RESPONSABILIDADE CIVIL PROATIVA NA PROTEÇÃO DE DADOS
Jesualdo Eduardo de Almeida Junior
O Informativo 838 do Superior Tribunal de Justiça destacou o acórdão proferido no Recurso Especial nº 2.147.374-SP, que abordou o tema da responsabilidade civil proativa à luz da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). O acórdão fixou a seguinte tese:
“É passível a imputação das obrigações previstas no artigo 19, inciso II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ao agente de tratamento de dados, na ocasião de vazamento de dados pessoais não sensíveis do titular, decorrente de atividade alegadamente ilícita (ataque hacker)” (Brasil, 2025).
Resumidamente, o acórdão trata de a hipótese de dados pessoais não sensíveis de um titular serem hackeados e a consequente responsabilidade do controlador desses dados. Assim, no caso de empresa de tratamento não conseguir demonstrar que determinado vazamento dos dados tenha ocorrido exclusivamente em razão de incidente de segurança (ataque hacker), não é possível aplicar em seu favor a excludente de responsabilidade prevista no artigo 43, inciso III, da LGPD, que dispõe que “O controlador ou o operador somente não serão responsabilizados quando provarem que o dano decorreu de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros”.
Assim, diante da ausência de prova de que o vazamento decorreu exclusivamente de ataque hacker, a empresa de tratamento de dados foi responsabilizada, reforçando a necessidade de proteção e transparência no tratamento de dados pessoais, conforme preceituado pela LGPD. O fundamento principal foi a responsabilidade civil proativa.
1. Responsabilidade civil proativa
A responsabilidade civil tem desempenhado historicamente um papel essencial na reparação de danos. Contudo, com o avanço tecnológico e a complexidade das relações sociais e comerciais, tornou-se necessária a evolução para um modelo preventivo. A responsabilidade civil proativa emerge nesse contexto como um novo paradigma, impondo ao agente não apenas a obrigação de reparo, mas também o dever de adoção de medidas preventivas que minimizem a probabilidade de ocorrência do dano, seguindo uma tendência global na evolução do Direito Civil e da proteção dos indivíduos.
A teoria da “responsabilidade civil proativa” se baseia na necessidade de prevenção de danos, um conceito que ganha força no atual contexto tecnológico e social. Como destacado por Ulrich Beck (1992, p. 32), a sociedade contemporânea vive um estado permanente de risco, o que demanda uma revisão dos paradigmas da responsabilidade civil. O princípio da precaução, derivado do Direito Ambiental e amplamente aplicado no direito da responsabilidade civil, fundamenta a necessidade de medidas preventivas antes mesmo da materialização do dano.
Nos Estados Unidos, a doutrina da “product liability” impõe aos fabricantes o dever de evitar riscos previsíveis ao consumidor, sendo amplamente aplicada na jurisprudência. A decisão MacPherson v. Buick Motor Co., 217 N.Y. 382 (1916), estabeleceu a obrigação dos fabricantes de garantirem a segurança de seus produtos, mesmo quando não há relação contratual direta com o consumidor final. Mais recentemente, leis como o General Data Protection Regulation (GDPR) da União Europeia reforçam a obrigatoriedade de medidas preventivas na proteção de dados pessoais, punindo empresas que falham nesse aspecto.
Na União Europeia, a Diretiva 85/374/CEE impõe um regime rigoroso de responsabilidade objetiva para produtos defeituosos. A jurisprudência da Corte Europeia de Justiça, como no caso Boston Scientific Medizintechnik GmbH v. AOK Sachsen-Anhalt (C-503/13 e C-504/13, de 5 de março de 2015), reforça que a ausência de dano imediato não exime o fabricante de sua obrigação de prevenir riscos. Ademais, o conceito de “precautionary approach” é amplamente adotado em matérias de responsabilidade civil nos tribunais europeus.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 46) argumenta que “a função da responsabilidade civil não se resume à reparação, mas deve avançar para a prevenção como meio de assegurar o equilíbrio social e jurídico”. Nesse sentido, a responsabilidade civil proativa busca integrar o princípio da precaução como elemento essencial da teoria do dano.
Maria Celina Bodin de Moraes e João Quinelato (2020, p. 19) enfatizam que “a responsabilidade civil proativa é um dever de cuidado que se impõe a todos os agentes, independentemente de sua culpa, e que exige a adoção de medidas preventivas para evitar a ocorrência de danos”.
Sérgio Cavalieri Filho (2019, p. 315) destaca que “a responsabilidade civil moderna não pode ser meramente ressarcitória, mas deve incluir medidas de cautela para impedir o próprio surgimento do dano”.
E como já decidiu o STJ (Brasil, 2012), “a responsabilidade civil proativa é um dever de cuidado que se impõe a todos os agentes, e que exige a adoção de medidas preventivas para evitar a ocorrência de danos”.
2. Pressupostos da responsabilidade civil proativa
A responsabilidade civil proativa reside sobre alguns pressupostos principais, os quais são fundamentais para a prevenção de danos e para a segurança jurídica nas relações sociais e econômicas.
2.1. Dever de Prevenção
O primeiro dos pressupostos da responsabilidade civil proativa é o dever de prevenção. Esse dever impõe ao agente a obrigação de adotar medidas de segurança e boas práticas com o objetivo de evitar a ocorrência de danos. Em outras palavras, não basta apenas reparar um dano já ocorrido, mas sim evitar que ele aconteça. A doutrina aponta que essa abordagem se fundamenta no princípio da precaução, amplamente aplicado no direito ambiental e, cada vez mais, nos diversos ramos da responsabilidade civil. Como destaca Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 20), a prevenção deve ser entendida como um elemento essencial da responsabilidade civil moderna, pois protege os direitos dos indivíduos e garante maior segurança social.
