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A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL A PARTIR DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL A PARTIR DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Vivian Carla da Costa

 

SUMÁRIO :Introdução; 1 A responsabilidade civil pré-contratual no ordenamento civil; 2 À guisa de síntese; Referências.

 

INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 revolucionou o ordenamento jurídico brasileiro ao positivar diretrizes hermenêuticas para a legislação infraconstitucional, por meio de seus princípios. Especialmente no Direito Civil, se antes o Código de 1916 trazia ares essencialmente patrimonialistas aos institutos civis (obrigações, família, contratos), o Código Civil de 2002, se deixadas de lado as críticas relevantes acerca da sua dificuldade em superar as influências oitocentistas, elevou a importância do jurista, seja o juiz ou doutrinador, na aplicação do Direito e de sua constante renovação, ao prever, em seu texto, cláusulas gerais.

Não pretende, com esse artigo, exaurir tais cláusulas, tampouco suas possibilidades, mas tão somente tecer algumas notas acerca daquelas que permeiam os contratos nesse “novo” Direito Civil. Com inequívoca influência dos renomados Códigos Civis europeus (v.g., Código Napoleônico, de 1804, e BGB, de 1900), os contratos, no Direito Civil brasileiro, vigoraram, ao menos até a vigência do novo Codex, com a quase exclusiva finalidade patrimonial, fazendo irretratável lei entre as partes, conforme a máxima do pacta sunt servanda, bastando atender aos planos de existência, validade e eficácia.

No plano existencial, não se olvida que o contrato se classificava (e se classifica) como negócio jurídico desde que demonstrada a presença de todos os elementos estruturais (agente, objeto, forma e manifestação de vontade exteriorizada). A sua validade, no entanto, dependia (e ainda depende, conforme o art. 104 do CC/2002), da legitimidade das partes, da licitude do objeto e da previsão legislativa de sua forma (ou sua não proibição, admitindo os denominados “contratos inominados“). No plano da eficácia, por sua vez, como já dito, seus efeitos eram restritos aos contratantes.

Com a nova codificação, a abismal diferença entre elas consiste no plano da existência, em seu elemento estrutural manifestação de vontade, bem como no plano da eficácia, que ultrapassa o âmbito inter partes. Especialmente ao que diz respeito à manifestação de vontade, não se olvida que o Código Civil de 1916 já previa os vícios de vontade (ou defeitos) que, se comprovados, tinham o condão de anular o ato contratual. Com o CC/2002, tal manifestação, além de ser livre de vícios e manifesta expressão da autonomia da vontade, também ganhou norteadores, cláusulas gerais, como o dever de agir com probidade e boa-fé. Já, quanto à eficácia das relações contratuais, esta transcendeu os reflexos entre as partes ao estar previsto nesse novo Código a função social do contrato, limitadora da sua liberdade.

Fala-se, portanto, de dever de probidade, boa-fé (lê-se, boa-fé objetiva) e função social do contrato, sem que haja neste novel qualquer conceituação destinada a delineá-los. Propositalmente ou não, o legislador, ao prever dispositivos com alto grau de abstração, acaba por definir as diretrizes de interpretação das relações contratuais que, por grande parte da doutrina, são conhecidas como cláusulas gerais, passando ao jurista o papel de lê-los, interpretá-los e aplicá-los no caso concreto. De tais etapas, a crucial, por certo, é a interpretação, haja vista que não se pode admitir todo e qualquer ponto de vista, afinal, um dos primados do ordenamento jurídico é resguardar certa segurança jurídica.

Especialmente no aspecto contratual, como já transcrito, há, agora, a obrigação dos contratantes a guardarem, tanto na execução quanto na conclusão do contrato, os princípios de boa-fé e probidade, bem como atender à sua função social. No entanto, nada se fala acerca da etapa pré-contratual, que, no cotidiano, exige respaldo jurídico, haja vista que muito representa para relação jurídica que se pretende (ou pretendia) estabelecer, podendo, até, em casos de ruptura injustificada, causar danos aos pretensos contratantes, conforme demonstra a farta jurisprudência.

Nesse cenário, na ausência de resposta aos apelos fáticos, o Superior Tribunal de Justiça, em Informativo de Jurisprudência nº 517, admitiu a responsabilidade civil pré-contratual e a possibilidade de reparação de eventuais danos provenientes, a depender das peculiaridades do caso concreto. Os seus fundamentos encontram guarida no primado da confiança, oriundo do princípio da boa-fé, em que aqueles que pretendem contratar criam expectativas com o contrato que esperam celebrar e, a partir de um rompimento injustificado das negociações, pode causar prejuízos.

