A SEPARAÇÃO EXTRAJUDICIAL EXCLUI O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE, A TEOR DO DISPOSTO NO ART. 1.830 DO NOVO CÓDIGO CIVIL?
Fernando Gaburri
SUMÁRIO: 1 Notas Introdutórias. 2 O Advento da Lei nº 11.441/07 e a Questão de sua Vigência. 3 A Permanência da Separação Jurídica Após a Emenda Constitucional nº 66, de 2010. 4 Breves Considerações Acerca da Obrigatoriedade ou da Facultatividade de se Observar o Rito Extrajudicial. 5 Justificativa da Regra Disposta no Art. 1.830 do Novo Código Civil. 6 A Questão do Afastamento Sucessório do Cônjuge Extrajudicialmente Separado à Luz do Novo Código Civil. 7 A Problemática da Interpretação Restritiva das Normas Limitadoras de Direito. 8 Conclusões. Referências Bibliográficas.
1 Notas Introdutórias
O presente estudo procurará responder ao questionamento acerca da participação ou não do cônjuge supérstite extrajudicialmente separado na sucessão do de cujus, à luz do disposto na primeira parte do art. 1.830 do Código Civil, em consonância com os ditames da Lei nº 11.441/07.
Para tanto, será feita análise comparativa entre alguns dispositivos dos Códigos de 1916 e de 2002, valendo-nos de breve menção sobre o tratamento da separação e do divórcio extrajudiciais no ordenamento jurídico português.
Serão utilizados alguns fundamentos de teoria geral e filosofia do direito, com o intuito de explicarmos e fundamentarmos o posicionamento por nós afinal adotado, bem como para que possamos argumentar acerca do problema das lacunas normativas trazidas pela recente lei que inova no ordenamento jurídico pátrio.
2 O Advento da Lei nº 11.441/07 e a Questão de sua Vigência
Consoante recentemente deixamos consignado [1], há muito propugnava a doutrina por uma via mais simples e menos dolorosa para os separandos e divorciandos, de modo a denunciar a desnecessidade de um procedimento judicial, desgastante e moroso, para se desfazer aquilo que se faz extrajudicialmente – o casamento.
Para tanto, foi promulgada em 04.01.07 e publicada no dia seguinte a Lei nº 11.441, que dispõe sobre separação, divórcio, inventário e partilha consensuais, visando simplificar a vida dos brasileiros e desafogar o Judiciário daquelas matérias de mera administração de interesses privados das partes. A matéria foi por essa Lei regida até que se transcorreu o prazo de vacatio legis da Lei nº 13.105, de 16.03.2015 – novo Código de Processo Civil -, que se deu em 17.03.2016.
A disciplina da matéria pela referida Lei brasileira, em alguns pontos, assemelha-se àquela conferida à matéria pelo Código Civil português que, em seu art. 1.773, 2º, dispõe: “O divórcio por mútuo consentimento pode ser requerido por ambos os cônjuges, de comum acordo, no tribunal ou na conservatória do registro civil se, neste caso, o casal não tiver filhos menores ou, havendo-os, o exercício do respectivo poder paternal se mostrar já judicialmente regulado” [2]
O procedimento extrajudicial trazido pela lei pátria, tanto em relação à antes vigente como à que passou a viger em 17.03.2016, restringe-se àquelas hipóteses de ausência de litigiosidade ou quando esta puder ser composta amigavelmente entre os contratantes e se não envolver interesse de menores ou incapazes [3]. Todo o procedimento, em resumo, visa resolver a partilha de bens entre maiores e capazes, assim permanecendo no art. 610 do novo Código de Processo Civil.
Desse modo, caso perceba o tabelião que um dos contratantes esteja dispondo, no todo ou em parte, de sua meação ou mesmo renunciando à pensão alimentícia da qual notoriamente necessita, deverá recusar-se a lavrar a escritura.
No procedimento judicial, a tutela dos interesses daquele que está sendo lesado é desempenhada pelo membro do Ministério Público e pelo próprio juiz. Todavia, o tabelião não terá à sua disposição meios para adotar tais medidas acautelatórias com o mesmo zelo e proficiência que o faz o representante do Ministério Público, fato que avultará ainda mais a importância do advogado.
O tabelião certamente não poderá fazer aquelas análises do parágrafo único do art. 1.574 do Código Civil [4] com a mesma profundidade que o juiz, todavia não lhe cabendo recusar pura e simplesmente a lavratura da escritura. Percebendo que a convenção não resguarda o interesse de uma das partes, deverá encaminhar os autos à autoridade judicial competente.
Além do exposto, no caso de abertura de sucessão, fica a cargo do tabelião exigir a prova de quitação dos tributos relativos aos bens a serem partilhados, bem como às suas respectivas rendas, conforme se infere da análise do art. 192 do Código Tributário Nacional em conjunto com o art. 1.031 do Código de Processo Civil.
A Lei nº 11.441, de 2007, em seu art. 4º, trouxe a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação“, o que, pela novidade que na época inseria no ordenamento jurídico brasileiro, violou o art. 8º da Lei Complementar nº 95, de 26.02.98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, atendendo ao disposto no parágrafo único do art. 58 da Constituição Federal.
O referido dispositivo [5] propugna por razoável prazo de vacância de acordo com a complexidade da matéria que inova na ordem jurídica, reservando-se a referida cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão, o que a toda evidência não é o caso.
Certamente, pela importância do tema e sua repercussão social, a Lei nº 11.441/07 deveria ter observado um razoável prazo de vacância, talvez de 45 dias, conforme disposto no caput do art. 1º [6] da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para aquelas leis que não trazem disposição acerca de sua entrada em vigor, para que, assim, pudesse ser melhor debatida pela sociedade e pelos aplicadores do direito, e, principalmente, para os cartórios de notas que, a toda evidência, na época não estavam preparados para aplicá-la de maneira uniforme em todo o território nacional.
