RKL Escritório de Advocacia

RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONJUGALIDADE E DE FILIAÇÃO – ABANDONO MATERIAL E IMATERIAL (“ABANDONO AFETIVO”) E DANO MORAL

RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONJUGALIDADE E DE FILIAÇÃO – ABANDONO MATERIAL E IMATERIAL (“ABANDONO AFETIVO“) E DANO MORAL 

Joel Dias Figueira Jr.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 1.1 A Evolução do Modelo Familiar; 1.2 Direitos e Deveres Conjugais nos Códigos de 1916 e de 2002. 2 A Responsabilidade Civil em Direito de Família; 2.1 A Quebra da Promessa de Casamento; 2.2 A Responsabilidade Civil nas Relações de Conjugalidade; 2.3 Abandono Material e Imaterial dos Filhos e Dano Moral; 2.3.1 Abandono Material e Imaterial – Descumprimento dos Deveres Decorrentes do Poder Familiar; 2.3.2 Da Responsabilidade Civil em Demandas desse Jaez; 2.3.3 Da Prescrição. 3 Conclusão.

                                  

1 Introdução          

1.1 A Evolução do Modelo Familiar    

Os registros históricos acerca da evolução da família ocidental apontam para a predominância do modelo patriarcal, sendo a família tradicionalmente composta por pai, mãe, filhos, genros, netos, centrada na figura masculina e no consequente exercício do pátrio poder, valendo lembrar que, no Código de 1916, somente na ausência do pai era possível a mulher exercer o poder familiar, consoante disposição expressa contida no art. 380, parágrafo único, do diploma revogado [1].

Com o advento do Decreto-Lei nº 5.213, de 1943 [2], a exclusividade do exercício do pátrio poder pela figura paterna adquire nova roupagem, na exata medida em que permitiu [3], tanto ao pater quanto à mater, a titularidade do poder familiar, mantendo-se o varão, todavia, como chefe da família.

Lembra-nos Caio Mário da Silva Pereira que “o instituto clássico do pátrio poder passa por numerosas transformações que lhe alteram a caracterização jurídica, modificam o seu fundamento e a sua finalidade, que é deslocada para uma concepção mais moderna de ‘poder de proteção’, substitutivo da potestas romana, que traduzia subordinação autocrática e enfeixamento de direitos parentais[4].

Com o passar dos anos, diante das profundas mudanças culturais e jurídicas vivenciadas pela coletividade, a família adotou um modelo bem diverso do precedente, configurada com a redução numérica de seus membros e com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, mantendo-se, contudo, como instituição sólida, no qual o casamento, até pouco tempo, era indissolúvel, com o intuito (velado) de assegurar a mantença do poderio econômico familiar, tendo em vista que o divórcio resultaria na ruptura do patrimônio consolidado na constância do casamento.

O novo modelo familiar absorvido pela sociedade contemporânea passou a ser recepcionado pela Carta de 1988, com feições inspiradas nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana [5], cujos contornos são delineados pelo bem-estar, pelo amor e pela felicidade dos integrantes da célula familiar, colocando-se, por conseguinte, pá de cal no vetusto e ultrapassado modelo patriarcal.

Outro não foi o mote que conduziu a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento proferido no Recurso Extraordinário 898.060/SP, com repercussão geral reconhecida, em voto condutor da lavra do Ministro Luiz Fux, no que concerne aos paradigmas do casamento, ao desenvolvimento das famílias e à paternidade responsável, em releitura por meio da Constituição Federal, com enfoque destacado para o princípio da dignidade da pessoa humana, donde exsurgem a busca e a realização da felicidade no espectro familiar. Assim, escreve o eminente Relator: “(…) 5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana. 6. O direito à busca da felicidade, implícito no art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares (…)“.

Nesse contexto, o conceito de família passa a ser ampliado, passando a incorporar institutos como: união estável ou concubinato puro (art. 226, § 3º, da CF [6] e art. 1.723 do CC/02 [7]), podendo ser composta por indivíduos de sexos opostos ou por pessoas do mesmo sexo (união homoafetiva – reconhecida pelo STF – ADIn 4.277 e a ADPF 132); família parental (formada por parentes consanguíneos, p. ex., duas irmãs que residem juntas e movem esforços para a formação de patrimônio comum); família monoparental (mãe ou pai solteiro e a prole); família pluriparental [8] (decorrente de vínculos estabelecidos entre pessoas que desempenhando as funções parentais).

Em síntese, nos dias atuais a chancela do direito não mais se restringe à chamada “família casamentária“, mas à entidade familiar, assim considerada como a união entre pessoas que formam laços de afetividade e somam esforços em benefício comum, notadamente em prol da entidade familiar.

1.2 Direitos e Deveres Conjugais nos Códigos de 1916 e de 2002      

É assente que o Código Civil de 1916 foi arquitetado em período em que a sociedade era hierarquizada e patriarcal, colocando em destaque a supremacia do homem como o “chefe da família“, enquanto a esposa era tida como relativamente incapaz, pois o próprio ordenamento jurídico civil relegava à mulher a posição de dependência em relação ao marido, somando-se a indissolubilidade do casamento.

Nessa toada, foram consignados na lei substantiva civil os direitos e os deveres advindos do matrimônio, tais como a fidelidade recíproca, vida em comum no domicílio conjugal, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos (art. 231 do CC/1916 [9]), mantidos pelo Código Civil de 2002 com o acréscimo do respeito e da consideração mútuos (art. 1.566 [10]).

De outro norte, a violação dos deveres conjugais (CC/02, art. 1.566) gerava resultados jurídicos distintos daqueles sentidos nos dias atuais, nos seguintes aspectos:

Vida em comum no domicílio conjugal – o “domicílio conjugal“, nos termos do art. 233, III, do CC/1916, “é o lugar escolhido pelo marido para seu domicílio e de sua família“, sem que a mulher tivesse interferência decisiva na escolha do novo lar, em razão de ser o homem o provedor da família, diferentemente da regra trazida pelo art. 1.569 do Código Civil de 2002 [11], ao estabelecer que, diante da isonomia entre homem e mulher, ambos contribuem para a mantença do lar conjugal e a escolha do domicílio comum passa a ser prerrogativa tanto do marido quanto da esposa.

Sob a égide do CC/1916, eram causas de cessação do dever de vida comum: a) o não oferecimento por parte do marido à esposa do necessário para suprir suas necessidades materiais e de um lar próprio e condigno; b) se qualquer dos cônjuges levasse uma vida leviana ou abandonasse o lar sem justo motivo; c) se a esposa tivesse que residir em um lar conjugal juntamente com a família do marido, ou, ainda, se tivesse sofrido ofensas cometidas por parte dos familiares do esposo; d) se a presença de terceiros estranhos à relação conjugal ferisse a dignidade da esposa, hipótese em que a mulher retorna ao seio familiar até que os ditos sujeitos se ausentassem do domicílio conjugal, cumprindo ao marido pagar à esposa pensão mensal até que voltasse para o lar.