Contudo, admitir a existência de um instituto (responsabilidade pré-contratual) sem que esteja positivado na legislação, e ir além, admitindo a reparação civil, é um reflexo de um direito civil contemporâneo, interpretado e aplicado à luz da Constituição de 1988, em que os desdobramentos serão desenrolados adiante. Mas tal situação é um ponto tênue entre este novo norteador, boa-fé objetiva, e a autonomia privada, fundamento da liberdade contratual, que possibilita a desistência de celebrar um contrato, caso seja essa vontade de uma, ou ambas, as partes.

Portanto, há certa dificuldade em se traçar a hermenêutica dada nesse cenário de responsabilidade civil pré-contratual, em que, para identificar se ela se configura ou não, além de qual bem jurídico teria sido violado, apto a ensejar uma reparação civil, o aplicador do Direito se depara com a necessidade de um intenso exercício de interpretação, bem como com um confronto de princípios, constitucionais e infraconstitucionais. E é a partir desta problemática que busca este presente artigo tecer algumas notas.

 

1 A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL NO ORDENAMENTO CIVIL

A autonomia da vontade é um dos pilares do direito civil, com grande importância nas relações contratuais. Entretanto, diante de um novo paradigma, o do direito civil constitucional, é possível relativizá-la, se confrontada com princípios de outra ordem, tais como dignidade da pessoa humana e seus derivados. No mundo fático, vê-se essa relativização quando se fala de responsabilidade civil pré-contratual, haja vista que, na falta de sua positivação, sopesa-se a liberdade contratual e a boa-fé objetiva e, se constatado que a rompimento das negociações preliminares, ainda que não formalizada a relação jurídica contratual, violou a boa-fé (e seus deveres acessórios, como de lealdade e confiança) do pretenso contratante, com a quebra da “expectativa de contratar“, enseja-se a reparação civil18, pois a bona fides, para além de cláusula geral do ordenamento, é oriunda do princípio máximo constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CR/1988).

Contudo, essa leitura principiológica do direito civil ainda é relativamente recente, haja vista que os institutos civis ganham, a cada dia, novos entornos sob a luz constitucional e caminham para a resignificação de conceitos clássicos. Se, antes, a propriedade ostentava a posição de ponto fulcral do direito civil; agora, após a sua constitucionalização19, a dignidade da pessoa humana alcança tal patamar e passa a ser utilizada como diretriz interpretativa para todos os desdobramentos do âmbito civil, afinal “[…] o Direito Civil é também Direito Constitucional, e o Direito Constitucional também é Direito Civil“.

Nesse novo cenário, o processo de celebração de um contrato não mais se limita ao teor de suas cláusulas. Houve a flexibilização do pacta sunt servanda sob a ótica dos princípios da boa-fé objetiva e probidade, e o consequente reconhecimento dos seus efeitos nas fases pré e pós-contratual, seja pelo texto infraconstitucional ou pelos entendimentos jurisprudencial e doutrinário. Todavia, equivoca-se quem pensa que a celeuma já está solucionada, afinal, o que pode se entender por dever de probidade? E por boa-fé objetiva? Ainda, como constatar se houve, de fato, inobservância de tais deveres acessórios em um rompimento das tratativas contratuais ao ponto de se configurar a responsabilidade civil sem violar paralelamente o princípio da autonomia privada?

A responsabilidade civil pré-contratual, ainda que faça parte do processo formativo de um contrato, é regida pelos ditames da responsabilidade civil extracontratual, o que significa que, para se configurar o dever de indenizar, independente da natureza do dano, faz-se necessária a presença dos requisitos elementares: conduta ilícita, seja ela intencional ou culposa, o próprio dano e o consequente nexo de causalidade entre eles.

Portanto, o primeiro passo para identificar se se trata de um caso de responsabilidade civil pré-contratual é analisar a ilicitude do ato cometido pelo pretenso contratante, ou seja, verificar qual foi o bem jurídico violado. E, para isso, deve-se analisar como se deu o rompimento das tratativas contratuais: se aquele que desistiu de celebrar o contrato o fez de boa-fé, então não há que se falar em reparação civil.

É certo que não são todos os rompimentos que ensejam reparação. Se assim o fosse, o mundo contratual seria repleto de insegurança jurídica. Mas como identifica-los? De fato, ninguém é obrigado a contratar. É defeso à parte analisar o que está lhe sendo ofertado e optar se pretende prosseguir, ou não, com as negociações. No entanto, “[o]s contratos provocam uma específica eficácia geradora de vinculabilidade jurídica obrigacional às partes contratantes, ligadas por uma expectativa de confiança para manter o que pactuaram e tal qual pactuaram […]“.