3 A Permanência da Separação Jurídica Após a Emenda Constitucional nº 66, de 2010
Com o advento da Emenda Constitucional nº 66, de 13.07.2010, o § 6º do art. 226 do texto constitucional passou a ter a seguinte redação:
“§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.”
Pelo fato de se ter suprimido a referência à prévia separação judicial de um ano, a grande maioria da doutrina, principalmente os integrantes do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM -, tem sustentado o desaparecimento desse instituto.
Assim se posicionam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho [7], quando afirmam que a Emenda nº 66 pretende facilitar a implementação do divórcio no Brasil, com a apresentação de dois pontos fundamentais, que são a extinção da separação judicial e da exigência de prazo de separação de fato para a dissolução do vínculo matrimonial. Sustentam que, a partir da promulgação da emenda, desapareceu o instituto da separação judicial, e toda legislação que o respaldava, por consequência, sucumbiu, sem eficácia, por conta de uma não recepção. Por isso, consideram tacitamente revogados os arts. 1.572 a 1.578 do Código Civil, perdendo sentido também a redação do art. 1.571 no que tange à referência feita ao instituto da separação. E concluem não mais haver espaço também para o divórcio indireto, pois, com o fim da separação judicial, não haveria o que ser convertido.
Na mesma linha, Inácio de Carvalho Neto [8] assevera que, após a vigência do Código Civil de 2002, algumas leis têm tratado de temas correlatos à separação e ao divórcio, tais como “a Emenda nº 66/2010, que suprimiu a separação judicial e o prazo para o divórcio” [9].
Em nosso sentir, entretanto, não parece que uma omissão constitucional de norma permissiva seja capaz de extinguir instituto jurídico.
Ao lembrarmos dos ensinamentos de Carl Schmitt, vemos que há duas espécies de normas constitucionais, as materialmente constitucionais e as formalmente constitucionais.
A respeito da concepção política de constituição idealizada por Schmitt, explica Marcelo Novelino [10] que o fundamento de uma constituição não está contido em outras normas jurídicas ou em si mesma, mas na vontade política concreta que a antecede.
Schmitt distingue constituição propriamente dita de leis constitucionais. Constituição propriamente dita compreende apenas aquilo que decorre de uma decisão política fundamental sobre a forma de existência política concreta de um povo. E explica que a constituição representa uma pluralidade de leis constitucionais materialmente distintas, mas formalmente iguais. Trata-se de um conceito formal de constituição, independentemente do conteúdo de sua norma ser político ou não.
Paulo Bonavides [11] explica que, do ponto de vista material, constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Já em sentido formal, o citado autor explica que as constituições não raro inserem matéria de aparência constitucional, assim designada aquela que foi simplesmente enxertada no seu corpo normativo e não porque se refira aos elementos básicos ou institucionais da organização política.
Uma vez enxertada na Constituição, a matéria formalmente constitucional passa a gozar da mesma garantia e do valor superior que lhe confere o texto constitucional, o que não aconteceria se a matéria houvesse sido objeto do trabalho do legislador infraconstitucional.
Neste contexto, as regras e princípios sobre direito de família, não obstante sua inegável relevância, e por isso estão gravados no texto constitucional, integram aquele rol de normas formalmente constitucionais, ou seja, normas que se não estivessem na Constituição, nenhum prejuízo seria causado à estrutura política fundamental do Estado.
O que se pretende demonstrar com essas noções de direito público é que a retirada da separação jurídica do texto constitucional implica, única e exclusivamente, em se dizer que não guarda mais a força de norma formalmente constitucional.
Se pretende-se extinguir a separação jurídica – judicial e extrajudicial -, então que sejam revogadas as normas infraconstitucionais que as preveem e disciplinam. Isso agora é possível. Antes não o era porque a separação tinha assento constitucional.
O que pretendemos pontuar é que qualquer que seja a solução encontrada pelo legislador infraconstitucional, nenhuma inconstitucionalidade haverá. E parece mesmo que não foi a opção do legislador infraconstitucional extinguir a separação judicial, haja vista haver expressa referência a ela nos arts. 23, III, 189, II, e 731 a 733, todos do novo Código de Processo Civil.
À guisa de síntese, quer as normas infraconstitucionais referidas sejam revogadas, quer permaneçam, nenhuma afronta haverá ao texto maior. Apenas a separação deixou de ser pressuposto para a concessão do divórcio.
Cabe então ao legislador decidir-se pelo fim, ou pela manutenção, do instituto da separação. Até o presente momento, em nosso sentir, preferiu por mantê-lo.
4 Breves Considerações Acerca da Obrigatoriedade ou da Facultatividade de se Observar o Rito Extrajudicial
Para abrir este tópico, insta que tragamos a lume a noção de ação constitutiva necessária, pois, até a vigência da Lei nº 11.441/07, a obtenção de separação jurídica e de divórcio dependia de pronunciamento judicial, ainda que em presença do mais pacífico consenso entre as partes. A título de informação complementar, trazemos à baila o art. 158 [12] do Código Civil italiano, que expressamente exige a homologação judicial nas separações consensuais.
Ensina Daniel Assumpção Neves [13] que, nessas ações, busca-se a formação de uma nova situação jurídica, que não poderia ser criada sem a intervenção do Poder Judiciário, ainda que inexista conflito de interesses entre as partes. Não se mostra desarrazoado, portanto, que as partes necessitem do crivo do Judiciário para criar situação que, não fosse essa exigência, surgiria por mera convergência de vontades. Com isso, reconhece-se, tranquilamente, que a função do Judiciário não se resume a substituir a vontade das partes, podendo, às vezes, atuar aquele órgão como atribuidor de eficácia jurídica à vontade das partes interessadas.
