RESPONSABILIDADE REGRESSIVA DO JUIZ – ART. 143 DO CPC
José Carlos Zanforlin
O TEMA E SEU MOMENTO
- É de conhecimento em círculos medianamente informados do País a celeuma causada por projeto de lei que dispõe sobre abuso de autoridade, sobretudo na parte que busca coibir abuso de juízes e procuradores. Concomitantemente, veio à baila questão relativa a proventos de juízes e procuradores, acima do teto constitucional, e, em alguns casos, bem acima desse teto, com a peculiaridade de caracterizarem-se essas verbas como “indenizatórias”, para, bem a propósito, não serem tributadas.
- Mais recentemente ainda, veiculou-se notícia de criação de CPI para investigar proventos irrealisticamente acima do limite constitucional, o que, aliado ao projeto de lei contra abuso de autoridade, causou mais rebuliço ainda nos grupos-alvo dessas iniciativas. Desses provém nem tão velada afirmativa de tratar-se de reação a determinada ação judicial que tramita em Curitiba. Este artigo é apolítico e somente menciona esse cenário porque o tema a ser desenvolvido relaciona-se com o que se pode denominar de privilégio[1] àqueles que a Constituição dota de jurisdição. Estivesse em vigor o segundo direito fundamental expresso no art. 179, II, da Constituição de 1824, “nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”, e esse estado de coisas não teria se enraizado tão profundamente).
RESPONSABILIDADE POR ATO ILÍCITO E INSTITUIÇÃO DE PRIVILÉGIO
- A obrigação de reparar dano causado a outrem por ato ilícito é secular, e já constava do art. 159 do Código Civil de 1916. No Código vigente, a matéria se regula pelo art. 186 e 927[2]. O ato ilícito praticável por juiz em função jurisdicional, tal o determinado no art. 121 do CPC de 1939 e 133 do CPC de 1973, não discrepa da regra geral posta tanto no antigo Código Civil quanto no novo, razão pela qual não haveria necessidade de regulação dessa matéria, de natureza claramente civil, em código de processo civil[3]. Acrescente-se que a regulação nos CPC’s passados não estabelece nenhum privilégio, não previsto na lei civil, de responsabilização para ação dolosa ou fraudulenta praticada por juiz, o que demonstra tratar-se de regulação repetitiva.
- Por essa razão, ao criar a regressividade, não se pode negar que o art. 143 do CPC institui claro privilégio para o juiz que proceder com dolo ou fraude no exercício de suas funções.[4] Os demais mortais respondem diretamente com seu patrimônio pelos danos causados por ato ilícito, mas não agora os juízes. E o privilégio judicial consiste em que o Estado ressarce o prejuízo a que deu causa o juiz, para só depois, se conseguir provar dolo ou culpa do agente, reaver desse o que pagou.
- Ocorrerá, na prática, que o prejudicado por ação desse modo lesiva em processo judicial ajuizará demanda contra o Estado, em razão de sua responsabilidade objetiva, que demandará regressivamente contra o juiz causador do dano. No plano de ação do prejudicado, ele deverá provar apenas o dano que lhe foi causado; já o Estado, contra o juiz, terá a dificílima missão de provar sua conduta dolosa ou fraudulenta. Essa tarefa, repita-se, não será fácil, e talvez não se conclua, sobretudo se se considerar holisticamente que no Judiciário tramitam milhares de ações em que o Estado é réu…
- Esse dispositivo, que passou a viger em março de 2016, é absolutamente inovador na questão da responsabilidade regressiva de juiz, mesmo por ação dolosa ou fraudulenta. Os dispositivos semelhantes nos códigos de 1939 e 1973 não instituíam esse privilégio, pois o responsabilizavam diretamente por danos causados à parte.
- Assim, a única alteração entre o regime de responsabilização passado e o atual foi a instituição da regalia da ação regressiva. Não se diga que após esses 76 anos de vigência (1939 até 2016) os legisladores “descobriram” falha que deveria ser corrigida. Nem se diga também que a responsabilização regressiva fortalece a independência do juiz, pois não se concebe independência para atuação dolosa ou fraudulenta de juiz em seu ofício. Foi em consideração dessa independência que os dois códigos passados não previram possibilidade de responsabilização de juiz por erro escusável, ou simplesmente erro de apreciação ou valoração de certo fato posto em juízo. Não. O que os legisladores passados positivaram foi responsabilização por ato doloso ou fraudulento. Em conclusão, o art. 143 do CPC atual criou, sem meias palavras, mais um injustificável privilégio.