Portanto, as situações em que há um rompimento injustificado da legítima expectativa em contratar resultam, conforme entendimento majoritário dos Tribunais, no dever de ressarcir os danos de natureza patrimonial, desde que sejam devidamente comprovados, a partir de uma interpretação extensiva do art. 422 do Código Civil, à luz dos princípios constitucionais norteadores, resguardando os deveres de probidade e boa-fé também às tratativas contratuais. Mas o que significa agir dessa forma?

Ao que concerne ao dever de probidade, “[…] entende-se a honestidade de proceder ou a maneira criteriosa de cumprir todos os deveres, que são atribuídos ou cometidos à pessoa“. Já, quanto à definição de boa-fé, cabe inicialmente elucidar que há duas modalidades de boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro – objetiva e subjetiva -, de modo que a distinção entre elas, ao se considerar sua importância no Direito, poderia ser objeto de outra pesquisa. Contudo, em suma, para fins deste artigo, limitar-se-á à seguinte distinção: enquanto que a boa-fé objetiva é vista como regra de conduta, a boa-fé subjetiva é fonte de interpretação da manifestação de vontade.

A boa-fé objetiva, portanto, é entendida como uma regra de conduta elementar, e especialmente no âmbito contratual, que deve reger as demais diretrizes que englobam o processo de celebração de um contrato. Nesse sentido, o dever de observá-la confere inovador caráter subjetivo aos contratos, haja vista que implica uma nova interpretação das cláusulas contratuais, que vai, muitas vezes, além do seu teor, conforme vetores constitucionais. À bem da verdade, “[…] a cláusula geral de boa-fé […] impõe-se como condicionadora do poder de autonomia privada do sujeito de direito“. E, a partir dela, surgem tantos outros deveres acessórios, tais como dever de confiança, informação e lealdade, que igualmente são esperados no comportamento daqueles que pretendem contratar, sob pena de responsabilização.

Todavia, como já alertado, a violação da boa-fé objetiva nas negociações pré-contratuais deve ser inequívoca para que, em um exercício hermenêutico de sopesamento, prevaleça sobre a autonomia privada e liberdade contratual. Mas, diante do caso concreto, como atribuir o dever de reparação à parte que demonstrou o interesse em negociar, mas mudou de ideia, haja vista que não está automaticamente vinculada a celebrar uma futura relação contratual?

Para encontrar tal resposta, cabe assumir, de início, que há, de fato, uma linha tênue entre a liberdade de contratar, limitada à função social do contrato, que afasta das negociações qualquer obrigatoriedade, e a boa-fé objetiva pré-contratual, que, paradoxalmente, confere certa vinculabilidade jurídica a essa etapa. Assim, visando facilitar o tema para o aplicador do Direito para que se possa perceber a sutileza, a doutrina tem feito importante distinção nesse momento pré-contratual entre quebra das tratativas negociais e recusa de contratar. Explica-se.

Quando se pretende celebrar um contrato, grosso modo, uma das partes oferece seu produto/serviço, enquanto a outra parte demonstra, ou não, interesse em adquiri-lo. Não se fala, aqui, da etapa da proposta/oferta e aceitação, mas de um momento inicial de manifestação de vontade, revestido de informalidade. Nesse contexto, há dois caminhos: ou se iniciam as negociações ou se recusa a possível contratação. A possibilidade de recusa é tida como um exercício regular do Direito, como manifesta representação da liberdade contratual, de modo que não há que se falar em reparação. As negociações, no entanto, não seguem o mesmo cristalino caminho.

A partir do momento em que os pretensos contratantes manifestam interesse em celebrar um contrato futuro e, assim, criam expectativas legítimas com a relação jurídica que se avizinha, uma eventual desistência pode gerar prejuízos, tanto de ordem material quanto moral. Retoma-se, no entanto, que, para que tais prejuízos sejam atribuídos à parte desistente que deverá arcar com a reparação, a ruptura das negociações deve ser de forma injustificada, desarrazoada, com evidente violação aos princípios da boa-fé e seus deveres anexos. Tal reparação, no entanto, deve ser de cunho exclusivamente pecuniário, haja vista que, mesmo que diante de conduta ilícita, nenhuma sanção pode ter a finalidade de forçar a celebração de um contrato.