Pela literalidade do caput do art. 1.124-A do Código de Processo Civil, seria facultativa a observação da via extrajudicial para a separação e divórcio consensuais, ainda que atendidos todos os requisitos impostos pela nova lei, nos termos seguintes:
“A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.”
Em uma primeira análise, entender-se-ia que o novo procedimento não passaria de mera faculdade posta à disposição dos cônjuges, abrindo-se-lhes, doravante, via dúplice capaz de levar ao mesmo resultado. Ao mesmo raciocínio se pode chegar analisando o art. 731 do novo Código de Processo Civil, cujo texto aponta para a facultatividade de eleição do procedimento judicial ou do extrajudicial.
Observe-se, entretanto, que, se os contratantes querem, por mútuo consenso – desde que preenchidos os demais requisitos legais -, pôr fim ao “contrato” antes de seu término natural, sem que haja prejuízo para nenhum deles, parece-nos que lhes faltaria interesse de agir, tornando-se, portanto, carecedores de ação por ausência de necessidade e imprescindibilidade da tutela jurisdicional.
A persistir esse entendimento, aquelas ações judiciais propostas antes da nova Lei e que preencham seus requisitos legais deveriam ser extintas por carência de ação superveniente, em face da desnecessidade e da prescindibilidade da tutela jurisdicional.
Ocorre que, quando da convolação de núpcias, não é dado aos nubentes recorrerem ao Judiciário para a formalização do ato, uma vez que já lhes é aberta a via extrajudicial. Doravante, defendemos que, da mesma sorte, não seria possibilitada aos distratantes senão a via extrajudicial quando os requisitos da Lei nº 11.441, de 2007, estiverem presentes. É que nesta situação inexiste a necessidade de provimento judicial.
A propósito, o interesse-necessidade de agir, na definição de Alexandre Câmara [14], traduz-se na utilidade do provimento jurisdicional pretendido pelo demandante. O Estado não pode exercer suas atividades, a menos que sua atuação se mostre absolutamente necessária. Caso o provimento demandado não traga ao demandante nenhuma utilidade, o processo deverá ser encerrado sem que se tenha resolvido o mérito, nos termos do inciso VI do art. 267 [15] do Código de Processo Civil, correspondente ao art. 485, VI, do novo Código de Processo Civil, visto que o Estado estaria exercendo atividade desnecessária ao julgar procedente ou improcedente o pedido formulado na demanda ajuizada. Essa atividade desnecessária estaria sendo realizada em prejuízo de toda a coletividade que, direta ou indiretamente, arcaria com esse encargo, por conta do acúmulo de trabalho pelo Judiciário com processos desnecessários.
Em lições de direito administrativo, sobre separação de Poderes, pondera Carvalho Filho [16] que, “em relação à tipicidade ou atipicidade das funções, pode suceder que determinada função se enquadre, em certo momento, como típica e o direito positivo venha a convertê-la em atípica, e vice-versa“. Exemplo elucidativo trazido pelo administrativista ocorreu justamente com a edição da Lei nº 11.441, de 2007, porque separação, divórcio, partilha e inventário sempre constituíram função jurisdicional atípica, e, a despeito de retratarem típica função administrativa, tinham de ser processados perante o Judiciário, ainda que não houvesse litígio entre os interessados.
Consigna Alexandre Câmara [17], em edição de 2004, portanto em época em que somente havia o caminho judicial para a separação e o divórcio, que
“há que se considerar, ainda, a existência de interesses que só podem ser tutelados judicialmente, ainda que as partes estejam de acordo, hipótese em que nos deparamos com as chamadas ações constitutivas necessárias, como as de divórcio e anulação de casamento.”
Este entendimento é corroborado por Marinoni [18], ao consignar que o interesse de agir repousa sob o binômio necessidade + adequação, e a parte tem necessidade quando seu direito material não pode ser realizado senão mediante intervenção judicial.
Nessa ordem de ideias – obtempera Cristiano Chaves de Farias [19] -, a utilização da via judicial para a dissolução da sociedade conjugal e do casamento restringir-se-ia às hipóteses em que houvesse conflito de interesses entre as partes ou de existência de interesse de incapaz. Afora isso, por óbvio, restaria obstada a esfera judicial, sob pena de esvaziamento e inutilidade do novo regramento conferido à matéria.
Assim é que concluímos nas edições anteriores pela desnecessidade de se intentar ação de separação ou de divórcio judiciais em caso de consenso e preenchimento dos demais requisitos legais, pois todos os efeitos pretendidos pelos distratantes podem ser alcançados extrajudicialmente, mediante escritura pública.
Frisemos que o mandamento legal não infringe o princípio da inafastabilidade da jurisdição, exarado no inciso XXXV do art. 5º da Constituição, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito“. Ocorre que, neste particular, se conflito de interesses surgir entre as partes, franqueada estará a via judicial, a fim de que busquem justa e efetiva tutela jurisdicional.