Por outro lado, comprovado o abandono do domicílio comum do casal por qualquer dos cônjuges, facultava-se o ajuizamento da ação de desquite; caso a mulher abandonasse o lar, sem justo motivo, cessaria o dever do marido de prover-lhe o sustento, nos termos do art. 234 do CC/1916 [12], autorizando-se, ainda, o sequestro temporário de parte dos rendimentos particulares da esposa [13].

Fidelidade recíproca – a violação do dever de fidelidade conjugal poderia estar consubstanciada tanto no rompimento da lealdade em seu aspecto moral quanto em sua forma considerada mais gravosa pelo Código Civil de 1916, qual seja o adultério, instituto então amplamente debatido nas esferas civil e criminal, inserido no ordenamento jurídico penal pátrio pelo Código Criminal de 1.830 (arts. 250 a 253)[14], que, por sua vez, imputava apenas à mulher o crime de adultério, enquanto o cônjuge varão seria enquadrado no aludido dispositivo legal somente se reiterasse a conduta de traição e, ainda, se fosse o provedor do sustento da amásia (não sendo aplicável dita penalidade caso o marido tivesse apenas um caso passageiro), o que demonstra a disparidade de tratamento dispensado ao homem e à mulher daqueles tempos, dentre tantos outros exemplos emblemáticos de discriminação.

O Código Penal de 1890 manteve a criminalização do adultério (arts. 279 a 281), o que deu ensejo a inúmeras críticas por parte de doutrinadores que consideravam a pena sugerida desprovida de qualquer aplicabilidade prática, especialmente em razão dos usos e costumes da época.

Na mesma linha, o Código Penal de 1940 seguiu com a tipificação do crime de adultério entre cônjuges (art. 240 [15]), trazendo, contudo, inovação em relação aos sujeitos do delito, para incluir também o esposo no rol de agentes, extirpando a desigualdade no trato da infidelidade.

Com a escassez cada vez maior da deflagração de ação penal por crime de adultério, o ilícito terminou por cair em desuso, o que deu causa à revogação do tipo penal em 2005, com a edição da Lei nº 11.106/05 (art. 5º).

Desde então, as consequências da prática de adultério ficaram restritas ao âmbito civil no que concerne à quebra do dever conjugal de fidelidade recíproca, dando azo ao fim da relação do casal e, em casos específicos (quiçá excepcionais), à responsabilidade civil em face de abalo anímico sofrido pela vítima do ato.

Mútua assistência – trata-se de dever recíproco de ajuda e cuidado de ordem moral e material e, quando violado, sempre importou em possibilidade de desfazimento da união, no Código de 1916, ao pedido de desquite.

Por outro lado, o descumprimento do dever de prestar auxílio econômico ao cônjuge em estado de necessidade era materializado, no mais das vezes, em pagamento de pensão alimentícia ao consorte, que, por não encontrar previsão específica no Código Civil de 1916, estava respaldada em regras atinentes aos alimentos devidos entre parentes (arts. 396 a 405), tendo em vista que, à época, considerava-se que a obrigação alimentar estava intrinsecamente ligada ao dever de mútua assistência, sendo devida por um dos cônjuges ao outro em decorrência do fim do matrimônio.

Sustento, guarda e educação dos filhos – o Código Civil de 1916, em seu art. 384 [16], dispunha que competia aos pais a responsabilidade de guarda, criação e educação de seus filhos. Nada obstante, a doutrina pátria (a exemplo de Pontes de Miranda, Clóvis Beviláqua e J. M. de Carvalho Santos) era categórica ao afirmar que, a despeito de constar no ordenamento Civil de 1916 dita responsabilidade como dever comum a ambos os cônjuges, o direito de criar, educar e guardar os filhos, como atributo do pátrio poder, competia ao pai e, somente em sua falta, à mãe, mas o dever era de ambos [17].

No que diz respeito ao dever de sustento da prole – que abrangia o dever de prestar alimentos latu sensu (moradia, assistência médica e educacional, etc.) -, ainda que sobreviesse a suspensão ou, até mesmo, a perda do pátrio poder, subsistiria a obrigação dos genitores de sustento dos filhos, de forma que o seu descumprimento poderia ensejar a suspensão do pátrio poder (art. 394 [18]) ou a sua perda (art. 395, II [19]) e, ainda, o direito da genitora de pleitear ao genitor a pensão alimentícia necessária para viver com os filhos sem a presença do cônjuge inadimplente.

Acerca do dever de guarda e cuidado da prole, cumpria aos pais, de igual forma (poder-dever), ter os filhos em sua companhia, o que não obstava que pudessem os genitores, caso necessário, encarregar terceiros do aludido dever, a título revogável e provisório.

Ademais disso, os atos ilícitos praticados pelos filhos menores sob a guarda e companhia dos genitores seriam a estes imputados (art. 1.521, inciso I, do CC/1916 [20]). Registre-se, contudo, que não era facultado aos cônjuges eximir-se do dever em comento, sujeitando-se os pais, em caso de quebra da obrigação de guarda e cuidado de seus filhos, às responsabilidades previstas no ordenamento civil e penal da época.

Respeito e consideração mútuos – dever recíproco a ser observado entre o casal, inserido no ordenamento jurídico com o advento do CC/02, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, na exata medida em que o respeito e a consideração recíproca são fortes alicerces de um relacionamento profícuo, inerente ao sentimento supremo que une e entrelaça os seres humanos – o amor.

Em arremate, observa-se que a ruptura com os conceitos políticos, sociais e culturais relevantes do passado causou enormes impactos na sociedade contemporânea, refletindo diretamente no regramento jurídico pátrio, tendo como divisor de águas a edição da Carta de 1988 (art. 229 [21]), que, dentre outras fundamentais mudanças, assegurou a ambos os genitores o exercício igualitário do poder familiar (não mais denominado de “pátrio poder“), pondo termo ao tratamento preconceituoso dado à cônjuge no regramento anterior, entendimento este incorporando também ao Estatuto da Criança e do Adolescente [22] e no Código de 2002 (art. 1.631 [23]) e, o que é mais importante, erigindo o fundamental instituto da família ao patamar de regramento constitucional geral e inserto no sobreprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III, c/c os arts. 226 e ss.).

Essa nova perspectiva social, política e jurídica do direito de família traz consigo efeitos no âmbito da responsabilidade civil que, há pouco tempo, seriam impensáveis, pois sequer versavam sobre essa matéria, diferentemente de alguns sistemas alienígenas, sendo que, paulatinamente, as regras gerais de ressarcimento do direito comum (CC/1916, art. 159; CC/02, art. 186) atinem aos danos e aos prejuízos sofridos em face de relação de conjugalidade e filiação [24].

2 A Responsabilidade Civil em Direito de Família  

O tema atinente à responsabilidade civil em direito de família é vasto e complexo, pois açambarca conflitos atinentes à quebra dos deveres da união entre casais, deveres dos pais em relação aos filhos e destes últimos em relação àqueles, além de tantas outras matérias correlatas. E mais: o tema em exame não raramente encontra aplicabilidade, inclusive, em relações entre casais antecedentes à união e formação de família, notadamente a chamada quebra da promessa de casamento, com os seus possíveis consectários de ordem material e imaterial.

