeito às decisões de casos precedentes e de uma aplicação contínua e solidificada do conceito de stare decisis([2]) nas cortes judiciais, o legislador brasileiro optou por desenvolver um sistema de precedentes no novo Código de Processo Civil.

Ao se impor a sistemática de precedentes aos órgãos do Poder Judiciário, surge a dúvida de se saber se os mesmos métodos de aplicação do common law devem ser utilizados no direito brasileiro.

A importação de uma metodologia secular([3]) desconsidera o fato de que o sistema inglês se desenvolveu de forma muito peculiar, com base no costume e no decorrer de séculos. O sistema norte-americano, por sua vez, conhecido por ser excepcionalista, herdou a sistemática inglesa no período de colonização e gradualmente adaptou-a à forma de Estado que ali se desenvolvera.

Logo, é preciso ter cautela ao afirmar que o Código de Processo Civil de 2015 introduziu um sistema pronto, desenvolvido durante séculos em uma cultura jurídica específica muito diversa da brasileira. Assim, além de conhecer, é preciso ter cuidado com a aplicação de conceitos como distinguishing, overruling, stare decisis, super stare decisis, ratio decidendi, obiter dictum, precedent courts, binding precedent, optional precedent, mandatory precedent, strong precedent, weak precedent, persuasive precedent, leading case, certiorari, non-precedential decisions, unpublished decisions, etc.

Autores ingleses, como Sir Rupert Cross e J. W. Harris (2011, p. 19), entendem que o formato norte-americano dificulta a aplicação correta dos precedentes, devido à existência de uma quantidade de jurisdições diferentes pela separação em unidades federativas e autonomia da legislação procedimental em cada uma delas.

Isso decorre de um sistema constitucional que, em tese, é incompatível com o sistema inglês, tendo assim se desenvolvido de forma excepcional([4]) nos Estados Unidos. Apesar disso, é mais comum que pesquisadores de outros países estudem o sistema norte-americano, enquanto o contrário não costuma ocorrer com frequência, possivelmente pela cultura autocentrista forjada pelos norte-americanos.

É certo que países como Brasil, Japão e Alemanha, impulsionados por estudos de direito comparado, adotam mais usualmente a importação de novas concepções técnicas([5]) (DODSON, 2009, p. 142).

A aplicação do julgamento por precedentes nas cortes norte-americanas se difere da vinculação dos precedentes nas cortes inglesas, principalmente pelo fato de que o controle de constitucionalidade do sistema norte-americano impede uma aplicação pura dos precedentes, o que, em tese, é possível na Inglaterra. Significa dizer que as cortes lidam não apenas com a força vinculativa das decisões superiores ou anteriores, mas também com a adequação das decisões à normativa constitucional.

Esse contexto faz diferença quando se estuda um sistema de precedentes. Na Inglaterra, como dito acima, os precedentes são levados a sério, tanto que é comum que cortes superiores sigam precedentes de cortes inferiores quando não encontram razões para desconsiderá-los (WAMBIER, 2009, p. 05).

Isso não significa que as cortes americanas não levem os precedentes a sério. Porém, não existe discussão de prioridades nos Estados Unidos quando se trata de aplicar o controle de constitucionalidade.

Gerhardt (2008, p. 152) aponta para dois fatores principais que influenciam a aplicação do precedente. O primeiro deles é “a quem” ele é aplicado, ou seja, de acordo com a pessoa, o significado do precedente se altera. O segundo fator que se refere ao quesito vinculação é o contexto em que é aplicado. Assim, a força e vinculação do precedente dependem diretamente dos sujeitos e contextos envolvidos. Por exemplo, ao julgar o caso Graves v. New York,([6]) o juiz Frankfurter argumentou que “o critério definitivo para determinar a constitucionalidade é a própria constituição, e não o que dizemos sobre ela”.([7]) Isso demonstra que para aplicar o precedente é preciso antes determinar a constitucionalidade do ato.([8])

Para Rupert Cross e J. W. Harris (2011, p. 19), quando se trata de controlar a harmonia dos atos judiciais com a Constituição, a Suprema Corte Americana vem se tornando cada vez menos rigorosa na aplicação do stare decisis. Isso ficou claro quando deixou de aplicar (overruled) o precedente Minersville School v. Gobilitis([9]) de 1940 ao caso West Virginia State Board of Education v. Barnette([10]) de 1943, ou seja, não sustentou a própria decisão apenas 3 (três) anos depois de decidir um caso emblemático.([11])

Considerando que o Brasil já importara as bases do controle de constitucionalidade norte-americano, e que isso é fator de dificuldade na aplicação de precedentes nos EUA, este artigo busca investigar se, diante de tamanha diferença de cultura jurídica entre os países de tradição anglo-americana e o Brasil, o sistema de precedentes desenhado pelo novo Código de Processo Civil tem aptidão para vincular os órgãos do Poder Judiciário.

1 O SISTEMA DE PRECEDENTES INGLÊS

Jeremy Bentham afirmou que precedente é “a arte de ignorar metodicamente aquilo que todo mundo sabe”. O filósofo inglês, talvez o crítico mais ferrenho do common law, costumava se referir a esse sistema como um direito para cachorros (dog law), apontando que “quando seu cachorro costuma fazer algo de errado, você aguarda ele agir e só então o pune. É assim que você cria regras para seu cachorro, e é assim que os juízes criam regras para mim e para você” (1962, p. 231-235, apud SCHAUER, 2012, p. 117).

Um dos princípios básicos da noção de justiça é que casos semelhantes devem ser resolvidos da mesma forma. Não se trata meramente de uma noção jurídica, mas de senso comum, de aplicação universal (CROSS; HARRIS, 2011, p. 03). O direito, nesse contexto, se aproxima mais do sistema silogístico de busca de verdades do que de métodos científicos tradicionais.

A doutrina jurídica inglesa encara esse princípio de forma literal. A natureza coercitiva dos precedentes na Inglaterra é tamanha que não se deve estranhar o fato de um juiz aplicar um precedente a um caso, mesmo acreditando em seu íntimo que deveria decidir de forma diversa. O sistema o obriga a agir assim e a comunidade jurídica não se espanta com isso.

A evolução do direito inglês, bem como do direito anglo-americano, passou pela dualidade de jurisdições e até hoje é fortemente marcada por esse fato. O common law([12]) e a equity([13]) sempre dividiram o exercício da jurisdição na Inglaterra e por um longo tempo também nos EUA.

Nesse processo evolutivo, o common law demonstrou ser a jurisdição mais popular na Inglaterra, enquanto a equity mostrou prevalecer sobre o sistema common law em razão de ser aplicada aos casos em que essa não tinha recursos para fornecer solução do caso apresentado, ou cuja solução se mostrasse inadequada.

René David (1997, p. 14-15), ao comparar o direito inglês com o francês, ressalta o fato de que o primeiro se desenvolveu desde sempre utilizando a técnica do uso dos precedentes, e o segundo, pela tradição continental europeia, na interpretação da lei. Dessa forma, o direito francês seria um sistema fechado, em que o legislador tentou prever todas as possibilidades, enquanto o sistema inglês seria aberto, inacabado e em constante elaboração.