Entretanto, prevaleceu a corrente contrária, já havendo entendimento pacífico no sentido de a escolha entre um rito e outro ser mera faculdade das partes. Confira-se:
“APELAÇÃO CÍVEL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. PEDIDO CONSENSUAL. AÇÃO EXTINTA. CARÊNCIA DE AÇÃO INOCORRENTE. ART. 1.124-A DO CPC. FACULDADE, E NÃO OBRIGATORIEDADE, DE USO DA ESCRITURA PÚBLICA. MANIFESTA PROCEDÊNCIA. ART. 557 DO CPC. 1. Dispõe o art. 1.124-A do CPC, com a redação que lhe deu a Lei nº 11.441, de 2007, que a separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública. 2. É verdade que a alteração racionaliza a congestionada atividade jurisdicional e reduz a intervenção do Poder Judiciário em relações jurídicas de conteúdo patrimonial entre pessoas maiores e capazes, todavia a formalização das separações e divórcios pela via extrajudicial é mera faculdade dos cônjuges, bastando que se atente à redação da norma. Logo, não há falar em carência de ação. Apelação provida, em julgamento monocrático.” (TJRS, 7ª C. Cível, AC 70020508289, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 22.08.07)
Não obstante o posicionamento judicial acima retratado, para a doutrina, a matéria ainda é discutível. Para Paulo Nader [20], a opção pela via extrajudicial seria facultativa, podendo inclusive os interessados, a qualquer tempo, após escolhida uma via, optarem por outra, desde que o façam antes da consumação da separação ou do divórcio.
Outro argumento em favor da facultatividade da via administrativa reside na disposição do art. 155, II, do Código de Processo Civil, correspondente ao art. 189, II, do novo Código de Processo Civil, consoante o qual “os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça os processos: (…) II – que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores“.
Assim, para essa corrente, caso os interessados pretendam valer-se do segredo de justiça, estar-lhe-ia franqueada, desde logo e não obstante ausência de litígio ou de filhos menores do casal, a via judicial.
Por fim, caso adotada a via judicial, ainda que em procedimento de jurisdição voluntária, haverá a formação da coisa julgada rebus sic stantibus, de sorte que apenas por meio de ação rescisória a res iudicata poderá ser desconstituída.
A conclusão pela facultatividade do procedimento extrajudicial é majoritária, mas não unânime. Colhemos julgado do TJRS, no qual o juízo a quo, ao perceber que os interessados preencheriam os requisitos para a separação extrajudicial, extinguiu o feito sem apreciação do mérito, por carência de ação. Em seu apelo, o interessado obteve reforma monocrática da decisão a quo extintiva, reconhecendo-lhes o direito de opção por uma ou outra via. É a seguinte a ementa do julgado:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL CONSENSUAL. USO FACULTATIVO DA ESCRITURA PÚBLICA. PETIÇÃO INICIAL INDEFERIDA E EXTINÇÃO DA AÇÃO. DESCABIMENTO. A separação e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, podem ser realizados por escritura pública, com base no art. 1.124-A do CPC, com a redação que lhe deu a Lei nº 11.441, de 2007. A formalização pela via extrajudicial não é obrigatória, mas mera faculdade dos cônjuges, bastando que se que atente à redação da norma. Assim descabe o indeferimento da inicial e a extinção da ação por carência de ação de separação consensual. Recurso provido.” (TJRS, AC 70024168395, Rel. Des. Ricardo Raupp Ruschel, j. 30.06.08)
Parece-nos que essa discussão volta a ganhar importância com a publicação do novo Código de Processo Civil, ainda em período de vacatio legis, cujo art. 610 assim dispõe:
“Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.
§ 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.”
5 Justificativa da Regra Disposta no Art. 1.830 do Novo Código Civil
Em anterior trabalho, pudemos deixar consignado que
“o novo Código Civil, após fazer figurar o cônjuge supérstite nas três primeiras classes da vocação hereditária, pressupõe ser requisito de sua participação na herança do de cujus a constância, tanto de fato quanto de direito, do cumprimento das obrigações inerentes ao casamento. Assim, somente pode ser reconhecido direito sucessório ao cônjuge supérstite se, quando da morte do outro, não estavam separados judicialmente e nem estavam separados de fato há mais de dois anos, salvo se, neste último caso, a separação ocorreu sem culpa do sobrevivente.” [21]
Nesse sentido, dispõe o art. 1.830 do Código Civil que:
“Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.”
Ao comentar o referido dispositivo, assevera Matiello [22] não bastar a simples qualidade formal de cônjuge para que seja pleiteado o reconhecimento de direitos sucessórios em relação ao acervo patrimonial deixado pelo cônjuge falecido.
É assente a ideia de que o direito de sucessão de um cônjuge em relação ao outro – novidade inserida em nosso ordenamento jurídico pelos arts. 1.829 e 1.845 do vigente Código Civil – funda-se exatamente na boa convivência entre os consortes, baseada no liame matrimonial, externado pelo esforço e pela dedicação recíprocos, além de outros atributos capazes de justificar e tornar moral a regra segundo a qual um cônjuge torna-se herdeiro necessário do outro, a depender do regime matrimonial adotado.
A partir da redação do dispositivo em análise, não haverá direito sucessório do cônjuge sobrevivente em relação ao falecido se, quando da morte deste, já se encontrava aperfeiçoada a separação judicial do casal por sentença transitada em julgado [23].
A primeira parte do dispositivo em análise – afirma Silvio Rodrigues [24] – segue o disposto no art. 1.611 [25] do Código anterior, com redação dada pela Lei nº 6.515, de 26.12.77, vale dizer, se o casal já se encontrava separado judicialmente ao tempo da morte do outro cônjuge, ou seja, se já dissolvida a sociedade conjugal, inexiste razão para que o cônjuge sobrevivente seja chamado à sucessão legítima. Vê-se então, no entender do ilustre mestre, que a ratio legis assenta-se mais na existência ou não da sociedade conjugal do que no modo com que a mesma é desfeita, haja vista o dispositivo nada mencionar acerca do divórcio. Neste caso, por mais amplos que sejam seus efeitos, o divórcio que extingue o casamento, consequentemente, engloba a extinção da sociedade conjugal.