2.1 A Quebra da Promessa de Casamento   

Antes mesmo da formação da família, em qualquer de suas modalidades, a ruptura ou o desfazimento de relação afetiva entre um casal pode dar ensejo à responsabilidade civil, circunstância essa que não se apresenta como novidade no direito brasileiro.

A promessa de casamento, cujo termo advém do direito romano, no passado recebia o nome de esponsais – período preparatório para o casamento -, equiparável nos dias de hoje ao noivado, formalizado de maneira verbal pelo sponsor (futuro esposo), que se comprometia com a sponsa (sua futura mulher). Dita promessa era realizada perante os pais dos nubentes e amigos, sendo que, para a concessão do compromisso, era necessária a total aceitação dos genitores do casal, consumada através da entrega do anel esponsalício pelo noivo à noiva.

Daquele momento em diante, o compromisso entre os noivos era reconhecido perante a sociedade, de forma que o descumprimento do acordo matrimonial autorizaria à mulher agravada em sua honra em razão da promessa de casamento não concretizado o direito à concessão do dote reparatório pelo dano sofrido, nos termos do art. 1.548 do Código Civil de 1916 [25].

A lei substantiva de 2002 não dispôs acerca dos esponsais, gerando dúvidas sobre a natureza jurídica da promessa de casamento e se essa relação poderia ser classificada como um “contrato“. Contudo, o noivado nada mais é do que o compromisso mútuo assumido pelos consortes de, em futuro breve, formalizarem o casamento civil, circunstância de pleno conhecimento da sociedade local e, via de regra, formalizado com o assentimento dos genitores dos noivos.

Como se trata de um compromisso fundado no amor recíproco, e não em ditames de ordem civil contratual, o seu descumprimento por qualquer das partes, em linha de princípio, não gera efeitos jurídicos a serem suportados pelo “inadimplente“, mas tão somente de ordem afetiva, assim como não gera obrigação de fazer entre as partes.

Nessa toada, Sílvio de Salvo Venosa reconhece a inexistência de cunho patrimonial na promessa de casamento, excluindo-a acertadamente do campo obrigacional. Leciona o festejado civilista que, “em se tratando de ato pessoal de direito de família, não é possível a execução específica da promessa de emissão de vontade e adesão à instituição do matrimônio, porque essa ideia conflita com a liberdade individual[26]. Baseia-se Venosa no direito à liberdade que cada indivíduo possui de manter um relacionamento afetivo com quem preferir, sem que o fim do amor ou a própria prerrogativa da escolha – ainda que tardia, diante da existência de laços afetivos já consolidados com o outro – deem causa à reparação pecuniária pelo término do compromisso assumido a título de “noivado“.

Por outro lado, dependendo das causas e dos efeitos gerados com o rompimento do vínculo de noivado ou a forma com que os fatos desdobram-se, pode gerar responsabilidade civil desde que comprovados os seus requisitos legais no caso concreto, cujo dano poderá ser de natureza material ou imaterial.

Segundo Washington de Barros Monteiro, “mesmo que não se admita a natureza pré-contratual ou de contrato preliminar dos esponsais, já que, nesse caso, o contrato principal seria o casamento, possibilitando-se a exigibilidade de seu cumprimento, o que fere o princípio da livre-manifestação de vontade dos nubentes, o rompimento injustificado dos esponsais, presentes certos requisitos, configura ato ilícito e gera o direito do ofendido à reparação dos danos, com base na responsabilidade extracontratual[27].

Destarte, a existência de prova inequívoca do prejuízo material ou moral advindo da ruptura ruinosa ou repentina do noivado poderá ensejar a reparação pecuniária, em atenção aos princípios gerais da responsabilidade civil subjetiva insculpidos no art. 186 do diploma civil de 2002, uma vez que “a responsabilidade por ato próprio se justifica no próprio princípio informador da teoria da reparação, pois se alguém, por sua ação pessoal, infringindo dever legal ou social, prejudica terceiro, é curial que deva reparar o prejuízo[28].

Acerca dos requisitos ensejadores da responsabilidade civil em face do desfazimento de noivado, leciona Washington de Barros Monteiro: “Para isso, em suma, é necessária a reunião dos seguintes requisitos: a) promessa de casamento feita livremente pelos noivos; b) recusa de cumprir a promessa esponsalícia, expressa ou tácita, como ter contraído novo noivado ou o noivo viajar por longo tempo sem dar notícias; c) recusa injustificada – seria justificada a recusa, por exemplo, diante do mau comportamento do noivo, como a prática de infidelidade, sevícia ou injúria grave, a falta de honestidade, a aversão ao trabalho, ou diante de doença grave do noivo; d) dano material, decorrente, por exemplo, do preparo de documentos, da cerimônia, da viagem de núpcias, da aquisição de bem imóvel destinado à futura moradia, da demissão de emprego ou do fechamento de negócio com vistas ao futuro casamento; e) dano moral, oriundo da ofensa aos direitos da personalidade do noivo, especialmente a honra, tanto em seu sentido de autoestima como de consideração social, que usualmente é qualificado como a dor moral, o sofrimento, que decorre do rompimento realizado às vésperas do casamento ou acompanhado de declarações ofensivas[29].

Nessa linha de raciocínio, denota-se que o fato de duas pessoas envolvidas afetivamente optarem por contrair noivado não gera, por si só, a obrigação de contrair matrimônio, tendo em vista que o noivado se presta, acima de tudo, para dar ciência à família do casal e à sociedade acerca dos sérios propósitos que envolvem os nubentes.

Em síntese, dependendo da hipótese em concreto, o rompimento de noivado pode, ou não, gerar para o noivo prejudicado direito à reparação pecuniária por perdas e danos, ou, ainda, compensação pecuniária por dano moral.

2.2 A Responsabilidade Civil nas Relações de Conjugalidade

A premissa maior acerca do tema proposto repousa nas regras atinentes à responsabilidade civil insculpida no art. 186 do CC, somada à obrigação de reparar o dano causado decorrente de ilícito civil (art. 927), se preenchidos os requisitos, no caso concreto, diante do caráter genérico da norma, motivo pelo qual a sua aplicação encontra igualmente terra fértil em sede de direito de família e, em particular, nas relações de conjugalidade em suas formas multifacetadas.

Há muito a matéria encontra-se pacificada na doutrina e na jurisprudência no sentido de que as regras atinentes à responsabilidade civil (art. 186 c/c o art. 187) aplicam-se às relações de família; todavia, com o advento da Carta de 1988 e do Código de 2002, somados às permanentes e profundas mudanças sociais, notadamente nas relações de família, chanceladas pelo final do século passado e início do novo milênio, a doutrina e a jurisprudência passaram a refletir esses novos anseios das pessoas inseridas no mundo contemporâneo, reforçando e ampliando o espectro de incidência dessas regras e princípios.

A Carta Magna dispõe sobre o tema em voga tanto em cláusula geral de proteção à dignidade humana (art. 1º, III) como também no art. 5º, caput, inciso X e § 2º, que tutelam a inviolabilidade dos direitos da personalidade, do direito à indenização pelo abalo moral e patrimonial sofrido em razão da violação de direitos, e, em particular, no art. 226, que dispõe sobre a família.