Na jurisprudência, a responsabilidade preventiva é um fator essencial na proteção do consumidor e na regulamentação das relações empresariais. O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido essa obrigação em diversas decisões, especialmente no campo da proteção de dados pessoais, como se dá no aresto mencionado no preâmbulo deste artigo.
2.2. Previsibilidade do risco
Outro pressuposto essencial é a previsibilidade do risco. Esse elemento reforça que a responsabilidade civil proativa só pode ser aplicada quando há um risco previsível e identificável pelo agente. Portanto, se determinado agente atua em uma atividade que naturalmente envolve riscos, ele tem o dever de conhecê-los e adotar medidas para mitigá-los, mediante condutas mais seguras e responsáveis.
2.3. Dano potencial
O dano potencial é um dos pilares da responsabilidade civil proativa, pois a responsabilidade não depende da efetiva materialização do dano, mas sim da existência de um risco significativo de sua ocorrência. A prevenção se justifica mesmo quando o dano ainda não se concretizou. Maria Celina Bodin de Moraes (2020, p. 40) argumenta que esse pressuposto é fundamental, pois permite a adoção de medidas antecipadas, evitando prejuízos sociais e econômicos graves.
O STJ tem reconhecido essa perspectiva em vários precedentes, notadamente em matérias ambientais e de proteção do consumidor, onde a possibilidade de dano já é suficiente para justificar a adoção de medidas preventivas.
2.4. Dever de informação
Outro aspecto essencial é o dever de informação, que impõe aos agentes a obrigação de comunicar de maneira transparente e acessível os potenciais riscos de sua atividade. A transparência nas relações jurídicas é um princípio amplamente reconhecido no direito do consumidor, mas também se aplica a diversas outras áreas do direito civil.
Carlos Roberto Gonçalves (2021, p. 45) enfatiza que a informação adequada é essencial para que o destinatário do serviço ou produto possa adotar medidas de precaução, sendo essa uma obrigação do fornecedor ou prestador de serviço. O STJ tem julgado várias ações baseadas na ausência de informação adequada como um fator de responsabilidade civil.
2.5. Monitoramento contínuo
Por fim, o monitoramento contínuo é um aspecto essencial da responsabilidade civil proativa. Ele exige que o agente acompanhe suas atividades de forma sistemática para detectar falhas e adotar medidas corretivas antes que o dano ocorra. Esse conceito está intimamente ligado ao controle de qualidade e à gestão de riscos.
Anderson Schreiber (2018,p. 37) defende que o monitoramento contínuo deve ser parte da cultura organizacional de qualquer instituição que lide com riscos, pois permite respostas rápidas e eficazes a possíveis ameaças. A jurisprudência também tem evoluído nesse sentido, exigindo das empresas e instituições que mantenham um sistema permanente de avaliação e mitigação de riscos.
Dessa forma, a responsabilidade civil proativa se firma como um modelo essencial para garantir segurança e previsibilidade nas relações jurídicas, sendo um conceito fundamental na evolução do direito civil contemporâneo e, agora, utilizada como critério de fixação de responsabilidade civil no âmbito do tratamento indevido de dados pessoais.
Considerações finais
A responsabilidade civil proativa constitui um avanço expressivo na teoria da responsabilidade civil, refletindo a adaptação do Direito às transformações da sociedade contemporânea, especialmente no contexto da sociedade de risco, conforme delineado por Ulrich Beck. Trata-se de um modelo que transcende a função meramente reparatória da responsabilidade civil tradicional, incorporando um viés preventivo e mitigador de riscos, o que se mostra essencial diante dos desafios impostos pela era digital e pela crescente complexidade das relações sociais e econômicas.
O reconhecimento normativo e jurisprudencial da responsabilidade civil proativa decorre da necessidade de assegurar maior segurança jurídica e equilíbrio nas relações intersubjetivas, promovendo não apenas a reparação dos danos já concretizados, mas também a adoção de medidas eficazes para sua prevenção. Tal perspectiva está em consonância com a função social do Direito e com o princípio da boa-fé objetiva, amplamente aplicado nos contratos e nas relações obrigacionais, conforme previsto no artigo 422 do Código Civil brasileiro.
Além disso, o caráter preventivo da responsabilidade civil encontra respaldo em diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro. No campo do direito do consumidor, por exemplo, o artigo 8º do Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei nº 8.078 de 1990, estabelece a obrigação dos fornecedores de produtos e serviços de evitar riscos à saúde e à segurança dos consumidores. No âmbito ambiental, o princípio da precaução, consagrado no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, impõe a necessidade de ações preventivas para evitar danos irreversíveis ao meio ambiente.
A jurisprudência também vem consolidando essa tendência. O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a responsabilidade civil preventiva em diversos contextos, especialmente em matérias que envolvem danos ambientais, direitos dos consumidores e, agora, na proteção de dados pessoais, conforme o acórdão trazido na introdução deste artigo.
Dessa forma, a responsabilidade civil proativa materializa-se como um instrumento essencial para a modernização do Direito, promovendo a antecipação de condutas potencialmente lesivas e assegurando uma atuação mais eficaz do ordenamento jurídico na tutela dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, conforme previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. Trata-se, portanto, de um modelo que amplia o espectro de atuação da responsabilidade civil, harmonizando-se com as exigências da sociedade contemporânea e consolidando-se como um pilar fundamental para a construção de um sistema jurídico mais justo e equilibrado.
Referências
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