Com efeito, enquanto o direito inglês criava técnicas de solução de conflitos tendo o precedente como base, o direito francês – e diversos outros oriundos da tradição continental – confiava na doutrina e na jurisprudência para impedir o engessamento do sistema jurisdicional.

O judge-made law pressupõe a criação das normas jurídicas pelos juízes, sendo essa a principal característica e distinção em relação ao sistema civil law, em que o magistrado é visto como um intérprete do desejo do legislador frente ao caso concreto.

Aliás, nas palavras de Chiovenda (1943, p. 11), jurisdição é “a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio de substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade concreta da lei, já no torná-la, praticamente efetiva”.

Para Marinoni, tal distinção quanto à forma de criação judicial do direito não impede que países que adotam o sistema civil law possam se utilizar do conceito de stare decisis para formular uma metodologia que privilegie a segurança jurídica das decisões. Afinal, o conceito de stare decisis é absolutamente compatível com o sistema civil law,([14]) e a função exercida pelo juiz do common law não difere muito da função desempenhada pelo juiz do civil law (2009, p. 14).

O sistema de precedentes, quando busca aperfeiçoar e adequar o direito ao tempo atual, desenvolveu métodos de distinção que permitem que se parta da aplicação de um determinado princípio para, ao final, se consagrar um princípio diverso. Isso demonstra que o direito é algo vivo e que a rigidez do sistema, tanto no caso dos precedentes (common law) quanto na interpretação da lei (tradição continental) não significa necessariamente a rigidez da prestação jurisdicional.

No decorrer dos séculos V e VI, quando ocorreu a dominação da Europa central e ocidental pelos povos germânicos, é possível dizer que o direito romano praticamente se extinguiu. Séculos depois, no fim do século XI, estudiosos de Bologna passaram a conferir grande atenção e dirigir seus estudos ao que, posteriormente, passou a ser chamado de jurisprudência (WAMBIER, 2009, p. 02).

Surge também, nesse momento, a característica dogmática dos estudos e análise da jurisprudência, que se incorporou ao que posteriormente seria característica essencial do sistema de precedentes, que é a análise dos fatos, do direito e das razões que levaram à decisão antecedente. Nos dizeres de Teresa Arruda Alvim Wambier:

Os textos eram estudados e analisados profundamente, por meio de diferentes métodos: gramatical, retórico e dialético. Eram harmonizados por meio de um complexo processo de exegese, pois os textos nem sempre eram coerentes. Usando a linguagem dos nossos dias, poderíamos dizer que os estudiosos impuseram ao material encontrado uma forma “sistemática” (2009, p. 02).

Cumulando séculos de evolução do direito jurisprudencial, os ingleses desenvolveram um sistema rígido e do qual não podem mais prescindir. A autoridade atribuída aos precedentes no decorrer de séculos tornou-se condição de existência do direito inglês, de modo que não se pode imaginar um juiz decidir um caso com base na aplicação e interpretação pura e simples da legislação.([15])

Para o direito inglês, toda decisão judicial é um precedente em potencial. Não há, como é comum em outros sistemas jurídicos, uma esfera optativa do juiz em aplicar ou não um precedente, existe um dever. Tal situação decorre do que se costuma chamar de “rules of precedent”, uma força oriunda do costume. Essa obrigatoriedade é uma característica do Case Law,([16]) sistema utilizado para realizar julgamentos na Inglaterra (CROSS; HARRIS, 2011, p. 04). Com efeito, sendo considerado vinculante (binding ou coercive effect), o juiz é obrigado a seguir o precedente, mesmo que tenha boas razões para decidir de forma diferente.

Diversos ramos do direito na Inglaterra são produto de decisões ao longo de aproximadamente 700 (setecentos) anos. É verdade que os Códigos (Statutes) cumprem um papel importante em disciplinas específicas do direito,([17]) mas o sistema de case law acaba exercendo função essencial na interpretação dos dispositivos legais, tornando sua aplicação condicionada aos precedentes (CROSS; HARRIS, 2011, p. 4).

Dessa maneira, mesmo que se pudesse imaginar que o Poder Legislativo inglês, devido à grande influência histórica de sua poderosa soberania,([18]) estivesse apto a alterar uma decisão oriunda da aplicação dos precedentes em um determinado caso, a realidade mostra que isso é improvável.([19])

Uma leitura superficial pode levar a um conceito conciso do que seria a aplicação de precedentes no sistema de case-law, isto é, que as cortes inferiores devem simplesmente replicar as decisões das cortes superiores em casos semelhantes, assim como as cortes de apelação estão atreladas às suas próprias decisões prévias.

Na verdade, esse conceito é simples demais, pois essa obrigatoriedade se refere a apenas uma parte do que foi decidido, mais especificamente as razões para a decisão, chamada ratio decidendi. Tal conceito do direito inglês é de grande importância não apenas para os países que adotam o common law, mas também para aqueles que de alguma maneira importaram o conceito de julgamento por precedentes, como é a situação brasileira, em razão do novo Código de Processo Civil.

A melhor abordagem da ratio decidendi é compreendê-la como parte estrutural do julgamento. Dessa forma, um juiz inglês contemporâneo deve justificar as razões de decidir. Quando o caso não comporta julgamento pelo júri,([20]) o juiz deve reunir as provas, declarar seu juízo sobre fatos, analisar os argumentos das partes, e, se alguma questão de direito for trazida, ele considerará a decisão de casos anteriores (CROSS; HARRIS, 2011, p. 39).

Em grau de recurso nas cortes de apelação, a estrutura de julgamento é similar, analisando os fatos e argumentos das partes, e discutindo as questões jurídicas mais relevantes. O procedimento costuma gerar um debate mais amplo, porque o julgamento nessa instância se dá sempre de forma colegiada.

Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, onde os juízes procuram, na medida do possível, emitir opiniões majoritárias ou unânimes sobre um caso, as decisões colegiadas dos tribunais ingleses são formadas por opiniões independentes dos juízes, e cabe aos advogados a árdua tarefa de descobrir, nos fragmentos de votos, a ratio decidendi da decisão (SCHAUER, 2012, p. 172-173).

Importante salientar que o status de ratio decidendi é reservado para os pronunciamentos sobre questões de direito.([21]) Além disso, dentro das proposições legais da decisão, somente aquelas que foram consideradas necessárias para a decisão compõem a ratio decidendi, enquanto as demais integram o conceito de obiter dictum([22]) (CROSS; HARRIS, 2011, p. 40).

Assim, norteada pelas noções de ratio decidendi e obiter dictum, a doutrina do stare decisis impõe ao juiz inglês que aplique o precedente (a ratio decidendi) mesmo que discorde de seu conteúdo, e só não o fará se considerar que os dois casos são razoavelmente distintos.([23])

A expressão stare decisis pode ser interpretada de forma genérica como a condição das decisões atuais se aterem à ratio decidendi das decisões prévias quando são identificadas semelhanças suficientes entre os casos. Cross e Harris (2001, p. 100) chamam de stare rationibus decidendis que seria “se ater à ratio decidendi dos casos pretéritos”.([24])

O sistema de precedentes desenvolvido pelos ingleses é a base dos demais sistemas de precedentes conhecidos nos países que adotam o common law, especialmente dos Estados Unidos, e embora este país tenha desenvolvido seu próprio método de acordo com a disposição e estrutura organizacional de suas cortes, essa evolução tem sido acompanhada pelas reformas no sistema inglês, de modo que a semelhança entre os dois sistemas permanece substancial.