Inúmeras, portanto, são as facetas que se desdobram no plano factual atinentes a ilícitos civis em sede de direito de família, seja durante a permanência do vínculo, seja em momentos antecedentes ou sucessivos à ruptura da relação entre os casais, não sendo possível em curto espaço de tempo, em modesta conferência, abordar cada uma delas, valendo mencionar, en passant, as que mais se destacam: o abandono material e moral da prole, a negativa em prestar alimentos (espécie de abandono material), as ofensas morais e físicas entre cônjuges e companheiros, as injúrias graves, a transmissão e o contágio de doenças graves, o perecimento, extinção ou ocultação dolosa de bens a partilhar, a negativa dos filhos maiores em prestar assistência aos pais idosos, etc.

Nesse leque de temas palpitantes, escolhemos um para analisarmos com mais vagar, qual seja o abandono material e moral de filho por parte de seus genitores, tendo-se como ponto de partida para reflexão os deveres atinentes ao poder familiar, que, por sua vez, tem como fundamento valor universal transcendente à norma jurídica – o amor.

2.3 Abandono Material e Imaterial dos Filhos e Dano Moral                               

2.3.1 Abandono Material e Imaterial – Descumprimento dos Deveres Decorrentes do Poder Familiar            

Como o amor não encontra previsão normativa (felizmente!), é lógica consequente que a sua ausência ou término, por si só, é insuscetível de causar “dano” capaz de enquadrar-se nos conceitos do direito civil e, portanto, impossível de gerar responsabilidade civil; em outros termos, amar, não amar ou deixar de amar não é um dever legal ou uma obrigação civil.

Aliás, amor é puro sentir que se resume numa palavra de apenas quatro letras, que, curiosamente, traz em seu bojo a expressão viva dos mais elevados sentimentos da espécie humana, tais como respeito, admiração, valorização, dignidade, afeto, cumplicidade, amizade, compreensão, proteção, apoio, cuidado, carinho, etc.

O amor não é sólido, não é líquido e não é gasoso, portanto, matéria não é; o amor apresenta-se em estado que transcende a matéria, não tem tempo nem lugar, não tem hora de chegar nem momento de partir; é pura energia matizada no mais elevado e sublime sentimento humano, cujos efeitos são percebidos por intermédio de ações que se revelam em manifestações ou comportamentos positivos para com os nossos semelhantes, a começar pelas atitudes do cotidiano no núcleo familiar.

O denominado por boa parcela da doutrina e da jurisprudência de “abandono afetivo” da prole (expressão inadequada e de duvidosa precisão terminológica jurídica) nada mais é do que a atitude omissiva dos genitores no cumprimento dos deveres de natureza moral, sentimental e não rara e simultaneamente também de ordem material, decorrentes do poder familiar legalmente estabelecido, dentre os quais se destacam os de prestar assistência (física, moral e educacional), indispensáveis na formação da criança e do adolescente.

Vale assinalar que, dentre os deveres decorrentes do exercício do poder familiar, compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação e tê-los em sua companhia e guarda (CC, art. 1.634, I e II), ou, em outras palavras, incumbe aos pais o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores (ECA, art. 22).

Mister acrescentar ainda, porquanto mais relevante, o sobredireito da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), que, em sede de direito de família, assim considerado o complexo normativo e principiológico que orienta e rege a milenar célula-mãe da sociedade (entidade basilar da sociedade – CF, art. 226, caput), imbrica com a paternidade responsável, donde exsurge o dever da própria família (em especial dos pais) de “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (CF, art. 227, caput).

Para a análise do tema proposto, propõe-se trabalhar com a hipótese de não reconhecimento espontâneo da paternidade, com destaque para questões controvertidas: a) o abandono afetivo e material; b) a data da configuração do ilícito propriamente dito, para servir de norte para a quantificação da compensação pecuniária por dano moral e a incidência de juros; c) a quantificação para fins de estabelecer-se a compensação pecuniária objeto da condenação; e, por último, d) a prescrição.

2.3.2 Da Responsabilidade Civil em Demandas desse Jaez      

Já expusemos precedentemente que, diante da inexistência de norma específica regulamentadora da responsabilidade civil em questões atinentes ao direito de família, aplicam-se para as hipóteses desse jaez as regras gerais norteadoras da matéria, seja pelo prisma constitucional (CF, art. 1º, III) ou civil (CC, art. 186).

Antes, porém, como bem salienta Sérgio Cavalieri Filho, “não é demais lembrar que o conceito de ato ilícito, tal como concebido pelos clássicos, tornou-se insuficiente até mesmo para a configuração da responsabilidade subjetiva. Fixado o conceito de culpa como erro de conduta – observa Allvino Lima -, aferido pelo proceder do homem prudente e imputável moralmente, verificamos que as necessidades sociais arrastaram os doutrinadores e a jurisprudência dos Tribunais a uma concepção mais ampla de culpa, dentro da qual se enfeixassem todos os fatos da vida real causadores de danos, cuja reparação se impunha com justiça, e que escapavam à noção restrita e acanhada da culpa como omissão de diligência imputável moralmente (Culpa e risco, p. 108)[30].

Nessa senda, o cometimento de ato ilícito pressupõe a prática de ação ou de omissão voluntária de qualquer dos genitores em relação aos filhos que, de maneira culposa, viola direito e causa à prole danos de ordem moral ou material (nexo causal).

Passemos, então, à análise dos elementos ou requisitos integrantes da responsabilidade civil [31] para as hipóteses de abandono material ou moral dos filhos por parte de seus genitores, consubstanciada na quebra dos deveres ínsitos ao poder familiar.

Registre-se, por oportuno, que a matéria é praticamente recente nos pretórios brasileiros, a começar pela Corte de Cassação, que somente a partir de 2004 [32] passou a ser desafiada a manifestar-se a respeito do tema, notadamente no que concerne ao abandono moral ou afetivo (dano imaterial), segundo extrai-se do voto do Ministro Fernando Gonçalves (REsp 757.411/MG, j. 29.11.05): “a questão da indenização por abandono moral é nova no direito brasileiro. Há notícias de três ações envolvendo o tema, uma do Rio Grande do Sul, outra de São Paulo e a presente, oriunda de Minas Gerais, a primeira a chegar ao conhecimento desta Corte[33].

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça começou a formar-se com o entendimento resistente (ao menos não unânime) à compensação pecuniária por danos imateriais em virtude de abandono moral (afetivo), negando expressamente a aplicabilidade do art. 159 do CC/1916 em conflitos dessa natureza [34].

Da ação ou omissão voluntária: primeiramente, tem-se como certo que a convivência familiar plena, saudável e amorosa manifesta-se no ordenamento pátrio como direito fundamental da criança e do adolescente, compreendendo o dever dos pais de prestar afeto, carinho, atenção e orientação aos filhos, além de assistência material.

Por conseguinte, tratando-se de abandono (material ou moral), a omissão voluntária dos genitores reside na negligência contínua e permanente em face de seus filhos, na incúria, no descaso, na renúncia aos deveres fundamentais atinentes ao poder familiar que tão bem aparecem delineados na Constituição Federal (paternidade responsável), no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente, consubstanciados na criação, educação, guarda, companhia, sustento, saúde e, portanto, em amor e felicidade, como bens de valor incomensurável chancelados pelo direito à dignidade da pessoa humana.