Acertada era a redação do art. 1.611 ao empregar a assertiva “se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal“, que, mutatis mutandis, corresponde à primeira parte do atual art. 1.830. Destarte, no magistério de Levenhagen [26], a única condição para que o cônjuge sobrevivente fosse chamado à sucessão ao tempo do Código anterior – na falta de ascendentes e descendentes – seria não estarem separados judicialmente, divorciados ou não ter sido anulado o casamento, pois essas, na época, eram as únicas hipóteses de dissolução da sociedade conjugal. Caso o novo Código também houvesse utilizado a locução “dissolução da sociedade conjugal” em vez de “separação judicial“, não surgiria tal divergência de interpretação.
Assim, caso nos fosse dado deixar consignada nossa impressão sobre as impropriedades do dispositivo, todavia sem adentrarmos na questão da culpa pela impossibilidade da convivência conjugal, sugeriríamos que sua parte inicial observasse a seguinte redação:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal, nem estavam separados de fato há mais de dois anos (…).”
Leciona Francisco Cahali [27] que, pela literalidade do disposto no novo texto legal, a interpretação direciona-se no sentido da necessidade de transitar em julgado a sentença de separação, não bastando, portanto, pendência de ação ou mesmo de acordo judicialmente homologado.
6 A Questão do Afastamento Sucessório do Cônjuge Extrajudicialmente Separado à Luz do Novo Código Civil
Nas palavras de Hironaka [28],
“se é verdade que no Código Civil de 1916 a regra principal da sucessão do cônjuge é simples, visto como se trata de herdeiro único de sua classe, limitando-se a regra, destarte, a cuidar da condição de sucessividade do supérstite, também é verdade que no novo Código Civil a posição do cônjuge supérstite é-lhe favorável, mas as regras que dispõem acerca desta sua condição complicaram-se, no sentido de que multiplicaram as hipóteses, as regras e as exceções sempre que ele é chamado a adquirir mortis causa.”
Reitera Venosa [29], ainda em 2005, que o dispositivo seria um pomo de discórdias, e que terá muita importância o trabalho jurisprudencial.
Se tal assertiva já se mostrava verdadeira antes da vigência da Lei nº 11.441, de 2007, com muito mais razão agora também o é, por força do disposto no art. 1.211 do Código de Processo Civil anterior, que enuncia: “Este Código regerá o processo civil em todo o território brasileiro. Ao entrar em vigor, suas disposições aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes“.
Afirmamos, conseguintemente, continuarem atuais as lições de Gavião de Almeida [30], ao asseverar que, neste particular, o atual Código criara uma zona de conflito entre os cônjuges. Observa-se que o art. 1.830 do atual Código Civil expressamente refere-se à separação judicial como uma das causas de afastamento do cônjuge supérstite da sucessão do outro.
Resta deixar claro então se a expressão “separação judicial” é apenas o nomen juris dado ao procedimento de dissolução da sociedade conjugal ou se trata mesmo de expressão empregada em sentido literal e restrito referindo-se substancialmente ao próprio instituto da dissolução da sociedade conjugal.
Romualdo Baptista dos Santos [31], ao analisar a questão perante o mandamento exarado no § 6º do art. 226 da Constituição Federal, ainda em sua redação original, aduz surgir um problema de nomenclatura, pois o Código Civil, a Lei do Divórcio e a Constituição utilizam-se da expressão “separação judicial” para designar o procedimento que põe fim à sociedade conjugal. Salienta então que tal procedimento poderia inclusive denominar-se desquite, conforme ocorria antes da Lei do Divórcio, mas chama-se separação judicial porque até então apenas se admitia o procedimento judicial.
A regra do art. 1.830 do Código Civil é vazada em elevado teor moral, ao afastar da sucessão do outro aquele cônjuge que com ele não mais guarda um mínimo de afeto.
Em que pese o Código não prever o afastamento do cônjuge extrajudicialmente separado, não há como desconsiderar o princípio sobre o qual funda-se a edição da norma em análise, de relevante teor moral, no momento em que o legislador posicionou-se pela proibição do cônjuge judicialmente separado em contemplar-se com direitos sucessórios do outro, visto que, por este, não mais guardava sentimentos como lealdade, fidelidade, assistência e convivência afetiva.
7 A Problemática da Interpretação Restritiva das Normas Limitadoras de Direito
Obtempera Paulo Nader [32] que a relação entre sociedade e direito apresenta duplo sentido de adaptação: de um lado, o ordenamento é elaborado como processo de adaptação social, devendo ajustar-se às condições do meio; de outro lado, o direito cria a necessidade de o povo adaptar seu comportamento aos novos padrões de convivência. Por definição – prossegue -, o direito deve ser uma expressão da vontade social, devendo a legislação assimilar os valores positivos que a sociedade estima e vive.
O direito não é o único instrumento responsável pela harmonia da vida social. Para que a sociedade ofereça um ambiente incentivador ao relacionamento entre os homens, é fundamental a participação de instrumentos de controle social, como a moral, a religião e as regras de tratado social de modo a condicionar a vivência do homem em sociedade [33].
A doutrina jusfilosófica desenvolveu algumas teorias sobre a relação entre direito e moral, recorrendo-se, para tanto, ao auxílio de figuras geométricas.
Desse modo, para a teoria do mínimo ético de Jeremy Bentham, representada por círculos concêntricos, o direito estaria incluído totalmente no campo da moral. Tal teoria enuncia que o direito representa apenas o mínimo de moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver [34]. Daí infere-se ser o campo da moral mais amplo do que o do direito, subordinando-se este àquela [35]. A partir da figura ilustrativa a seguir, pode-se afirmar que, segundo tal teoria, tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico.