LEI COMPLEMENTAR ALTERADA POR LEI ORDINÁRIA
- O legislador do art. 143 não observou que seu texto modificava lei de maior hierarquia, o art. 49 da Lei Complementar nº 35/79, conhecida como Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN. Esse dispositivo estabelece: “Art. 49 – Responderá por perdas e danos o magistrado, quando: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; ”. Ora, essa Lei Complementar é compatível com a Constituição de 1988, por isso foi por ela recepcionada, e estava em pleno vigor ao advento do novo CPC. Seu texto era consentâneo com 40 anos de regulação, sem privilégio, da responsabilidade do juiz por conduta dolosa ou fraudulenta no exercício da judicatura (1939 a 1979).
- Confronto entre esses dois dispositivos revela, de um lado, lei ordinária mais nova, instituidora de privilégio inexistente; de outro, lei complementar anterior modificada, nesse ponto, pela lei ordinária.
- Assim, sem mais nem menos, o art. 143 da Lei nº 13.105/15 instituiu vantagem especial, em modificação do texto da Lei Complementar nº 35/79, o que é inconstitucional, pois valeu-se de quórum comum para alterar conteúdo de norma posta por quórum qualificado (art. 69 da Constituição).
- Não há como “salvar” dialeticamente o art. 143 da pecha de inconstitucionalidade. Primeiro, porque se trata de séria alteração de conteúdo de uma lei complementar por uma lei ordinária. Segundo, porque não incide o art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[5], em auxílio de argumento de constitucionalidade do art. 143 do CPC. E não incide porque a lei nova (art. 143 do CPC) não acrescenta disposições gerais ou especiais a par das já existentes, pois a lei modificada (art. 49 da LOMAN) não contém nem estabelece nenhuma regalia nesse particular. Ainda que exegese comprometida (engajada) com sua manutenção pugnasse pela vigência simultânea das duas normas, e criação do privilégio, dar-se-ia a impossibilidade do acréscimo pela diferença de hierarquia entre as duas normas.
O ART. 37, § 6º DA CONSTITUIÇÃO
- Esse dispositivo se insere (i) no Título III, que trata da organização do Estado, (ii) no Capítulo VII, que trata da administração pública, e (iii) na Seção I, que estabelece disposições gerais sobre esse tópico. O conteúdo da Seção I é um conjunto de regras de atuação, funcionamento e de responsabilidade da administração pública. Tal descrição objetiva deixar bem claro que o objeto da regulação constitucional nessa parte é tão-somente a organização do Estado, e, nessa, disposições gerais sobre a administração pública.
- Expressa o art. 37, § 6º: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos (i) responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, (ii) assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa[6]. Observa-se que o preceito se compõe de duas partes, ambas destinadas a administração pública: a primeira enunciativa de sua obrigação de reparar prejuízo do administrado; e a segunda, de seu direito-dever de se ressarcir perante o agente que o causou, se por dolo ou culpa. Não é cabível interpretação desse texto de modo a que expresse direito de o agente causador do dano ser demandado apenas regressivamente. Reitere-se: não é o agente que tem assegurado direito constitucional de responsabilização regressiva; o que a Constituição salvaguarda é o direito-dever de a administração ressarcir-se. Adiante será visto não ser esse o entendimento do STF, e justo com fundamento no art. 37, § 6º da Constituição.
O STF E O PRIVILÉGIO
- Em 5/3/02, foi provido o RE 228.977-2/SP (DJ de 12/4/02), interposto com fundamento no art. 102, III, “a”, da Constituição, baseado em descumprimento de seu art. 37, § 6º, que foi analisado nos itens 12 e 13 deste trabalho. Estava em vigor o CPC de 1973. Foi recorrente um juiz que não aceitou acórdão que o teve por parte legítima em ação reparatória de dano por ato ilícito.
- Em síntese, sentença em ação reparatória de danos contra juiz extinguiu o processo sem lhe julgar o mérito. O acórdão refutou argumento de extinção do feito por entender que o réu era, sim, parte legítima para a reparação, e determinou exame do pedido do autor. O STF, por sua vez, proveu o RE interposto pelo juiz, por entender violado o art. 37, § 6º da Constituição, pois, a seu ver, esse dispositivo assegura direito constitucional de o agente causador do dano somente ser responsabilizado em ação de regresso.
- Independentemente da orientação doutrinária daquele que se propõe a estudar o Direito, e ultrapassadas as premissas de cada escola, o exame da incidência de um grupo de normas sobre um fato requer bom conhecimento de como essas normas incidem sobre esse fato. Tal é o caso do RE 228.977-2/SP, examinado por um juiz de primeira instância, depois por um tribunal de segunda instância e, finalmente, pelo STF: houve uma conduta danosa decorrente de ato ilícito praticado por juiz, e duas normas que se aplicariam ao caso (i) o art. 133 do CPC de 1973, e (ii) o art. 37, 6º da Constituição.
