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A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA PELA PANDEMIA DO COVID-19

Leonardo França E Silva

No presente artigo, muito antes de esgotar o tema, pretende-se demonstrar como, na visão deste articulista, a omissão da República Popular da China em lidar com a então endemia do covid-19 em seu território atrai para si o dever de indenizar os prejuízos individuais e coletivos sofridos por pessoas e entidades personificadas, com tal pandemia.

De início, o mais importante nessa questão é afastar o princípio da imunidade de jurisdição, que regula as relações.

DA NÃO INCIDÊNCIA DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO

Sabe-se, a princípio, que Estados estrangeiros, com representação diplomática no Brasil, gozam de imunidade de jurisdição, isto com fundamento na regra par in parem, ou seja, iguais não julgam iguais.

Todavia, essa regra, que até 1945 reinava absoluta, passou a ser mitigada, sobretudo, a partir dos anos 1970.

Atualmente, a referida regra não incide nas relações trabalhistas, entre Estado estrangeiro e seus empregados brasileiros, tal como previsto no inciso I do art. 114 da CRFB.

Pois bem, a partir da década de 1970, como mencionado, a regra da imunidade de jurisdição passou a ser mitigada, passando-se a adotar concepção restritiva da imunidade. Considerou-se então, que, se a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros repousava do princípio da soberania, nenhuma razão haveria para superar a imunidade de jurisdição quando o ato a ser julgado fosse praticado no exercício do jus imperii. Contudo, sendo o ato objeto da apreciação do Judiciário, praticado pelo Estado estrangeiro em razão de atos de atividades privadas, ou jus gestiones, ou seja, atos de gestão, a regra da imunidade poderá ser superada.

No Brasil, o princípio da imunidade de jurisdição não está disciplinado em norma legal, mas no direito consuetudinário.

Em outros países, entretanto, o referido princípio foi objeto de limitação legal, tal como nos EUA, por meio da lei Foreign Sovereign Immunities Act, que exclui da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, em causas relativas à responsabilidade civil.

Na Inglaterra, em 1978, foi editado o Estate Immunities Act, que restringe a aplicação da imunidade em causas trabalhistas e de responsabilidade civil.

Outros países, como Singapura (1979), Paquistão (1981), África do Sul (1981), Canadá (1982) e Austrália (1985), adotaram leis similares, restringindo a imunidade de jurisdição a hipóteses excepcionais.

Segundo o doutrinador argentino Alfredo H. Rizzo Romano:

[…] É difícil sustentar que hoje em dia a imunidade absoluta de jurisdição dos Estados possa ser considerada como um princípio geralmente aceito pelas nações civilizadas, um costume ou um princípio geral do direito internacional público. Ainda mais, opina-se que a tese restritiva, que distingue entre atividade jure imperii e atividade jure gestiones, é a que rege atualmente, para submeter volens noles o Estado estrangeiro envolvido nesta última à jurisdição dos tribunais nacionais […]. (El Estado y los organismos internacionales ante los tribunales extranjeros. Ed. Plus Ultra, 1996, p. 35 e 245-247)

Como se verifica, o princípio em comento carece de absolutismo em sua aplicação, devendo, pois, ser antes identificados os fatos postos sob litígio.

No Direito pátrio, o STF, em julgamento do Agravo de Instrumento nº 93.0010242-7, restringiu a aplicação do princípio de imunidade de jurisdição na hipótese, que tratava de responsabilidade civil de Estado estrangeiro, no caso, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.

Vale destacar o seguinte fragmento do voto do em. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, citando voto do também Ministro Francisco Rezek:

[…] Esta casa vinha sistematicamente proclamando que duas linhas de imunidade de jurisdição, fluentes do direito internacional público contemporâneo, alcançam, grosso modo, a representação dos Estados estrangeiros no território da República.

Numa primeira vertente, temos imunidades pessoais resultantes das duas primeiras Convenções de Viena, de 1961 e 1963, ambas promulgadas no Brasil, relacionada a primeira com serviço diplomático, e a segunda com o serviço consular. Quando se cuide, pois, de processo penal ou cível onde o pretendido réu seja membro do corpo diplomático estrangeiro aqui acreditado – ou ainda, em determinadas hipóteses, do serviço consular estrangeiro -, opera em sua plenitude o direito internacional escrito: tratados que, em certo momento, se negociaram lá fora, e que entraram em vigor para o Brasil, sendo aqui promulgados.

Ficou claro, não obstante, que nenhum dos dois textos de Viena diz da imunidade daquele que, na prática corrente, é o réu preferencial, ou seja, o próprio Estado Estrangeiro. Com efeito, o que nos evidencia a observação da vida judiciária é que raras vezes alguém intenta no Brasil um processo contra a pessoa de um diplomata ou cônsul estrangeiro. O que mais vemos são demandas dirigidas contra o Estado estrangeiro. Essas demandas, quando não têm índole trabalhista – o que ocorre em mais de dois terços dos casos – têm índole indenizatória e concernem à responsabilidade civil. Quanto a esta imunidade, o que dizia esta Casa outrora, e se tornou cristalino no começo da década de setenta? Essa imunidade não está prevista em nenhuma forma escrita de direito internacional público. Ela resulta, entretanto, de uma antiga e sólida regra costumeira do Direito das Gentes. Tal foi, nas derradeiras análises da matéria, a tese que norteou as deliberações do Supremo. […]

Volto ao tema de fundo. Aquela antiga e sólida regra costumeira de direito internacional público, a que repetidamente este Plenário se referiu, deixou de existir na década de setenta.