Para a teoria dos círculos secantes de Du Pasquier, a representação geométrica entre direito e moral apresentaria uma faixa de competência comum e, concomitantemente, uma área particular independente. Nas palavras de Miguel Reale [36], a concepção de Bentham seria uma concepção ideal, ao passo que a de Du Pasquier seria uma concepção real ou pragmática das relações entre direito e moral.
Já na concepção de Hans Kelsen, direito e moral constituem-se em dois sistemas independentes, sendo a norma o único elemento essencial ao direito, cuja validade independe de regras morais. Para a teoria pura de Kelsen [37], o direito deve ser apresentado tal como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto.
Outrossim, não se admite recurso à analogia em casos restritivos de direitos ou quando a enumeração legal é numerus clausus. Assim, quando o texto contém enumeração de casos, cumpre distinguir se trata-se de enumeração taxativa ou exemplificativa; sendo taxativa, não há lugar para o processo analógico; sendo exemplificativa, ocorre o contrário, não se presume restringida a faculdade do aplicador do direito [38].
Se ao solucionar um caso – pondera Maria Helena Diniz [39] – o magistrado não encontra norma que lhe seja aplicável, não podendo subsumir o fato a nenhum preceito, porque há falta de conhecimento sobre um status jurídico de certo comportamento, em virtude de algum defeito do sistema, está-se diante de uma lacuna. Neste caso faz-se imprescindível um desenvolvimento aberto do direito dirigido metodicamente.
Não se pode evitar, ao analisar-se o caso em tela, que o ordenamento jurídico carece de plenitude, prova disso está na expressa previsão do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do art. 126 do Código de Processo Civil, os quais determinam que, em caso de a lei ser omissa, procede-se à sua integração mediante o emprego da analogia, costumes e princípios gerais de direito.
Segundo Bobbio [40], um ordenamento é incompleto – vale dizer, apresenta lacunas – quando não compreende nem a norma que proíbe um certo comportamento nem a norma que o permite. Assim, se ficar demonstrado que nem a permissão nem a proibição de certo comportamento podem ser deduzidas do sistema normativo, da forma que foi colocado, é preciso dizer que o sistema é incompleto e que o ordenamento apresenta lacuna.
Todavia, nos ordenamentos jurídicos em que não é permitido ao magistrado proferir o juízo de non liquet, a completude passa a ser algo mais do que uma exigência, uma verdadeira necessidade. A norma que estabelece o dever do magistrado de julgar cada caso com base em uma norma pertencente ao sistema não poderia ser executada se o sistema não fosse pressupostamente completo – preferiríamos dizer completável. Os ordenamentos fundados sobre o dogma da completude baseiam-se no art. 4º do Código Civil francês [41], segundo o qual o juiz que recusar julgar a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpado de denegar a justiça [42].
Não obstante isso, poderíamos afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro não atende aos dois requisitos propostos por Bobbio para que um sistema considere-se completo, quais sejam: 1) o da obrigatoriedade de julgar todas as controvérsias que lhe são dirigidas e 2) o que prenuncia o dever de julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema. Para os positivistas sustentarem a tese da completude do ordenamento jurídico, fez-se mister sua subdivisão em dois grandes espaços: o do espaço jurídico pleno em que há normas a serem aplicadas e o espaço jurídico vazio em que não há normas e, por via de consequência, tudo é permitido [43].
No nosso caso, o primeiro requisito é atendido segundo o disposto no supracitado inciso XXXV do art. 5º da Constituição [44]. Todavia, em determinados casos, o juiz não está obrigado a julgar à luz de uma regra constante do sistema, podendo, inclusive, proferir juízo de equidade [45].
Do ângulo hermenêutico, discute-se a legitimidade de a interpretação da lei ir além da ratio legis, importando em novas hipóteses normativas ao admitir a possibilidade de que o ordenamento não as prevê, ou não as prevê satisfatoriamente. Se é inegável o fato de o direito ser norma posta pelo Estado e encarada como ponto de partida inafastável, certo é que as necessidades de uma sociedade em mudança muitas vezes exigem o rompimento de uma atitude simplesmente acrítica perante aquele direito posto. Por isso, a constatação de um descompasso entre o direito e as necessidades sociais implica trazer a lume a questão das lacunas [46].
Desta feita, consoante ensinamentos de Maria Helena Diniz [47], para integrar a lacuna, o juiz recorre, preliminarmente, à analogia que consiste na aplicação de uma norma prevista para um caso a uma hipótese semelhante, porém não contemplada de modo direto ou específico por uma norma jurídica. Trata-se de procedimento argumentativo, sob o prisma da lógica retórica que teria por escopo transferir valores de uma estrutura para outra.
Observe-se que, valendo-se da separação e divórcio extrajudiciais, vale dizer, mediante escritura pública, não haverá intervenção do representante do Ministério Público, tampouco audiência perante o juiz, que certamente não homologaria a separação ou o divórcio caso vislumbrasse alguma tentativa de fraude.
Entendemos que a interpretação literal do disposto no art. 1.830 atenta contra o princípio da isonomia, mormente se prevalecer a interpretação de ser o procedimento extrajudicial obrigatório a partir de 05.01.07, para aqueles que preenchem os requisitos da nova Lei.
Avente-se a hipótese de um casal possuir filhos menores e, em razão de a separação envolver interesses destes, necessitar recorrer à via judicial. Neste caso, o cônjuge supérstite subsumir-se-ia à literalidade da regra exclusiva do art. 1.830 do Código Civil. Agora admita-se que o casal não possua filhos. Sendo-lhes obrigatório o procedimento extrajudicial inovado pela Lei nº 11.441, de 2007, o mesmo supérstite, unicamente por não enquadrar-se na literalidade do dispositivo do Código, agora teria direito à herança do de cujus.