- Em primeira instância, a questão da reparação do dano foi posta liminarmente de lado ao entendimento de que o juiz (apontado como causador do dano) era parte ilegítima para figurar na ação, visto incidência do art. 37, 6º da Constituição. Em segunda instância, entendeu-se que o dano, a autoria e sua reparação deveriam ser examinados em sentença, visto incidência do art. 133 do CPC vigente. Em grau extraordinário, o STF, novamente deixando de lado a reparação do dano, tornou definitiva a decisão de primeiro grau. Até esse desfecho, atuaram duas instâncias em grau ordinário e outra, em grau extraordinário, para decidir que o CPC, nesse particular, era incompatível com a Constituição; o fato – a busca judicial de reparação por ato ilícito – foi desconsiderada, e atribuída a outro ente. Assim, o processo, para o prejudicado, além de perda de tempo, de nada serviu.
- Este artigo partilha do entendimento da Quinta Câmara do TJSP, refutado pelo STF, de que é plena a incidência do art. 133 do CPC, porque o art. 37, § 6º da Constituição não institui direito de o agente causador de dano ser demandado regressivamente. Insista-se: esse preceito constitucional compõe-se de duas regras, ambas destinadas integralmente à administração pública: (i) obrigação de indenizar dano causado por seu agente, e (ii) direito-dever de ressarcir-se deste quando o dano resultar de dolo ou fraude.
- Sem esmiuçar o acórdão, cujo endereço está abaixo[7], verifica-se que o argumento básico consiste na afirmativa de que “a autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. É que, embora seja considerada um agente público […] tais agentes, portanto, não agem em nome próprio, mas em nome do Estado […] de modo que não há como lhes atribuir responsabilidade direta por eventuais danos causados a terceiros […]”. Proposições doutrinárias referidas no acórdão não expressam normas jurídicas, mas pontos de vista; por isso, o caráter categórico da afirmativa, de não responsabilidade civil de juiz, surpreende. Não se considerou que o pressuposto da ação regressiva contra o agente seja um ato ilícito, praticado com dolo ou fraude. Dolo ou culpa constituem a patologia do ato jurídico válido, que podem levar à sua anulação. A Constituição jamais instituiria, e não instituiu, privilégio ao ato ilícito, como o direito de o agente ser acionado regressivamente nesses casos. No dispositivo em questão, o agente figura em seu enunciado como mera destinação de ato ressarcitório da administração pública.
CONCLUSÃO
- Esse RE como que convalida o art. 143 do novo CPC; por outro lado, demonstra quanto se tem de desvirtuar a letra da lei para manutenção de privilégios. O conhecimento jurídico não é místico, não provêm de círculo de iniciados e não se aplica por entidades semidivinas, privilegiadas. Diferentemente da cabala[8], o Direito é regra de convivência comunitária, por isso deve ser conhecido e aplicado da maneira mais simples e reta possível, para que tenha eficácia ampla e pacífica. As regras jurídicas, para serem duradouras, devem provir do senso comum, e não serem obscuras, artificiais ou estabelecidas com finalidades particulares, privilegiantes. E bem interpretadas para serem bem aplicadas. “Nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”, regra que ainda deveria estar em vigor.
Agradeço aos colegas Acélio Jacob Roehrs e Nér Cabrera Lopes pesquisa e discussões.
NOTAS
- Do Latim PRIVILEGIUM, “lei aplicada a apenas uma pessoa”, de PRIVUS, “individual, pessoal”, mais LEX, “lei”, in: http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/privilegio/. No caso, lei aplicada aos componentes de um conjunto.
- Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
- CPC/39, art. 121 – O juiz será civilmente responsável quando: I – no exercício das suas funções, incorrer em dolo ou fraude; CPC/73, art. 133 – Responderá por perdas e danos o juiz, quando: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude
- Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando:
I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II …
Parágrafo único…
- Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
- 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
- 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
- 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
- Enumeraram-se as duas regras constitutivas desse § 6º para melhor visualização de seu conteúdo.
- http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=252829.
- Palavra oriunda do hebraico KABBALAH ou QABBALAH, que significa “ato de receber”; é “conjunto de ensinamentos esotéricos extremamente complexos ” in http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/cabala/. Ver também “Cabala – O Misticismo Judaico Revelado”, in http://super.abril.com.br/historia/cabala-o-misticismo-judaico-revelado/.
COAD – JANEIRO/2017