Em 1972, celebrou-se uma convenção europeia sobre imunidade do Estado à jurisdição doméstica dos demais Estados (European Convention on State Immunity, Basileia, 16 de maio de 1972). Nessa convenção, que é casuística como diversos textos de igual origem, talvez o leitor não possa detectar o substrato filosófico da fronteira que se terá estabelecido entre aquilo que é alcançado pela imunidade e aquilo que não é mais; entre o que os Estados pactuantes entenderam estar no domínio dos atos de império e no dos atos de mera gestão. […]

Como visto, portanto, atualmente, a imunidade de Estados estrangeiros à jurisdição doméstica é amplamente aceita como relativa. Somente os denominados atos de império é que encontram lugar seguro frente à jurisdição local.

Na hipótese de se responsabilizar civilmente a República Popular da China pelos prejuízos advindos da pandemia do covid-19, o que se colocará sob apreciação do Judiciário, são fatos compreendidos como atos de mera gestão, portanto, submissos à legislação local.

A primeira das omissões atribuídas à República Popular da China, no trato com a então endemia do covid-19, foi a infração aos dispositivos do Código Sanitário Internacional, notadamente os arts. 6º e 7º, ao não notificar a Organização Mundial da Saúde – OMS quando dos primeiros casos de infecção por covid-19 em seu território. Ao contrário disso, perseguiu, prendeu e obrigou o médico que primeiro identificou os casos da doença, Dr. Lee, a desmentir seu diagnóstico. Esse fato foi amplamente divulgado pela imprensa mundial.

Com a infração às disposições do Código Sanitário Internacional, e o posterior alastramento em escala global do covid-19, a referida omissão da China lesou os direitos humanos, na medida em que ocasionou a limitação das pessoas em seus direitos básicos, como a liberdade de locomoção – art. 13:

XIII – Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado e de exercício livre de suas profissões – art. 23, 1 -, face ao isolamento social compulsório.

XXIII:

1 – Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Os direitos mundialmente assegurados foram replicados em nossa Constituição como direitos fundamentais – cláusulas pétreas -, como estes importados da DUDH: o direito à saúde e, claro, o direito à vida.

Por tudo isso, a República Popular da China não poderá alegar a imunidade de jurisdição, como “manto protetor“, à sua subsunção à legislação pátria, a fim de que seja responsabilizada por todos os danos causados pela disseminação mundial do covid-19, posto que, no cotejo entre as normas, não se poderá privilegiar norma que regulamenta as relações entre países, em detrimento daquelas que asseguram direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

Assim, a imunidade de jurisdição cede lugar ao direito da pessoa humana a buscar ressarcimento pelos danos causados a seus bens e direitos mundialmente protegidos, além, é claro, de a omissão da República Popular da China, que causou a lesão a tais direitos, classificar-se em atos de mera gestão que não são imunes à jurisdição, e não atos de império, estes sim acobertados pela imunidade.

Com base justamente nesse cotejo entre normas é que foi pacificada a submissão de países estrangeiros a normas pátrias do trabalho – CLT.

Portanto, salvo melhor juízo, tenho que, em relação ao ressarcimento aos danos causados pela pandemia do covid-19, a República Popular da China não poderá encontrar guarida no princípio da imunidade de jurisdição, e por isso, submeterá à legislação pátria em julgamento pela Justiça Federal, na apuração dos alegados danos.

DOS DANOS INDENIZÁVEIS

Uma vez afastada a imunidade de jurisdição, cabe esclarecer sobre os danos que deverão ser ressarcidos.

Em primeiro lugar, tenho que, em razão de toda a problemática e as restrições causadas em razão da pandemia, é cabida a reparação por danos morais, que, nessa hipótese como em outras, incidem in re ipsa, ou seja, não carecem de prova, pois são presumidos.

Ora, principalmente quanto às pessoas que integram o chamado grupo de risco, é absolutamente presumível o grau de tensão, aborrecimento e até abalo psicológico causado, por serem obrigadas a permanecerem trancafiadas em seus lares, por quatro, cinco meses, sem contato com amigos e familiares.

As pessoas tiveram que alterar toda sua rotina para se prevenir do contágio do covid-19. Isto, sem qualquer dúvida, atrai a presunção de lesão extrapatrimonial ao eventual autor da ação.

Assim, tenho que os danos morais são devidos e prescindem de prova, via de regra. Salvo, é claro, nas situações excepcionais, como, por exemplo, quem foi contagiado e, sobretudo, aquele que teve alguma complicação em seu tratamento, entre outras hipóteses.

Ainda caberiam, em eventual reparação, os danos materiais. Porém, eles dependem de prova, seja relativamente aos valores efetivamente perdidos, seja aos que se deixaram de ganhar.

Exemplificando: um trabalhador que teve seus salários reduzidos pode, provando tal fato, requerer o valor que lhe foi descontado dos salários; o profissional liberal que também teve seus ganhos reduzidos, e também provando esses fatos, poderá ser indenizado pelos lucros cessantes.

Assim, via regra, o dano patrimonial, decorrente do covid-19, uma vez provado, deverá ser ressarcido.

Sem a mínima pretensão de esgotar o tema, e respeitando os abalizados e fundamentados entendimentos em sentido contrário, encerro estas breves considerações.

 

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