Fundamentamos este entendimento, entre outras fontes, nas sempre sábias lições de Caio Mário da Silva Pereira [48], ao enunciar que:
“Separados judicialmente, por sentença transitada em julgado, os cônjuges não têm vocação hereditária, um em relação ao outro. Pouco importa o fundamento da separação, se resultante de processo litigioso (novo Código civil, arts. 1.572 e 1.573) ou de mútuo consentimento (art. 1.574).” [49]
A locução “jurisdição voluntária“, apesar de consagrada pelo legislador brasileiro, traz em si uma carga bastante contraditória, pois é papel da jurisdição a composição de conflito de interesses qualificados por pretensões resistidas, o que somente ocorreria nos procedimentos contenciosos. Por sua vez, na jurisdição voluntária, o Estado, por meio de seus órgãos jurisdicionais, exerce atividade de administração de meros interesses privados.
Nas lições de José Frederico Marques [50], a jurisdição voluntária, como função estatal, tem natureza administrativa sob o aspecto material, e é ato judicial no plano subjetivo orgânico. A única diferença que ora se passa a ter está no que concerne ao elemento subjetivo orgânico, pois tal mister, observados os requisitos legais, sai da supervisão do Judiciário para conformar-se à tutela cartorial.
No tocante à jurisdição voluntária – nos dizeres de Cintra, Dinamarco e Grinover [51] -, a doutrina preponderante e já tradicional diz serem funções administrativas, tais quais aquelas exercidas por outros órgãos da administração. Não é pela circunstância de serem exercidas por juízes togados que tais funções se caracterizaram como jurisdicionais, pois teriam, tanto quanto a Administração Pública de interesses privados exercidas por outro órgão que não o Poder Judiciário, a finalidade de constituir ou desconstituir situações jurídicas. É neste ambiente que já se encontravam inseridos o divórcio e a separação judiciais consensuais, e é em procedimento semelhante a este que ora se encontram o divórcio e a separação consensuais extrajudiciais.
O que assemelha os procedimentos judiciais e extrajudiciais, ainda no magistério de Cintra, Dinamarco e Grinover [52], são os seguintes pontos: a) não se visa com eles a uma atuação do direito, mas, sim, a uma constituição de situações jurídicas novas; b) não há substituição da vontade das partes pela vontade do Estado-juiz (agora também o Estado-registro); e c) seu objeto não é um conflito de interesses entre as partes, mas apenas um negócio com a participação do magistrado (e agora também do notário).
Tais semelhanças só podem dirigir o intérprete ao entendimento de que, assim como a separação e os divórcios consensuais processados pelo rito da jurisdição voluntária, a separação e o divórcio extrajudiciais também sofrerão a restrição constante da primeira parte do art. 1.830 do Código Civil.
Além disso, caso prevaleça a interpretação restritiva, vale dizer, aquela no sentido do não afastamento do cônjuge extrajudicialmente separado, ter-se-ia uma verdadeira subversão da mens legis, uma vez que qualquer um dos cônjuges jamais consentiria no procedimento extrajudicial, esperando que se escoa o prazo de dois anos da separação de fato para então enquadrar-se na literalidade do art. 1.830 do Código Civil e, por via de consequência, afastar da sucessão aquele cônjuge com o qual não guarda mais nenhum sentimento afetivo.
Conforme salienta Cristiano Chaves de Farias [53],
“é nesse novo e alvissareiro panorama que se haverá de compreender toda a sistemática legal infraconstitucional (inclusive da nova sistemática da separação e do divórcio por escritura pública), pois a lex legum tem prevalência e supremacia hierárquica, vinculando – formal e materialmente – todas as normas que compõem o respectivo sistema jurídico.”
Portanto, é a lei que deve ser interpretada sob o viés da compatibilidade constitucional, e não a Constituição que deve ser interpretada pela norma infraconstitucional, sob pena de incorrer-se em inversão hermenêutica.
8 Conclusões
Considerando-se que a Emenda Constitucional nº 66, de 2010, não extinguiu a separação jurídica (judicial e extrajudicial), que não revogou e nem deixou de recepcionar os dispositivos do Código Civil que fazem referência à separação jurídica e que o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16.03.2015) faz expressa referência ao instituto, bem como as situações iniciadas antes da vigência daquela Emenda, concluímos este breve estudo posicionando-nos pela aplicabilidade da norma exclusiva da primeira parte do art. 1.830 do Código Civil também aos cônjuges extrajudicialmente separados, tomando-se por fundamento as lições de hermenêutica e interpretações trazidas a lume.
A norma infraconstitucional deve ser interpretada à luz da Magna Carta, segundo o princípio da preeminência normativa. À guisa de arremate, trazemos à baila a esclarecedora lição de Araújo e Serrano Júnior [54], ao enunciarem que o princípio da supremacia constitucional identifica a Constituição Federal como o plexo de normas de mais alta hierarquia do sistema normativo, sendo vista como a fonte legitimadora de todo o ordenamento, disso decorrendo, entre outras consequências inarredáveis, a imposição de que, dentre as hipoteticamente possíveis interpretações de um texto infraconstitucional, somente devem ser levadas a efeito aquelas que estejam conforme a finalidade do texto constitucional.
Esperamos, finalmente, que possa ser revista a redação do referido dispositivo do Código Civil para que sejam estancadas as controvérsias existentes acerca deste particular, e que a interpretação conforme a Constituição prevaleça quando da reiterada apreciação da matéria pelo Judiciário.
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[1] GABURRI, Fernando. Primeiros apontamentos sobre separação e divórcio extrajudiciais. Disponível em: <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=276>.
[2] O procedimento para separação e divórcio extrajudiciais, ou seja, perante as conservatórias de registro civil portuguesas, está disciplinado no Capítulo III (arts. 5º a 15) do Decreto-Lei nº 272, de 13.10.01.