Por conseguinte, atos omissivos dessa gravidade, quando perpetrados de maneira contínua e ininterrupta, acarretam para os genitores que detêm o poder familiar a respectiva perda por abandono, nos termos do disposto no art. 1.638, II, do CC, sem prejuízo, contudo, da verificação de danos materiais ou morais que esses atos tenham causado aos filhos.

Da culpa: nesses casos, a culpa apresenta-se na modalidade de negligência grave (grau máximo de negligência), ao ponto de classificar-se como abandono da prole.

Os atos de exteriorização do abandono manifestam-se pelo silêncio, pela desídia, pela ausência, pelo desleixo, pelo descaso, em síntese, pela omissão em sentido mais amplo da expressão, de maneira a significar o abandono dos genitores em relação ao filho (reconhecido ou se não reconhecido, mas de consabida paternidade), representativo reprovável da pequenez moral e espiritual do ser humano.

A negligência, nos dizeres de José de Aguiar e Silva, define-se como “omissão daquilo que razoavelmente se faz, ajustadas as condições emergentes às considerações que regem a conduta normal dos negócios humanos ou a inobservância das normas que nos ordenam a operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento[35]. A lição amolda-se como uma luva à hipótese de abandono material e moral do filho pelo genitor, ou seja, negligência, omissão dos deveres fundamentais decorrentes do poder familiar.

Da violação de direitos: o abandono material ou imaterial (moral, afetivo) da prole é tão grave que representa, como já dissemos, nada menos do que a inobservância ao macroprincípio que representa um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito – a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III, c/c o art. 226) – e, no plano infraconstitucional, aos deveres de ordem familiar estabelecidos no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ampla assistência e proteção).

Importante frisar que o elemento capaz de ensejar a compensação pecuniária, nesses casos, é o descumprimento do dever jurídico de conviver e prestar auxílio (material e imaterial) aos filhos, portanto, deveres decorrentes do poder familiar, e não a falta de afeto per si.

A tese que agasalha a possibilidade de compensação pecuniária por danos morais, diferentemente do que alguns já disseram equivocadamente, não banaliza o afeto, assim como não reduz o amor entre pais e filhos à quantificação em moeda. De outra banda, salienta-se que não se trata também de punição aos genitores por falta de amor para com os seus filhos, mas de responsabilidade civil decorrente da quebra do dever jurídico atinente ao poder familiar em manifesto prejuízo da prole.

Do dano material e moral: afigura-se elementar que atos omissivos de tamanha gravidade repercutem no plano material (patrimonial) e imaterial (moral) da vítima (filhos), tornando-se a prova o elemento fundamental para a sua configuração.

Em sede de dano material, a questão atinente às provas não apresenta maior complexidade, pois enquadra-se na regra geral que orienta a responsabilidade civil em demandas dessa natureza, necessitando ser demonstrada no plano puramente patrimonial para fins de simples indenização (recomposição patrimonial – CC, art. 927).

Por sua vez, o abalo anímico (dano imaterial) configura-se por forjar na prole abandonada um vazio multifacetado, capaz de gerar as mais diversas sequelas (algumas irreversíveis), notadamente o sentimento de rejeição, baixa estima e a consequente perda do amor próprio.

Soma-se a isso a dor incomensurável da ausência de afeto, de carinho, de orientação moral, ética, religiosa e cultural em momentos mais importantes da vida em formação, o que se verifica na infância e, em especial, em tenra idade.

Em outros termos, a ausência injustificada da mãe ou do pai origina indiscutível dor psíquica, com graves e consequentes prejuízos à formação dos menores, decorrentes da falta não só do afeto, mas do cuidado e da proteção que a presença paterna ou materna oferece na vida e na formação das crianças e dos adolescentes.

Por conseguinte, a inobservância (por negligência ou omissão) desses deveres afeta a integridade física, moral, intelectual ou psicológica da criança ou do adolescente, prejudica o desenvolvimento sadio de sua personalidade, bem como atenta contra a sua dignidade, razão pela qual configura ilícito civil sui generis, cujo dano é decorrência lógica da sequência incontável de atos ou omissões prejudiciais perpetradas contra a criança ou o adolescente.

Ademais, a ilicitude não reside apenas na ilegalidade comportamental (ato omissivo contra as normas civilistas, de origem constitucional), mas também e sobretudo no dano injusto a que a vítima foi submetida. Essa é a lição que se extrai da doutrina de Humberto Theodoro Júnior: “O direito se constitui como um projeto de convivência, dentro de uma comunidade civilizada (o Estado), no qual se estabelecem os padrões de comportamento necessários. A ilicitude ocorre quando in concreto a pessoa se comporta fora desses padrões. Em sentido lato, sempre que alguém se afasta do programa de comportamento idealizado pelo direito positivo, seus atos voluntários correspondem, genericamente, a atos ilícitos (fatos do homem atritantes com a lei). Há, porém, uma ideia mais restrita de ato ilícito, que se prende, de um lado, ao comportamento injurídico do agente e, de outro, ao resultado danoso que dessa atitude decorrer para outrem. Fala-se, então, em ato ilícito em sentido estrito ou, simplesmente, ato ilícito, como se faz no art. 186 do atual Código Civil. Nesse aspecto, a ilicitude não se contentaria com a ilegalidade do comportamento humano, mas se localizaria, sobretudo, no dano injusto a que o agente fez a vítima se submeter[36].

Portanto, essa espécie de dano imaterial pode vir a ser comprovada mediante testemunhos, documentos diversos e, em especial, prova técnica produzida por especialista ou equipe multidisciplinar (v.g., médicos, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais).

De outro vértice, pelas inúmeras particularidades, variáveis, efeitos e sequelas na formação da personalidade e de ordem psicossomáticas, o dano nesses casos é presumido (in re ipsa), pois decorre lógica e naturalmente do ato omissivo materializado pelo abandono material e afetivo [37].

Constata-se a resistência que boa parte dos ilustres membros integrantes da Corte da Cidadania encontra para reconhecer o dano nesses casos de abandono material e imaterial (não raramente chamado incorretamente de “abandono afetivo“), acrescentando a imprescindibilidade de produção probatória. Encontra-se julgado que preconiza tratar-se o dano moral de excepcionalidade em sede de “abandono afetivo“, fazendo-se mister a produção cabal de provas acerca da quebra do dever de convivência familiar, da conduta comissiva ou omissiva do pai, além dos danos à personalidade sofridos pela vítima, evitando-se que o Judiciário se transforme numa “indústria indenizatória[38]. Nada obstante, curioso que a mesma Corte considera uma simples inscrição indevida do nome do consumidor nos órgãos de proteção ao crédito um ilícito civil, cujo dano é presumido (remansosa jurisprudência do STJ) [39]. Com a devida vênia, a Corte de Cassação está a tratar direitos da personalidade de magnitude bem distintas conferindo-lhes, porém, tratamento e regime de medidas e pesos às avessas.