Contudo, não se pode olvidar que tal rompimento também pode ocasionar danos lesivos à moral dos pretensos contratantes, mas que ficam à margem de apreciação do Poder Judiciário que, em um cenário atual, ainda se mostra reticente às mudanças de paradigmas das instituições de direito privado.

A recente doutrina, em contrapartida, caminha a passos largos, haja vista que, a partir de uma leitura constitucional da responsabilidade civil, admitiu, para além da responsabilidade civil pré-contratual por danos materiais, sem maiores delongas, a também reparação do dano moral, muito embora ainda permaneçam dúvidas quanto à sua identificação até à sua extensão. O Código Civil é claro ao dispor, em seu art. 944, que “[a] indenização mede-se pela extensão do dano“, mas não discrimina quais são os danos que se refere, deixando à doutrina e à jurisprudência o trabalho de elaboração de critérios de avaliação e quantificação, afinal, é preciso garantir um certo grau de padronização para resguardar a segurança jurídica. Quanto aos danos materiais, estes não exigem enorme dispêndio, pois sua comprovação depende de robusto acervo probatório quanto aos eventuais desembolsos realizados. O mesmo não acontece com o dano moral, pois não é visivelmente demonstrável devido à sua subjetividade, de modo que precisa de parâmetros objetivos para quantificá-lo, que, por sua vez, devem levar em consideração a “[…] natureza, gravidade e repercussão da ofensa na esfera jurídica da vítima”.

Teoricamente, esse raciocínio parece lógico e facilmente aplicável às lides que chegam aos Tribunais. Contudo, especialmente ao que toca o dano moral na responsabilidade civil pré-contratual, a jurisprudência ainda é receosa, pois admiti-lo representa uma nova roupagem do Direito, que vai além do texto legal e que aceita os princípios constitucionais, sejam eles explícitos ou implícitos, como vetores de interpretação e fundamento jurídico. Inobstante o direito civil-constitucional ser uma realidade, ainda se percebe certa resistência dos Tribunais, especialmente do STJ, tido como Tribunal moderador, em romper paradigmas historicamente patrimonialistas a partir de uma nova leitura à luz constitucional.

 

2 À GUISA DE SÍNTESE

O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a admissão da responsabilidade civil pré-contratual no ordenamento civil, mesmo sem a sua previsão expressa, a partir da leitura constitucional da responsabilidade civil e dos contratos em conjunto com as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e dever de probidade, em que se tem como ponto de partida o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Após o processo de constitucionalização, o direito civil se imiscuiu com o direito constitucional e, se antes a autonomia da vontade gerenciava as relações de direito privado, agora ela é relativizada, se confrontada com uma violação da dignidade da pessoa humana e seus derivados. Especialmente na responsabilidade civil pré-contratual, quando se depara no caso concreto com um rompimento das tratativas negociais sem qualquer justificativa, rompendo a legítima expectativa de contratar de um do pretenso contratante, há um flagrante conflito de princípios, em que a liberdade contratual, oriunda da autonomia da vontade, colide com a boa-fé objetiva.

Entretanto, a predominância da boa-fé objetiva não é automática e não criteriosa, afinal, os institutos patrimoniais assumem papel de distinta importância no ordenamento jurídico e, também, no cenário político-econômico, e não devem serem colocados à deriva sempre, o que exige um papel fundamental do aplicador do Direito ao analisar minuciosamente o caso concreto para verificar se a desistência de celebrar o contrato de fato se deu de forma injustificada e desarrazoada, ao ponto de quebrar abruptamente a expectativa de se contratar (fruto da boa-fé objetiva).

Uma vez diante desse cenário, a responsabilidade civil deve ser invocada, pois, afinal, aquele que comete um ato ilícito, in casu, rompimento injustificado das negociações contratuais, deve ser obrigado a indenizar, sejam os danos de ordem material ou moral. Essa análise, no entanto, exige um exercício hermenêutico e do aplicador do Direito, que deve buscar, nas peculiaridades do caso concreto, elementos que apontem a violação à boa-fé, à lealdade, à confiança, à informação e os consequentes danos sofridos. Caso não os encontre, afastará a reparação civil. Em contrapartida, se os verificar, então, deve quantificá-los para fins de indenização. Se se tratar de danos materiais, basta se ater aos comprovantes dos desembolsos destinados a comprovar os prejuízos. Se forem de natureza moral, deve, então, atentar-se às evidências narradas e, tendo como norte os critérios balizados instituídos pelo STJ, bem como de outras fontes do Direito, mensurá-los. O que não pode é deixá-los à margem de reparação.

 

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