[3] Em que pese a lei brasileira não fazer nenhuma ressalva acerca de sua aplicabilidade quando houver interesses de filhos menores ou incapazes, entendemos, em conformidade com o texto português, que, se tais questões já se encontrarem judicialmente decididas, nada obsta a adoção do procedimento extrajudicial para a separação ou o divórcio consensuais.
[4] Isso significa que o tabelião não terá à sua disposição meios hábeis para perquirir se a convenção entre os distratantes preserva suficientemente os interesses dos filhos ou de um dos cônjuges.
[5] “Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula ‘entra em vigor na data de sua publicação’ para as leis de pequena repercussão.”
[6] “Art. 1º Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.”
[7] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 55-56.
[8] CARVALHO NETO, Inacio de. Separação e divórcio: teoria e prática. 11. ed. Curitiba: Juruá, 2010. p. 99.
[9] Quanto à supressão do prazo para o divórcio com a vigência da Emenda nº 66, de 2010, não resta dúvida, mas este autor sustenta, neste tópico, que a separação judicial não deixou de existir.
[10] NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2009. p. 102-103.
[11] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 80-81.
[12] “Art. 158 Separazione consensuale
La separazione per il solo consenso dei coniugi non ha effetto senza l’omologazione del giudice.”
[13] NEVES, Daniel Assumpção. Manual de direito processual civil. São Paulo: Método, 2009. p. 10.
[14] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. v. 1. p. 125.
[15] “Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: (…) VI – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.”
[16] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 3.
[17] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições, cit., p. 125.
[18] MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 69.
[19] FARIAS, Cristiano Chaves de. A desnecessidade de procedimento judicial para as ações de separação e divórcio consensuais e a nova sistemática da Lei nº 11.441/07: o bem vencendo o mal. 2007, n. 3. O texto nos fora gentilmente cedido pelo amigo autor por e-mail.
[20] NADER, Paulo. Curso de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 5. p. 206.
[21] GABURRI, Fernando. Questões controvertidas sobre a sucessão do cônjuge no novo Código Civil. In: CASTILHO, Ricardo; TARTUCE, Flávio (Coord.). Direito civil: direito patrimonial e existencial. Estudos em homenagem à Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. São Paulo: Método, 2006. p. 890.
[22] MATIELLO, Fabricio Zamprogna. Código Civil comentado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2005. Disponível em: <http://www.ltrdigital.com.br>. Art. 1.930, n. 1.
[23] Não obstante ausente previsão legal neste sentido, o divorciado não herda, pois com o divórcio dissolve-se não somente a sociedade conjugal, mas também o vínculo matrimonial, nos termos do § 1º do art. 1.571 do Código Civil.
[24] RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 7. p. 115.
[25] “Art. 1.611. À falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.”
[26] SOUZA, Antônio José de Levenhagen. Código Civil: comentários didáticos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1995. v. 6. p. 57.
[27] CAHALI, Francisco José. Curso avançado de direito civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. v. 6. p. 187.
[28] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 20. p. 218.
[29] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 7. p. 147.
[30] ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 216.
[31] Entendimento consignado em e-mail de 15.01.07, enviado ao extinto Grupo de Estudos Professora Giselda Hironaka.
[32] NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 16.
[33] NADER, Paulo. Introdução, cit., p. 29.
[34] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 42.
[35] Nader, Paulo. Introdução, cit., p. 40.
[36] REALE, Miguel. Lições, cit., p. 43.
[37] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. Agnes Cretella e José Cretella Júnior. 3. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 48.
[38] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 213.
[39] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil interpretada. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 93.
[40] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 115.
[41] “Article 4: Le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l’obscurité ou de l’insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice.”
[42] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento, cit., p. 118.
[43] Consideramos a grande falha da teoria do espaço jurídico vazio o fato de considerar o permitido como sinônimo de juridicamente irrelevante. Contra tal entendimento ergueu-se a teoria da norma geral exclusiva a qual toda relação humana é regulada por uma norma jurídica, uma vez que, quando não cair sob o manto de uma norma específica, encontra-se sob o de uma norma geral exclusiva.
[44] Art. 5º: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
[45] Nos termos do art. 126 do CPC, já mencionado, ao magistrado é permitido proferir juízo de equidade quando expressamente permitido em lei. Podem-se citar como exemplos de casos nos quais se mostra possível a utilização da equidade, entre outros, o art. 2º da Lei nº 9.307/96: “A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes”; o art. 25 da Lei nº 9.099/95: “O árbitro conduzirá o processo com os mesmos critérios do Juiz, na forma dos arts. 5º e 6º desta Lei, podendo decidir por equidade”; e o parágrafo único do art. 738 do CC: “Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá equitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano”.
[46] FERRAZ Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 298-299.
[47] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução, cit., p. 102-103.
[48] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 6. Disponível em: <http://www.bibliotecaforense.com.br>. Cap, n. 447-A.
[49] Mais uma vez percebe-se que a verdadeira razão do dispositivo é contemplar com a sucessão apenas aquele cônjuge que ainda guardava com o outro algum sentimento de afetividade, vale dizer, o que se deve aproveitar do art. 1.830 com a superveniência da Lei nº 11.441/07 é mais seu fundo, e menos não sua forma.
[50] MARQUES, José Frederico apud THEODORO Jr., Humberto. Curso de direito processual civil. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 3. Disponível em: <http://www.bibliotecaforense.com.br>. p. 1.486.
[51] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 153.
[52] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria, cit., p. 154.
[53] FARIAS, Cristiano Chaves de. A desnecessidade, cit., n. 1.
[54] ARAUJO, Luiz Alverto David; NUNES Jr., Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 82-83.