Em sentido diametralmente oposto ao entendimento mencionado, encontra-se também na Corte da Cidadania tese sufragando a admissibilidade do abandono afetivo e, por conseguinte, o ilícito civil com o consectário da compensação pecuniária por danos morais. Nesse sentido o aresto lapidar da lavra da Ministra Nancy Andrighi, acompanhada em seu voto pelos Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Cueva (vencido o Ministro Massami Uyeda) [40]. Na mesma linha, orientação firmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em acórdão de minha relatoria [41].

Do nexo de causalidade: as provas produzidas nos autos, portanto, caso a caso, servirão de balizamento para uma maior ou menor definição do nexo de causalidade.

Não se perca de vista, porém, que em demandas dessa natureza a prova principal a ser produzida é o abandono imaterial (via de regra acompanhado de abandono material), porquanto hábil a configurar a negligência grave e, com isso, os descumprimentos dos deveres legais pertinentes ao poder familiar, sendo que, desse ato omissivo voluntário, decorre lógica e naturalmente o dano moral, dando azo ao surgimento inexorável do nexo de causalidade.

Nessa mesma linha, sinaliza a Ministra Nancy Andrighi, no aresto acima mencionado, que

estabelecida a assertiva de que a negligência em relação ao objetivo dever de cuidado é ilícito civil, importa, para a caracterização do dever de indenizar, estabelecer a existência de dano e do necessário nexo causal.

Forma simples de verificar a ocorrência desses elementos é a existência de laudo formulado por especialista, que aponte a existência de uma determinada patologia e a vincule, no todo ou em parte, ao descuidado por parte de um dos pais.           

Porém, não se deve limitar a possibilidade de compensação pecuniária por dano moral a situações símeis aos exemplos, porquanto inúmeras outras circunstâncias dão azo à compensação, como bem exemplificam os fatos declinados pelo Tribunal de origem.”

E, ao final, no tópico atinente ao nexo de causalidade, arremata com a afirmação de que tais circunstâncias caracterizam o dano in re ipsa, traduzindo-se, assim, em causa eficiente de compensação pecuniária [42].

Da compensação pecuniária por dano moral: observa-se que a condenação pecuniária, nestes casos, não tem natureza indenizatória, mas puramente compensatória, assim como o seu escopo não é compelir o restabelecimento do amor (tese que, aliás, beira o absurdo). A compensação pecuniária por dano imaterial visa minimizar ou sublimar o irreversível prejuízo já causado ao filho que sofreu a ausência do pai ou da mãe em fase crucial de sua formação, somando-se ao seu caráter pedagógico, profilático inibidor; igualmente não objetiva compelir os pais ao cumprimento de seus deveres atinentes ao poder familiar.

Em demandas desse jaez, não busca o filho o amor que jamais recebeu ou que se perdeu, mas, sim, a compensação pelo abandono sofrido em decorrência da negligência parental.

Assim, mostra-se equivocado o argumento de que, nesses casos, estar-se-ia quantificando o afeto para, com isso, afastar a responsabilidade civil dos pais; ter-se-ia uma gritante contradição, uma vez que também não se pode quantificar a dignidade, a imagem, a honra ou quaisquer outros direitos da personalidade, e, nem por isso, o Poder Judiciário deixa de condenar os réus ao pagamento de compensação pecuniária nesses outros casos de danos extrapatrominiais.

Portanto, a convivência familiar plena, saudável e amorosa manifesta-se no ordenamento pátrio como direito fundamental da criança e do adolescente, compreendendo o dever dos pais de prestar afeto, carinho, atenção e orientação aos filhos, além de assistência material.

No tocante à quantificação do montante compensatório, bem escreve o Ministro e Acadêmico Paulo de Tarso Sanseverino (O arbitramento da indenização por dano e a jurisprudência do STJ. Revista Justiça e Cidadania, n. 188m, p. 17) que “o melhor critério para a quantificação da indenização por prejuízos extrapatrimoniais em geral, no atual estágio do direito brasileiro, é o arbitramento equitativo do juiz (…). Esse arbitramento equitativo deve ser pautado pelo postulado da razoabilidade, transformando-se em um montante econômico a agressão a um bem jurídico sem essa dimensão“.

Nessa linha, para a quantificação do dano moral, devem ser sopesados vários fatores, como a situação socioeconômica de ambas as partes, o grau de culpa do agente e a proporcionalidade entre o ato ilícito e o dano suportado pela vítima, sem perder de vista que a compensação pecuniária visa, também, ao desencorajamento da prática de novos atos lesivos pelo ofensor.

Trata-se, portanto, de um critério fundado na razoabilidade, devendo a importância fixada servir como compensação aos prejuízos, aos constrangimentos, aos dissabores, às angustias e aos transtornos sofridos pela vítima do evento danoso, com caráter pedagógico e profilático inibidor, repita-se.

Assim, o valor pecuniário deve ser fixado de maneira que atenda à pretensão de compensação pelos danos sofridos pela vítima sem importar em enriquecimento e, simultaneamente, penalizar civilmente o causador do ilícito sem ocasionar-lhe empobrecimento.

Portanto, inexiste fórmula alquímica ou jurídica capaz de definir o quantum devido a título de danos não patrimoniais, na medida em que não são tarifáveis ou mensuráveis; busca-se apenas por meio da condenação em pecúnia a minimização da dor, da mácula, do sofrimento do filho, devendo ser analisado e mensurado em atenção às particularidades de cada caso.

Mais à frente, destaca o ilustre Ministro que o arbitramento da compensação pecuniária, em respeito aos critérios acima elencados, deve se dar em duas etapas:

Na primeira fase, arbitra-se o valor básico da indenização, considerando-se o interesse jurídico atingido, em conformidade com os precedentes jurisprudenciais acerca da matéria (técnica do grupo de casos). Assegura-se, com isso, uma razoável igualdade de tratamento para casos semelhantes, assim como que situações distintas sejam tratadas desigualmente na medida em que se diferenciam. Na segunda fase, procede-se à fixação definitiva da indenização, ajustando-se o seu montante às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias. Partindo-se da indenização básica, esse valor deve ser elevado ou reduzido de acordo com as circunstâncias particulares do caso (gravidade do fato em si, culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes) até se alcançar o montante definitivo. Com a utilização desse método bifásico, procede-se a um arbitramento efetivamente equitativo, respeitando-se as circunstâncias e as peculiaridades de cada caso concreto.           

Chega-se, desse modo, a um ponto de equilíbrio em que as vantagens dos dois critérios estarão presentes. Alcança-se, de um lado, uma razoável correspondência entre o valor da indenização e o interesse jurídico lesado, enquanto, de outro lado, obtém-se um montante correspondente às circunstâncias do caso. Finalmente, a decisão judicial apresenta a devida fundamentação acerca da forma como arbitrou o valor da indenização pelos danos extrapatrimoniais.” (artigo citado)

A data do ilícito: em que pese a importância do tema, esse é um ponto praticamente inexplorado pelo doutrina e pela jurisprudência, no que concerne às inúmeras variantes que acompanham esses casos de abandono material e imaterial da prole.