O SISTEMA DE PRECEDENTES NORTE-AMERICANO

O common law inglês é um arcabouço sofisticado de princípios desenvolvido no conjunto da sociedade inglesa.([25]) As colônias formadas nos Estados Unidos eram primitivas e não possuíam condições de absorver o sistema inglês, tanto pelo desnivelamento das regras em relação à sociedade que ali surgia como pela falta de recursos humanos para lidar com os princípios daquele sistema.([26])

Surgiram nas colônias cortes populares formadas por um grande número de juízes que sequer eram treinados profissionalmente. Eles eram representantes do povo e deliberavam com base em costumes e senso de justiça da própria comunidade (TEPLY; WHITTEN, 2012, p. 36). Assim, de forma precária, seguiu-se o padrão common law norte-americano.

Pode-se dizer que, embora o common law inglês tenha servido de modelo às colônias norte-americanas, ele teve, no início do desenvolvimento da administração da justiça do que viria a ser os Estados Unidos, um papel que, apesar de minoritário, teve grande importância (GAVIT, 1936, apud TEPLY; WHITTEN, 2012, p. 36).

Quando o assunto é se ater aos precedentes mesmo que isso custe decidir contra a própria consciência, o direito norte-americano se identifica com os pilares do direito inglês. Embora não seja tão comum, a Suprema Corte dos EUA tem relatos de inúmeros casos em que o juiz se uniu ao voto da turma no intuito de aplicar um precedente do qual discordava.

A cultura jurídica herdada dos ingleses tem no stare decisis uma base da qual não pode prescindir, e que causa espanto e admiração para juristas praticantes da cultura do civil law, acostumados a um padrão de relativa instabilidade na atividade jurisdicional.

Por exemplo, nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, o juiz da Suprema Corte americana John Marshal Harlan se uniu à maioria por diversas ocasiões para decidir casos em que, anteriormente, havia decidido de forma diferente. Da mesma forma, o juiz Byron White, também da Suprema Corte, no caso Edward v. Arizona em 1981 se viu obrigado a seguir o precedente do caso Miranda v. Arizona de 1966, sendo que naquela ocasião prévia ele estava entre os dissidentes (SCHAUER, 2012, p. 89).

Em Ring v. Arizona,([27]) o juiz Anthony Kennedy, da Suprema Corte, fez constar em seu voto um trecho que dizia: “Embora permaneça com a opinião de que o caso Apprendi tenha sido decidido equivocadamente, agora ele se tornou a norma, e assim deve ser implementada em forma de princípio”.([28])

Essa postura dos juízes leva a crer que o poder de decisão do juiz do civil law no ato de interpretar a lei lhe dá liberdade muito maior do que juiz do common law, pois a limitação deste último não decorre da lei, mas da tradição jurídica construída por séculos. As restrições que o stare decisis e os precedentes impõem ao juiz do common law são tamanhas que ele se acostuma a enxergar sua função como parte do todo no ato decisório, como um aplicador de decisões já pensadas para aquele caso e que, para serem modificadas, exigem grande esforço técnico e persuasivo.

Entretanto, conforme Gerhardt (2008, p. 67), sempre existiu um desacordo entre os juízes da Suprema Corte a respeito da aplicação dos precedentes e dos benefícios que trariam para o sistema. Certa vez o juiz Louis Brandeis explicou porque a corte não costumava respeitar as próprias decisões:

O stare decisis costuma ser um método inteligente, pois na maioria dos casos é mais importante que o caso seja apenas solucionado do que seja resolvido corretamente […] Mas em casos que envolvem a Constituição Federal, em que uma decisão justa seguindo a lei é praticamente impossível, esta Corte costuma rejeitar suas próprias decisões. A corte se curva às lições advindas da experiência e do poder do bom senso, reconhecendo que o processo de tentativa e erro, tão frutífero nas ciências biológicas, também se adéqua à função judicial.([29])

Em outra conhecida declaração, o juiz Owen Roberts demonstrou uma visão menos tolerante à não observância de precedentes pela Suprema Corte, criticando o fato da corte ter revogado uma decisão própria apenas 9 (nove) anos após sua prolação:

As decisões do tribunal estão se equiparando a passagens de trem, válidas apenas para a data de hoje e para este trem em específico. Não tenho garantia […] de que o voto prolatado hoje não será rejeitado e revogado por juízes que alegam ter nova concepção sobre esta questão amanhã.([30])

Porém, a Suprema Corte Norte americana, em tese, não serve como um bom exemplo da aplicação do sistema de precedentes, pois é, antes de tudo, uma corte que funciona nos moldes de um tribunal constitucional.([31]) Isso se deve ao fato de que as decisões de primeira instância, por serem baseadas em precedentes fortes oriundos dos tribunais e da própria Suprema Corte, não costumam ser impugnadas com frequência.

São as Cortes de Apelação Federais e dos Estados que melhor evidenciam como o juiz que julga os casos em primeira e segunda instâncias está adstrito ao sistema de precedentes, e como é pequena sua liberdade para decidir. Dessa forma, a liberdade do juiz está adstrita à interpretação dos fatos, mas, raramente, decide sobre questões de direito baseado em convicções pessoais.

Em razão disso, o índice de decisões unânimes nos tribunais chega a 80{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}, demonstrando que os juízes decidem de acordo com o precedente mesmo quando a turma diverge em relação a determinado aspecto jurídico da questão. Nos Estados Unidos, não se concebe decisões divergentes devido a interpretações diversas dos juízes que julgam o caso; pelo contrário, o que se observa é que a aplicação do sistema de precedentes determina a decisão do juiz de maneira vinculante, mesmo que ele discorde do resultado (SCHAUER, 2012, p. 90).

A argumentação acima pretende demonstrar como é complexo importar para o direito brasileiro a aplicação minimamente coerente do conceito de stare decisis. No Brasil, o advogado/jurista se acostumou a ler/ouvir os votos e acórdãos de tribunais, trazendo expressões como “minha convicção” ou “meu sentimento em relação ao caso”.

O juiz norte-americano se ocupa muito mais em identificar o precedente e a partir dele realizar a tarefa de adequar o caso a julgar do que propriamente se ater ao mérito das alegações. Nas palavras do juiz Benjamin Cardozo (1921):

 […] em um sistema tão desenvolvido como o nosso, os precedentes estão tão arraigados que fixam o ponto de onde o juiz deve partir. Quase sempre, o primeiro passo é compará-los. Se eles estiverem ajustados, talvez não haja mais nada a fazer.([32])

Um sistema judicial que pretende ser flexível o suficiente para acompanhar as mudanças cada vez mais rápidas da sociedade deve, todavia, conter instrumentos que possibilitem a adequação da aplicação dos precedentes. Essa suposta rigidez trazida pelos teóricos pode ser abrandada com a utilização correta dos mecanismos de revogação.