A verdade é que somente a análise caso a caso será capaz de identificar a data (certa ou aproximada) em que o ilícito ocorreu, diante de suas particularidades atinentes à prática dos atos omissivos. Se, em algumas situações, essa definição apresenta-se com extrema facilidade (v.g., hipótese em que a mãe abandona o recém-nascido na porta de uma residência qualquer), em outras, estabelecer esse divisor de águas é tarefa extremamente difícil, como sucede, por exemplo, nas hipóteses de paternidade não reconhecida espontaneamente.

Nesses casos, não há dúvida de que o marco definidor da responsabilidade civil é a ciência inequívoca da paternidade por parte do genitor e a consequente omissão acerca dos deveres legais inerentes à paternidade. Por conseguinte, esse marco é variável, merecendo ser identificado caso a caso, pois as variantes fatuais são muitas, a começar pela circunstância de que, algumas vezes, sequer o réu acredita ser o pai, o que o leva a não assumir a paternidade ou submeter-se a exame de DNA e, muitas vezes, não é mesmo o pai do rebento; não menos incomum a situação inversa em que o réu, mesmo acreditando ser o pai (quando na verdade não o é), deixa de assumir a paternidade, ou, ainda, é efetivamente o pai, tem certeza ou elevada probabilidade, mas, mesmo assim, permanece inerte e, por conseguinte, omisso em seus deveres paternos.

Portanto, nesse quadro de pouca nitidez, ao menos é certo que o nascimento do filho não reconhecido pronta e espontaneamente pelo pai não é, necessariamente, o marco indicador da prática do ilícito civil, pois “ilícito” somente haverá quando o genitor começar a descumprir com os seus deveres atinentes ao poder familiar e, portanto, vincula-se o marco diretamente ao reconhecimento da paternidade [43].

Parece-nos adequado, porquanto razoável, estabelecer-se como marco do ilícito o dia em que o pai reconhece publicamente o filho, deixando, porém, de registrá-lo e de cumprir com os deveres decorrentes do poder familiar (paternidade biológica). Pode o mesmo ocorrer também após o reconhecimento formal, perante o Registro Civil, verificando-se após o abandono; essa data pode ser também aquela em que o réu, em ação de investigação de paternidade contra si proposta, toma ciência inequívoca do resultado positivo do exame de DNA a que foi submetido, contudo, deixa de impugná-lo em tempo e modo oportunos.

Portanto, faz-se necessário analisar as peculiaridades de cada caso e buscar nos meandros das provas o momento em que o pai passou a reconhecer (formal ou informalmente) o filho e, em consequência, deixou-o em abandono, negligenciando os seus deveres legais.

Extrai-se do voto do Ministro Moura Ribeiro (REsp 1.374.778/RS) orientação fundada em doutrina de Aline Biasus S. Karow: “(…) Não pode responder por abandono afetivo aquele sujeito que sequer tinha ciência da existência do filho, exigindo-se, antes, o reconhecimento da paternidade. A autora acrescenta que aquele que sabe ser pai, porém não registra o filho, dificilmente poderá ser alvo da demanda, pois ninguém pode ser condenado por ato ilícito, quando não se tem consciência da potencialidade de tal ato, a não ser que reconheça publicamente a paternidade através de atos inerentes à sua função (…)” (Abandono afetivo – valoração jurídica do afeto nas relações paterno-filiais. Curitiba: Juruá, 2012. p. 223).

No tocante aos juros de mora, cumpre aclarar que a mora estabelecida no art. 398 do atual Código Civil (correspondente ao art. 962 do CC/1916) não decorre da verificação de inadimplemento obrigacional, mas da prática de ato ilícito gerador de dano moral ou material, razão pela qual não pode ser confundida com a mora delineada nos arts. 394 e 397 do mesmo diploma, alusivas ao descumprimento de obrigação.

Justamente por esse motivo, as doutrinas clássica e contemporânea denominam esta espécie de mora de ex re, presumida ou irregular, tendo em vista que ela decorre não do inadimplemento propriamente dito, mas, sim, de presunção legal de natureza cogente.

Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 54 e definiu que os juros moratórios devem fluir a partir do evento danoso, em casos de responsabilidade extracontratual (art. 398 do CC).

Portanto, é da data do ilícito que se contam os juros moratórios, jamais da citação ou da sentença, e, da fixação do quantum, a correção monetária.

2.3.3 Da Prescrição          

No tocante à prescrição, mister se faz distinguir o direito de natureza personalíssima (direito à declaração de paternidade) e os efeitos patrimoniais decorrentes desse mesmo direito, seja em razão de dever, obrigação ou responsabilidade civil.

Boa parte do problema foi sanada pelo Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula nº 149, que assim dispõe: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. Em outras palavras, está assentado que a ação fundada em reconhecimento de direito da personalidade não prescreve, diferentemente do que se verifica com a pretensão de natureza patrimonial decorrente desse direito.

Resta, pois, analisar a questão atinente ao dano moral decorrente de abandono imaterial (moral ou afetivo) do filho pelo genitor e o prazo que a lei lhe confere para ajuizar a respectiva ação fundada em responsabilidade civil.

Durante o período em que o interessado for menor de idade, contra ele não corre a prescrição (CC, art. 198, I); ao completar a maioridade, além de cessar o poder familiar (caso já reconhecida a paternidade), cessa também, por conseguinte, o ilícito civil fundado na omissão voluntária da observância dos mesmos deveres e, a partir dessa data, começa a fluir o prazo de três anos para o filho obter do genitor omisso a reparação civil por danos morais e materiais (CC, art. 206, § 3º, V).

Esse também é o entendimento de Rui Stoco:

No caso de abandono afetivo, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de ter natureza de reparação civil, logo, sujeito à prescrição, que consiste em três anos, consoante art. 206, V, do Código Civil, contado de quando se atingiu a maioridade, tendo em vista que não corre a prescrição enquanto houver sujeição ao poder familiar (art. 197, II, c/c o art. 1.630, ambos do CC).                                  

Os julgados colacionados neste item até a edição anterior (do livro) referiam-se ao Código Civil de 1916, agora revogado, e preconizavam a prescrição em 20 anos para as hipóteses de atos ilícitos, sabido que o estatuto anterior não estabelecia especificamente prazos de prescrição na responsabilidade civil. 

Atualmente, contudo, o prazo prescricional nas ações visando compor a pretensão de reparação civil orienta-se pela regra geral constante do § 3º, V, do art. 206 do CC/02, exceto nas hipóteses de pretensão do segurado contra o segurador e vice-versa.[44]

Essa contagem de prazo prescricional se impõe como regra, partindo-se da premissa de que o filho sabe ou imagina saber quem é o seu pai biológico, o que lhe confere o direito de, a qualquer momento, manejar a ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de compensação pecuniária por danos morais (e indenização por materiais, se for o caso). Em outros termos, o sujeito legitimado passivo para a demanda em questão é conhecido e pode ser acionado pelo interessado, no prazo de três anos, a contar da sua maioridade.

Diversa é a hipótese em que o filho, mesmo após completar a maioridade, não sabe e não tem ideia de quem seja o seu possível genitor. Nesses casos, parece-nos que o prazo prescricional também não flui, pois pendente de condição suspensiva (CC, art. 199, I).