Conforme Frederick Schauer (2012, p. 105), no sistema common law, uma regra criada pelo precedente de um caso julgado no passado é uma tentativa,([33]) permanecendo aberta para alterações quando for aplicada ao caso atual, ou mesmo no surgimento de um novo caso. É característica do sistema que o juiz detenha poder para mudar a aplicação da regra enquanto a aplica, especialmente diante de um caso cuja aplicação produza um resultado ruim.

O filósofo inglês H. L. A. Hart (1994, p. 136) defendia que mesmo as regras que contêm cláusulas de exceção ainda sim são regras, e ressalta que uma característica do common law é que o rol de exceções não pode jamais ser preestabelecido.

No entanto, essa visão rígida do precedente – que é aplicado mesmo quando o juiz está contrariado – não impede a criação do direito no caso a caso, com o escopo de se evitarem injustiças.

Um julgamento que exemplifica com exatidão a tese de que a rigidez do sistema de precedentes não impede que o direito possa ser aplicado de forma mais justa de acordo com o caso é Henningsen v. Bloomfield Motors, inc.([34])

O posicionamento das Cortes de New Jersey, até o aparecimento desse caso em 1960, era pela manutenção das cláusulas contratuais de forma absoluta, salvo para casos de fraude comprovada e incapacidade dos contratantes.([35]) Não havia que se falar em ambiguidade ou lacuna na lei, a regra era clara e deveria ser aplicada nos casos concretos, gerando resultados juridicamente seguros.

Nesse caso, o Sr. Henningsen assinou um contrato em que expressamente renunciava à garantia contratual, e pela regra vigente, não poderia reclamar em caso de defeitos. Diante da necessidade de utilização da garantia do produto, ele ingressou com ação judicial, e o processo chegou à Corte Suprema de New Jersey, que considerou que a aplicação da regra nesse caso causaria um resultado injusto, e alterou o precedente no decorrer do processo.

Embora a regra anterior não desse razão ao Sr. Henningsen, ela foi modificada e reinterpretada no sentido de considerar que, no ato de assinatura do contrato, as partes não estavam em situação de paridade para negociar, concedendo ao Sr. Henningsen o direito de usufruir da garantia. Assim, criou-se uma nova regra que prevaleceu sobre a criada no caso anterior.

Esse exemplo demonstra como o sistema de precedentes do common law conseguiu se desenvolver de forma a evitar o engessamento das decisões e permitir que os novos julgamentos considerassem situações particulares que conferissem certa especificidade ao caso, sem que a distinção tornasse o sistema excessivamente flexível ou ineficiente a ponto de se comprometer a segurança jurídica.

Mais recentemente, o sistema norte-americano vem lidando com mais uma mudança significativa de paradigma, que é a tendência de abreviação dos votos nas cortes de apelação. Mais do que isso, os juízes têm mostrado uma forte tendência de não apenas sintetizar a fundamentação dos votos como disponibilizar a fundamentação somente para as partes, evitado, assim, que a ratio decidendi do julgado se torne precedente para outros casos (SCHAUER, 2012, p. 90).

São os chamados unpublished opinions e non-precedential opinions,([36]) que encontram certa resistência pelo fato de esbarrarem em questões constitucionais, como o fato de que a limitação do efeito precedente da decisão pela própria Corte ou juiz que a emitiu confronta os poderes do Judiciário em utilizar os precedentes de forma livre para fundamentar seus próprios julgados.

Essas questões estão na ordem do dia do sistema de precedentes do common law na forma como se desenvolveu especificamente nos Estados Unidos. Mas a pergunta que fica para o tópico seguinte é: esse grau de sofisticação – que alia flexibilidade e segurança jurídica – pode ser alcançado no Brasil sem a mesma tradição jurídica construída, tanto por ingleses quanto por norte-americanos, durante séculos?

PRECEDENTES NO DIREITO BRASILEIRO: UMA CONSTRUÇÃO PROBLEMÁTICA

A ideia difundida que se tem do sistema civil law é de que o direito é, predominantemente, uma criação do Poder Legislativo com pequena participação dos juízes. As leis regulam, virtualmente e de forma consistente, praticamente todas as atividades dos cidadãos. Nesse sistema, os juízes têm o papel de interpretar e aplicar o direito com base no direito positivado, e utilizam as decisões de outros juízes e tribunais de forma secundária, apenas para esclarecer e auxiliar a resolução de casos mais difíceis.

Essa definição é uma imagem caricata do civil law. De qualquer forma, é certo que, nesse sistema, o precedente gozou, até recentemente, de uma importância menor. Afinal, a civil law tem origem no Direito Romano e no Código de Justiniano, bem como no Código de Napoleão, durante o período de dominação da Europa no século XIX.

É possível afirmar que, da mesma forma que a difusão do common law é consequência da influência da colonização inglesa nos Estados Unidos, na África do Sul, na Austrália e na Nova Zelândia, a difusão do civil law decorre da cultura transmitida por países como Espanha, Portugal, França e Holanda em países da América do Sul (SCHAUER, 2012, p. 107).

O Brasil, em virtude da longa dominação portuguesa, seguiu a tradição do chamado direito continental europeu, adotando os principais cânones do direito baseado na codificação. O Direito Processual, por sua vez, teve no Código de 1973 grande influência do direito Italiano, na figura de Liebman e Chiovenda, e adotava os parâmetros do processo clássico.

Porém, a inserção de uma lógica de julgamento por precedentes pelo Código de Processo Civil de 2015 decorre da influência do sistema common law. A dúvida recai no grau de absorção que nosso sistema realizará dessa metodologia de longa tradição histórica nos países de origem inglesa, principalmente no que se refere à criação do direito pelo juiz, característica do common law que pratica o judge-made law.

Lênio Streck (2016, p. 3), crítico da forma de implantação dos precedentes no novo Código de Processo Civil, enxerga nesse modelo um equívoco do ponto de vista filosófico, ao apontar que, do modo como está posto, o sistema de precedentes se sustenta no paradigma da subjetividade, já ultrapassado pela virada linguística, e utiliza contornos de objetivismo na interpretação, retornando à metafísica clássica.

Essa leitura dos precedentes a partir da filosofia do direito é importante, mas não será objeto de análise neste artigo, cujo objetivo é demonstrar que a diferença de culturas jurídicas pode ser um grande obstáculo para o desenvolvimento de um sistema de precedentes no Brasil.

Afinal, não se deve esquecer que a construção dos precedentes na tradição do common law atribui grande valor ao “princípio” estabelecido pela decisão. Isso significa que a decisão judicial não apenas aplica um princípio existente, mas que o caso julgado comporta argumentos que devem ser utilizados em casos semelhantes, como ocorreu no caso Macpherson v. Buick motor company.

Nesse caso, de 1914, julgado pelo juiz Benjamin Cardozo, então integrante da corte de apelação de Nova York, Macpherson sustentou que a Buick-motor company, construtora de automóveis de passageiros, deveria ser responsável perante o comprador pelos danos produzidos por ela em razão de seus veículos possuírem uma roda defeituosa construída por outras pessoas, independentemente da falta de acordo ou contrato entre o comprador e a fabricante.([37]

O estabelecimento de um princípio em um precedente e a aplicação desse mesmo princípio em julgamentos posteriores leva em conta a etimologia da palavra princípio. É o que explica Edward. D. Re:

É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz-se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção etimológica da palavra.

Um princípio é uma suposição que não põe obstáculos a maiores indagações. Como ponto de partida, o juiz, no sistema common law, afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplicá-lo, moldando e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da decisão do caso concreto que tem diante de si. O processo de aplicação, quer resulte numa expansão ou numa restrição do princípio, é mais do que apenas um verniz, representa a contribuição do juiz para o desenvolvimento e evolução do direito (1994, p. 282).

Assim, Frederick Schauer defende que o constitucionalismo aproximou sensivelmente o que era vedado ao juiz da tradição do civil law, e permitindo então somente ao juiz de common law, que é decidir com base em princípios diante da falta de lei ou precedente.

O neoconstitucionalismo ampliou os poderes hermenêuticos dos juízes do civil law (CAMBI, 2016), conferindo maior amplitude normativa, ao permitir a solução dos casos a partir da interpretação de princípios jurídicos, conceitos indeterminados e de cláusulas abertas, com o intuito de efetivar diretamente os direitos fundamentais e realizar o controle difuso de constitucionalidade. Esse panorama é responsável, contudo, pela ampliação da subjetividade judicial e para elevar os níveis de insegurança jurídica, a exigir maior estabilidade da prestação jurisdicional, com o combate à jurisprudência lotérica (CAMBI, 2001) e a consequente adoção de um sistema de precedentes vinculantes.

Entretanto, a ausência, no Brasil, de uma cultura jurídica de respeito aos precedentes, que foi sedimentada no common law no decorrer de séculos, é um risco de insucesso para a efetivação do novo Código de Processo Civil.

A intenção de se estabelecer um sistema em que os tribunais superiores funcionem como cortes de precedentes([38]) é um passo necessário para a promoção da igualdade e da segurança jurídicas (CAMBI; ALMEIDA, 2016), o que não significa que os efeitos práticos das regras trazidas pelo CPC/2015 poderão ser colhidos tão cedo.

Veja-se o exemplo da reclamação, meio([39]) previsto nos artigos 103, § 3º, e 105, inc. I, f, da Constituição Federal e que foi incorporado ao ordenamento infraconstitucional brasileiro([40]) como medida de preservação de competência de tribunal e garantia das autoridades de suas decisões. Ela é um importante instrumento de integração da jurisprudência e promove a consistência das orientações dos tribunais com base no conceito de stare decisis, fundamento do sistema common law.

Acrescentada ao ordenamento constitucional pela Emenda nº 45 de 2004, a reclamação foi regulamentada pelo CPC/2015 e, assim como os incidentes de demandas repetitivas e assunção de competência, vem sendo tratada como parte integrante do que se convencionou chamar de sistema de precedentes brasileiro.

A reclamação é medida que pretende fazer valer a força vinculante das decisões dos tribunais,([41]) servindo como um importante reforço de sua jurisprudência consolidada. O CPC/2015 previu a reclamação para garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) ou de Incidente de Assunção de Competência (IAC), em uma tentativa clara de conferir força aos precedentes dos tribunais.

Parcela da doutrina,([42]) no entanto, logo apontou para suposta inconstitucionalidade do dispositivo do CPC/2015 que confere efeito vinculante às decisões dos tribunais sem que a Constituição assim o autorizasse, observando-se que a aplicação dos precedentes encontrará grande resistência no meio jurídico brasileiro.

A parte interessada, ao verificar que a tese (da súmula vinculante, da decisão do STF em controle concentrado, do acórdão em IRDR ou IAC) deixou de ser aplicada ou foi aplicada incorretamente, poderá apresentar reclamação diretamente perante o tribunal. A aplicação indevida de tese jurídica ocorre quando se deixou de realizar a distinção ou se aplicou tese superada.

Da análise do instituto da reclamação, surge uma questão interessante: diante da não obrigatoriedade constitucional de vinculação dos juízes e tribunais inferiores às decisões de tribunais superiores sem caráter vinculante estabelecido pela Constituição como tal, como garantir o respeito a essas decisões em uma cultura acostumada ao desrespeito aos precedentes?

Além disso, outra questão que merece atenção é o problema da fundamentação das decisões judiciais. Nos Estados Unidos, as decisões não costumam ser fundamentadas em primeiro ou segundo graus de jurisdição, enquanto aos juízes brasileiros essa exigência se impõe ao longo das décadas e deriva diretamente da Constituição Federal (art. 93, inc. IX). O novo Código de Processo Civil, inclusive, ampliou esse entendimento, de forma que a não obediência torna nulo o julgamento (art. 489, § 1º).

As Cortes de Apelação dos Estados Unidos, que possuem mais casos a decidir do que juízes para julgar, têm optado, de forma crescente, pela decisão sem emissão de voto,([43]) posto que não existe naquele sistema a obrigatoriedade de fundamentação, como existe por aqui. Alternativamente, os juízes emitem seus votos de forma breve e sem publicação oficial, acessíveis apenas para as partes (SCHAUER, 2012, p. 172).

Com efeito, embora grande parte da argumentação jurídica nos Estados Unidos ocorra em cortes iniciais perante juízes singulares, a maioria das decisões não é acompanhada de qualquer fundamentação, ao contrário do que acontece no Brasil, onde a fundamentação é exigida sob pena de nulidade.

Apesar de ocuparem uma porcentagem ínfima das decisões, as fundamentações contidas nas chamadas opinions representam o que há de mais importante na estrutura do direito norte-americano, que é fornecer tanto às partes como à comunidade jurídica uma orientação sobre o que litigar e o que pode ser objeto de recurso. Apesar disso, a estrutura de todo o sistema processual se baseia em poucas decisões acompanhadas de fundamentação.

Partindo desse quadro contextual, constata-se que as decisões fundamentadas pelos juízes em primeiro e segundo graus nos Estados Unidos contêm em seu bojo a predisposição de todo o sistema jurídico. Por essa razão, o sistema de precedentes do common law([44]) é chamado de direito jurisprudencial, ou seja, de judge-made law: o direito criado pelos juízes.

O presente artigo não pretende lançar um olhar tecnicista sobre o instituto do precedente judicial nem, tampouco, fazer uma mera crítica à implantação da nova sistemática no novo Código de Processo Civil. O que não se pode deixar de considerar, ao buscar a implementação de um sistema de precedentes no Brasil, é a característica essencial do common law, que durante séculos privilegiou o judge-made law em detrimento do direito legislativo.

Houve um momento, anterior à concretização do sistema inglês como precursor do judge-made law, em que o common law buscava esclarecer se a decisão judicial criava ou apenas declarava o direito. Esse debate tem a ver com o desenvolvimento do common law baseado na cultura dos precedentes.

No direito inglês, a teoria da jurisdição([45]) está atrelada aos costumes. Assim, se o direito comum está nos costumes, então o juiz não o cria, somente o declara. Blackstone sustentava, então, que as decisões das cortes eram apenas uma demonstração do que o common law é (MARINONI, 2009, p. 13).

Esse traço do common law delimita bem a diferença entre os sistemas, haja vista que o juiz do civil law jamais foi compreendido como criador do direito, como aquele que produz o direito em cada decisão, mas somente um intérprete da lei, essa sim criada pelo legislador e considerada base do direito chamado de continental europeu.

Por esta razão, o Brasil, dada sua cultura e tradição jurídica, ao implantar a sistemática de julgamento por precedentes, deve fazê-lo de forma adaptada a sua própria tradição, sem deixar de enfrentar as mazelas que impedem a produção de decisões mais rápidas e que possam assegurar maior igualdade e segurança jurídicas, tais como: o rotineiro desrespeito a decisões precedentes,([46]) o desconhecimento dos conceitos de stare decisis, ratio decidendi e obiter dictum, além do apego ao legalismo e ao formalismo no momento de decidir.

Aliada a isso, existe a dificuldade natural, enfrentada até mesmo pelos praticantes do sistema common law, em identificar a ratio decidendi e obiter dictum em cada decisão. Para Schauer (2012, p. 51), não é possível extrair a ratio decidendi de um caso com a mera leitura do precedente, como se ele apontasse onde ela está, pois o precedente nem sempre carrega essa clareza.

Quando a decisão precedente não traz em seu bojo um nível de clareza suficiente para que a ratio decidendi seja facilmente identificada, ampliam-se as margens de interpretação, e a decisão futura, que utiliza o precedente como base, corre o risco de perder confiabilidade.

Aliás, Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone (2017, p. 19) consideram tormentosa a delimitação do que seria a ratio decidendi ou holding([47]) de uma determinada decisão, listando dois métodos para identificar com precisão a ratio decidendi de uma decisão.

O primeiro deles seria o método fático-concreto, que determina a ratio decidendi de acordo com a identidade entre o conjunto de fatos da decisão precedente e a atual, e não os fundamentos invocados para decidir. O segundo método seria o abstrato normativo, pelo qual a decisão leva em conta a regra escolhida para decidir questões semelhantes, ou seja, os fundamentos da decisão. Neste segundo método podem variar, ainda, os níveis de generalidade da regra criada no holding (BARROSO; PERRONE, 2017, p. 20).

Luiz Guilherme Marinoni também reconhece a fragilidade do sistema brasileiro de precedentes e a completa ausência de uma cultura de respeito ao stare decisis. Ao se referir ao Superior Tribunal de Justiça como uma Corte de Precedentes sustenta que:

Embora essa Corte tenha missão bastante nítida, a prática tem sido incapaz de permitir a realização da função que lhe foi atribuída pela Constituição Federal. Lamentavelmente, os tribunais e juízos estaduais e federais não vêm respeitando as decisões do Superior Tribunal de Justiça, chegando a negar-lhes, até mesmo, eficácia persuasiva, em total afronta ao sistema. Um precedente apenas tem efeito persuasivo quando gera constrangimento ou algum tipo de dever ao órgão jurisdicional. Não obstante, a prática demonstra que os Tribunais Federais e Estaduais não apenas se sentem autorizados a desconsiderar os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, como, ainda, não justificam as razões pelas quais deixam de aplicá-los. Ora, a circunstância de os juízes e tribunais não demonstrarem as razões para a não aplicação dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça elimina a possibilidade de se ver neles qualquer efeito, inclusive persuasivo. […] A suposição de que os juízes e tribunais podem decidir sem considerar os precedentes do Superior Tribunal de Justiça não se coaduna com tal norma constitucional (MARINONI, 2011, p. 97).

A dificuldade dos tribunais em seguir as premissas básicas de segurança jurídica e lógica metodológica do sistema de precedentes infere uma preocupação justificada com o eventual insucesso de sua implantação no Brasil.

Na Espanha, ocorreu um fenômeno semelhante ao que acontece no Brasil. Sendo um dos países que clássica e historicamente adota o civil law, a implantação de uma sistemática de precedentes oriunda dos países de common law tem encontrado obstáculos jurídicos e culturais.([48]) Afinal, o funcionamento do precedente no common law se confronta com o modo de operar do civil law, uma vez que o aspecto vinculatório da jurisprudência é um elemento impróprio para o civil law (GARCIA, p. 403; FERRERES; XIOL, p. 36).

Situação semelhante ocorre na Colômbia, em que se discute a força vinculante dos chamados precedentes constitucionais. Para Carlos Bernal Pulido (2013, p. 145), ao mesmo tempo em que a Constituição daquele país, por um lado, respalda a força vinculante da jurisprudência constitucional, por outro lado, atribui a ela um caráter meramente auxiliar, omitindo regras sobre questões essenciais, como o dever do juiz em submeter-se ao precedente ou ao “império da lei”.

Considerando que ingleses e norte-americanos, que vêm operando por séculos com a sistemática do precedente no common law, relatam dificuldades em identificar a ratio decidendi nas decisões das cortes, como devem agir, no Brasil, os juízes, advogados, membros do Ministério Público, defensores públicos e demais operadores jurídicos com a aplicação de precedentes oriundos de acórdãos não unânimes ou com votos muitas vezes conflitantes, e sem o devido respeito da própria Corte pelo julgamento colegiado?

Como eles devem agir diante de decisões judiciais que mais se assemelham às decisões colegiadas dos tribunais ingleses – com votos autônomos, ratio decidendi fracionada nas opiniões, acúmulo de decisões monocráticas e a utilização de plenários virtuais -, do que das cortes de apelação dos EUA, as quais priorizam a decisão unânime ou por maioria, centralizando o argumento na mesma ratio decidendi?

Tais perguntas, cujas respostas somente a prática encontrará, despertam preocupação com a implantação da sistemática do precedente no direito brasileiro, mas não significa necessariamente o fracasso dessa tentativa. Seria altamente recomendável que, antes de adotar uma alteração substancial como esta, fosse disseminada, a partir dos tribunais superiores – seguida pelas demais instâncias – a noção do respeito absoluto ao stare decisis.

CONCLUSÃO

O sistema de precedentes, oriundo do common law inglês e desenvolvido de forma mais específica no direito norte-americano, é um complexo mecanismo de solução de litígios judiciais que tomou forma no decorrer de vários séculos, contando com grande grau de sofisticação na atualidade.

O estudo dessa sistemática revela que ela sempre esteve atrelada a uma cultura jurídica que se desenvolveu a partir de um conjunto histórico existente na Inglaterra, país que inseriu essa lógica em seu conjunto jurisdicional, e à medida que foi sendo adotada em outros países, ganhou contornos próprios, adequando-se à cultura jurídica de cada Estado de Direito.

O precedente judicial não é uma exclusividade dos países que adotaram sistemas jurídicos atrelados à família common law. Não existe qualquer impedimento ou inadequação na utilização do sistema de precedentes pelos países que, ainda que parcialmente, tenham adotado, por razões históricas e político-geográficas, a tradição de civil law.

Com efeito, é preciso ter cautela na adoção de um sistema de precedentes no Brasil. Afinal, o direito inglês não pode prescindir do julgamento por precedentes, uma vez que esse modelo está arraigado no campo epistêmico do direito. Os juízes utilizam o raciocínio e a argumentação, fundada nos precedentes, no ato de julgar. Tal lógica obedece a linha hierarquia do método dos precedentes na fundamentação de decisões.

Os advogados, por sua vez, se valem da mesma lógica na argumentação e conseguem obter maior sucesso desde que estejam aptos a aplicar os instrumentos que o sistema desenvolveu. Assim, o ensino do direito nas faculdades utiliza também o precedente como plataforma pedagógica na formação dos estudantes.

Nos Estados Unidos não é diferente. Os precedentes dominam a lógica cognitiva no ensino do direito nas faculdades e na aplicação do direito nas cortes de primeira instância até os tribunais superiores.

O aluno de uma faculdade de direito norte-americana está familiarizado com o estudo e a interpretação dos casos, pois são expostos, desde o início do curso, a obras contendo as decisões mais importantes dos Estados Unidos e de outros países que adotaram o common law, especialmente a Inglaterra. Os chamados casebooks contêm menções a códigos e leis regulatórias, mas são, em sua maioria, sobre a análise dos aspectos fáticos, o exame dos principais argumentos e votos proferidos.

Diferente do que acontece no ensino jurídico no Brasil, em que o estudante é geralmente submetido a aulas expositivas, sobre aspectos abstratos quanto à aplicação do direito, a utilização de um casebook tradicional nos Estados Unidos exige a análise exaustiva de diversos casos, seus julgamentos e os precedentes a que eles estejam relacionados. O estudante inglês e o norte-americano aprendem direito pelo método indutivo, a partir da leitura, discussão e interpretação desses casos e dos votos dos juízes.

No Brasil, a partir da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, é necessário perguntar como uma cultura jurídica de pouco respeito a decisões anteriores e oriundas de tribunais hierarquicamente superiores irá se comportar diante de uma lógica desenvolvida em um ambiente cujo costume é justamente o oposto, qual seja, o respeito ao precedente como razão de ser do sistema?([49])

Portanto, o sucesso na aplicação do novo Código de Processo Civil depende da compreensão e respeito à noção de stare decisis, bem como do desenvolvimento de uma sistemática própria para a implantação do julgamento por precedentes, adequada à cultura jurídica brasileira, de excessiva judicialização e provedora de pequena segurança jurídica.

Sem uma solução que se aproxime desses caminhos, a implantação da sistemática de julgamento por precedentes pode ter duas consequências igualmente deficientes: a inutilização do sistema por falta de conhecimento pelos operadores de seus complexos instrumentos([50]) e/ou a manutenção da crise de segurança jurídica e da pouca credibilidade do sistema judiciário devido à utilização equivocada dos meios de promoção do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, célere e efetiva.

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[1] Da mesma forma, as decisões de cortes superiores devem ser seguidas pelas cortes inferiores, ou seja, além do sistema privilegiar a vinculação das decisões em relação ao passado, existe a hierarquia vertical em relação ao critério funcional de competências.

[2] Stare decisis, para além de ser a repetição da mesma decisão imposta em um caso precedente, significa aplicar a mesma lógica metodológica que foi utilizada em um caso precedente, por se tratar de questão cuja resolução mais justa depende dessa estrutura argumentativa.

[3] Contudo, cabe salientar que tanto o sistema inglês como o norte-americano de precedentes estão sujeitos a reformas pontuais. Por exemplo, em 2015, o parlamento inglês permitiu a atuação de mulheres na condição de lords spiritual e possibilitou a suspensão e expulsão de membros da House of Lords. Anteriormente, já havia sido criada a Suprema Corte do Reino Unido (na Constitutional Reform Act de 2005). Com isso, em 2009, deixou de ter uma Corte Superior, integrante do Poder Legislativo (House of Lords).

[4] Quando se diz que a cultura jurídica norte americana é excepcionalista, significa dizer que, embora tenha surgido a partir de uma matriz inglesa, desenvolveu-se levando em consideração seus próprios costumes e hábitos, não se baseando em qualquer outro sistema para encontrar soluções para os problemas advindos de sua própria sistemática jurisdicional.

[5] O Brasil costuma importar institutos jurídicos desenvolvidos em outros países. Curiosamente, o Japão, que desde 1890 adotava o código alemão (virtualmente textualizado em japonês), passou a sofrer influência do direito norte-americano após a Segunda Guerra Mundial. Cfr. CHASE et al. Civil litigation in comparative context, 2007, p. 36. A Alemanha, por sua vez, sofreu diversas influências, incluindo o direito romano, italiano, francês, da própria antiga Alemanha, holandês, inglês e norte-americano. Cf. GOTTWALD, Peter. Comparative Civil Procedure, 22 RITSUMEIKAN L. REV. 23, 23, 2005, p. 25.

[6] 306 US 466 at 491 (1939).

[7] No original, “the ultimate touchstone of constitutionality is the constitution itself, and not what we do about it”. (Tradução livre).

[8] Sobre isso, ver Goodhart “Case law in England and America” in “Essays in jurisprudence and the Common Law”.

[9] 310 US 586 (1940).

[10] 319 US 624 (1943).

[11] No caso, a Corte decidiu sobre a constitucionalidade da exigência dos alunos da pré-escola de prestarem saudação à bandeira ante o conteúdo da 1ª Emenda Constitucional.

[12] A origem do termo common law remete a um momento histórico do direito inglês em que se deixa de submeter as questões conflituosas às cortes locais e se estabelece um único sistema de regras jurídicas para toda a Inglaterra (common to all of England).

[13] O processo na equity se dava na Court of Chancery, diante do Chancellor sem a presença do júri. Realizavam-se audiências e era dominado pela figura do juiz, dotado de amplos poderes inquisitoriais e de direcionamento do processo. A Chancery, que originariamente era uma espécie de secretaria política do rei, se torna progressivamente um órgão de jurisdição autônoma, voltado a tutelar situações que não receberam a proteção adequada do sistema law.

[14] O contexto da afirmação é a discussão a respeito da natureza constitutiva ou declaratória da decisão judicial no common law. Marinoni usa, como referência, as discordâncias entre Bentham e Austin – para quem a decisão judicial é constitutiva – e Blackstone, que afirma que a decisão judicial é declaratória. Enquanto Bentham critica a teoria declaratória, dizendo que não se pode imaginar que o direito comum vem de lugar nenhum e é aplicado pelos juízes, Blackstone compreende que o direito comum está nos costumes do cidadão inglês, e as decisões meramente declaram esse direito já existente. A respeito, ver BLACKSTONE, William. Commentaries on the law of England.

[15] O direito inglês, de fato, conta com a atuação de poucos juízes, e os casos são frequentemente resolvidos sem que seja apresentada sequer uma defesa preliminar, o que possibilita a imediata prolação de uma sentença de mérito sem passar pela fase ordinatória ou instrutória, como se faz no Brasil.

[16] Case Law consiste em um sistema de regras e princípios que devem ser seguidos pelo juiz no ato decisório. É esse sistema que gera para o juiz a obrigatoriedade em seguir os precedentes para um determinado caso.

[17] É preciso lembrar que diversos países ocidentais foram influenciados pelo fenômeno da codificação a partir do século XIX, o que de certa forma serviu para aproximar os dois sistemas antes tão distantes.

[18] A supremacia do Poder Legislativo no sistema judicial inglês é consequência da Revolução Gloriosa, e serviu para a matriz inglesa controlar as colônias na América mediante a edição de cartas, haja vista que não era permitido a elas praticar atos contrários ao direito inglês. Tal fiscalização, realizada pelo Reino Britânico sobre as colônias, culminou, posteriormente, no controle de constitucionalidade americano, pois as cartas funcionavam como uma espécie de judicial review, fazendo surgir a supremacia do Judiciário nos EUA (MARINONI, 2011, p. 42-43). Se as cartas inglesas eram documentos que serviam de paradigma para realização do controle dos atos jurídicos em solo americano, após a Revolução Americana, as Constituições substituíram as cartas e passaram a exercer esta função de controle. Cfr. CAPPELLETTI, Mauro. Il controlo giudiziario di constituzionalitá delle leggi nel diritto comparato. Milão: Giuffre, 1968. p. 41.

[19] Foram muitas as situações em que a Royal Commissions (Comitês Reais) e a Law Revision Committees (Comitês de Revisão Legal) recomendaram ações para amenizar efeitos de decisões com base em precedentes, embora tais iniciativas tenham sido ignoradas por pressão parlamentar. Ver Rupert Cross e Jim W. Harris.

[20] Atualmente, é raro que um caso civil tenha julgamento pelo júri, mas quando isso ocorre o juiz reúne as provas, apresenta para os jurados e, após colher a decisão deles sobre os fatos, ele julga.

[21] O procedimento inglês conta com pequena participação do juiz, não apenas porque quem de fato instrui os processos em primeiro grau é a figura do master (no interior são chamados District Registrars), como pela circunstância de que são as partes e seus advogados (solicitors) que direcionam os atos processuais e as provas. Os masters tomam decisões no decorrer do processo até que esteja pronto para um eventual julgamento em audiência pública, esta sim conduzida pelo juiz do caso. Cfr. DAVID, René. O direito inglês, p. 38-39.

[22] As chamadas dicta de uma decisão prévia costumam ser aplicadas na decisão atual, mas sempre como uma autoridade meramente persuasiva, nunca vinculante.

[23] “Reasonably distinguishable”, na expressão original.

[24] “Keep to the rationes decidendi of past cases”, na expressão original.

[25] A partir da invasão Normandia em 1066 até o fim do século XV (aproximadamente 1485), o sistema common law se desenvolveu nas cortes inglesas observando o contexto das práticas de feudalismo e substituindo o sistema de costumes locais das tribos, anterior à invasão.

[26] Não existia nas colônias estrutura para formar advogados ou mesmo bibliotecas jurídicas para trazer esse tipo de conhecimento. Havia, de fato, uma aversão a advogados nesse período. Cfr. TEPLY; WHITTEN. Civil procedure, 2012.

[27] 536 U.S. 584 (2002).

[28] “Though it is still my view that the earlier case of Apprendi was wrongly decided, Apprendi is now the law, and its holding must be implemented in a principled way” (no original).

[29] Burnet v. Coronado Oil & Gas Co., 285 U.S. 393, 406-8 (1932) (Brandeis, J., Dissenting).

[30] Smith v. Allwright, 321 U.S. 649, 669 (1944) (Roberts, J., dissenting), aplicando o overruling no caso Grovey v. Townsend, 295 U.S. 45 (1935).

[31] Anteriormente, a Suprema Corte julgava pouco mais de 70 (setenta) dos 9 mil casos que lá chegam. Atualmente, o número não ultrapassa os 300 (trezentos) casos por ano.

[32] “None the less, in a system so highly developed as our own, precedents have so covered the ground that they fix the point of departure from which the labor of the judge begins. Almost invariably, his first step is to examine and compare them. If they are plain and to the point, there may be need of nothing more” (no original).

[33] Tanto o sistema norte-americano quanto o inglês, ao se depararem com um caso inédito, cuja solução da controvérsia não tenha base em precedentes, adotam um padrão diferente, chamado matter of first impression, alternativo ao sistema de precedentes. O padrão não se aproxima do utilizado pelo civil law, somente obriga o juiz a estabelecer o princípio que deve reger o conflito entre as partes e decidir de acordo com ele. Cf. CROSS; HARRIS. Precedent in English Law, 2001, p. 200.

[34] 161 A. 2d 69 (NJ 1960).

[35] No direito civil brasileiro, essa cláusula equivale ao “pacta sunt servanda”.

[36] Cf. mais em BERRING, Bob, Unprecedented precedent: ruminations on the meaning of it all. 5 Green Bag, 2d 245, 246 (2002); CAPPALLI, Richard B. The common law’s case against non-precedential opinions. 76 S. Cal. L. Rev., 755,759 (2003).

[37] 111 N.E. 1050, 217 N.Y. 382.

[38] Tramita, no Congresso Nacional, proposta de Emenda Constitucional nº 209/2012 que pretende alterar o art. 105 da CF, no sentido de transformar o Superior Tribunal de Justiça em uma espécie de Corte de Precedentes, contribuindo, com isso, na (ainda) maior rigidez deste tribunal na filtragem de recursos a serem julgados (CAMBI; NEVES, 2013).

[39] Apesar de possuir natureza de ação, sua estrutura procedimental se aproxima muito das garantias constitucionais. O STF se pronunciou no sentido de considerar a reclamação atrelada ao direito de petição (ADI 2212/CE. Min. Ellen Gracie. Pleno, DJ 14.11.2003 PP-00011) e remédio processual correcional, de função corregedora (Rcl 872 AgR – SP. Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno; DJ 20.05.2005).

[40] Artigos 988 a 993 do CPC, com alterações importantes trazidas pela Lei 13.256/2016.

[41] Apesar de a Constituição prever a reclamação apenas no âmbito do STF e do STJ, é admissível também no âmbito dos Tribunais dos Estados, nos TRFs e nos TRTs. Cfr. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 2129.

[42] Idem, p. 2126.

[43] O sistema processual norte-americano utiliza o termo “opinion” para o que aqui costumamos chamar de voto.

[44] Assim chamado porque sua criação e desenvolvimento visavam um único sistema “comum a toda Inglaterra” (common to all of England).

[45] Cf. WESLEY-SMITH, Peter. Theories of adjudication and the status of stare decisis. In: Precedent in Law. Oxford: Clarendon Press, 1987.

[46] Na cultura jurídica do common law, o termo precedente, aliado ao conceito de stare decisis, significa o respeito às decisões anteriores e superiores, ou seja, oriundas do passado, seja de juízo do mesmo grau ou de e de corte hierarquicamente superior.

[47] Apesar de serem frequentemente utilizados como sinônimos, Frederick Schauer entende que, embora exista semelhança entre os conceitos, eles não se confundem. Cf. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2012. p. 54.

[48] FERRERES, Víctor; XIOL, Juan Antonio. El carácter vinculante de la jurisprudencia. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2009. p. 36.

[49] BARROSO, Luis; PERRONE, Patrícia. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf>. Acesso em: 15 set. 2017.

[50] Prova disso é que o sistema já está em vigor e não há notícia de que juízes, advogados ou mesmo estudantes tenham qualquer tipo de treinamento institucional ou dentro de suas respectivas estruturas organizacionais para melhor aplicar o novo Código de Processo Civil.