Destarte, o conhecimento (mesmo que apenas provável ou incerto, mas possível) acerca da identificação do pretenso genitor é condição basilar para que o filho dirija contra ele a ação de investigação de paternidade cumulada com pedido ressarcitório ou outro qualquer de natureza patrimonial.

Nesse sentido o entendimento de J. M. de Carvalho Santos: “Desde o advento do Código francês que a regra aí firmada não tem opositores, sendo todos unânimes em aceitar como um dogma a verdade de que a prescrição não corre pendendo condição suspensiva. É óbvio o por que dessa afirmativa: um direito subordinado a uma condição suspensiva não é ainda um direito adquirido, ao qual corresponda qualquer ação, nos termos do art. 118, de sorte que não podia haver início da prescrição sem a ação já nascida[45]. Esse também é o entendimento sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça, em aresto bem lançado da lavra do Ministro Luis Felipe Salomão [46].

                                   

3 Conclusão          

A matéria é mais do que atual, é eterna e palpitante, pois, enquanto habitarmos o planeta Terra, existirá o núcleo familiar em qualquer de suas modalidades (imagináveis e inimagináveis – pensemos que, por exemplo, até poucos anos atrás, era impensável a “família” composta por pessoas do mesmo sexo). O tema é, portanto, complexo e praticamente inesgotável, até porque a sua análise pode se dar também pelo prisma da antropologia, da sociologia e da psicologia.

Para concluir, deixamos a certeza de que a essência, o núcleo fundamental da família, é e sempre será o amor, sentimento universal que, veladamente, transfere para o plano do direito constitucional e do direito civil os direitos das crianças e dos adolescentes e, em contrapartida, cria os indeclináveis deveres atinentes ao poder familiar acerca dos quais os genitores não devem e não podem jamais eximir-se de observar, sob pena de destituição e responsabilidade civil.

[1] “Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. (Redação dada pela Lei nº 4.121, de 1962). Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para solução da divergência.” (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 4.121, de 27.08.1962)

[2] “Art. 1º O art. 16 do decreto-lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 16. O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai, salvo se o juiz decidir doutro modo, no interesse do menor’.”

[3] “Ambos os cônjuges tem sobre o filho autoridade, a ambos deve o filho respeito. Mas, sendo o pae o chefe da família, compete-lhe, durante o casamento, o exercício dos direitos que constituem o pátrio poder, sem, contudo, deixar de ouvir a mulher, em tudo que disser respeito ao interesse do filho. O marido não absorve a personalidade da mulher, a autoridade do pae não faz desaparecer o direito da mãe, de velar pelo bem estar do filho. Apenas o pae, como chefe de família, tem preeminencia e preferencia.

Se o pae está impedido por enfermidade mental, ausencia declarada, ou condemnação criminal, a mulher o substitue. Se morre o pae, transfere-se à mãe o poder paterno.

Com a feição, que lhe dá o Código, o poder paternal corresponde antes ao elterliche Gewalt, autoridade dos progenitores, do que á patria protestas dos romanos, que era um poder essencialmente viril, que competia, exclusivamente, ao pae.” (BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Edição histórica. Rio de Janeiro: Rio, 1940. v. I-III. p. 835)

[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 1975. v. V. p. 13.

Observa ainda o festejado doutrinador que, “mesmo nos tempos contemporâneos, na elaboração jurídica do século passado e deste século (1900), mesmo os Códigos modernos não tiveram a coragem de romper as barreiras dos preconceitos e consagraram ideias que pouca diferença faziam dos pré-juízos quiritários. Se a mulher era socialmente prestigiada, juridicamente lhe faltava a equiparação que a libertasse das malhas de um patriarcalismo deslocado no tempo e no espaço” (op. cit., p. 15).

[5] Com base em Daniel Sarmento e Walter Rothenburg, escreve Maria Berenice Dias sobre o macroprincípio da dignidade da pessoa humana: “É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal. A preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional. Sua essência é difícil de ser capturada em palavras, mas incide sobre uma infinidade de situações que dificilmente se podem elencar de antemão. Talvez possa ser identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções. É impossível uma compreensão exclusivamente intelectual e, como todos os outros princípios, também é sentido e experimentado no plano dos afetos” (Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 62).

[6] “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (…).”

[7] “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.”

[8] V. o aresto citado do STF, da relatoria do Ministro Luiz Fux (RE 898.060/SP), que trata da paternidade socioafetiva e da pluriparentalidade.

[9] “Art. 231. São deveres de ambos os cônjuges:

I – fidelidade recíproca;

II – vida em comum, no domicílio conjugal (arts. 233, IV, e 234);

III – mútua assistência;

IV – sustento, guarda e educação dos filhos.”

[10] “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

I – fidelidade recíproca;

II – vida em comum, no domicílio conjugal;

III – mútua assistência;

IV – sustento, guarda e educação dos filhos;

V – respeito e consideração mútuos.”

[11] “Art. 1.569. O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes.”

[12] “Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o sequestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher.”

[13] Alguns doutrinadores chegaram a lecionar sobre a possibilidade de condenação da mulher recalcitrante à reparação pecuniária pelos danos morais e materiais sofridos pelo marido, tese que resultou afastada à época, na medida em que, como bem exposto por Aubry e Raul (citados por Carvalho Santos), o dever de coabitação não é correlativo a um direto de crédito, mas constitui um dever correspondente a um direito de ordem pública, de autoridade, que, por isso mesmo, não se pode resolver em perdas e danos (SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado principalmente do ponto de vista prático: direito de família. 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987. v. IV. p. 329).

[14] O Código Criminal de 1830 foi o primeiro Código Penal brasileiro, sancionado poucos meses antes da abdicação de D. Pedro I, em 16 de dezembro de 1830, e vigorou de 1831 até 1891, quando foi substituído pelo Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (Decretos ns. 847, de 11 de outubro de 1890, e 1.127, de 6 de dezembro de 1890).

[15] “Art. 240. Cometer adultério: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses. § 1º Incorre na mesma pena o corréu. § 2º A ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês após o conhecimento do fato. § 3º A ação penal não pode ser intentada: I – pelo cônjuge desquitado; II – pelo cônjuge que consentiu no adultério ou o perdoou, expressa ou tacitamente. § 4º O juiz pode deixar de aplicar a pena: I – se havia cessado a vida em comum dos cônjuges; II – se o querelante havia praticado qualquer dos atos previstos no art. 317 do Código Civil.”

[16] “Art. 384. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I – dirigir-lhes a criação e educação;

II – tê-los em sua companhia e guarda;

III – conceder-lhes, ou negar-lhes consentimento, para casarem;

IV – nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais lhe não sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercitar o pátrio poder;

V – representá-los, até aos 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.”

[17] SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado principalmente do ponto de vista prático: direito de família. 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987. v. IV. p. 333.

[18] “Art. 394. Se o pai, ou mãe, abusar do seu poder, faltando aos deveres paternos, ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida, que lhe parece reclamada pela segurança do menor e seus haveres, suspendendo até, quando convenha, o pátrio poder. Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do pátrio poder, ao pai ou mãe condenados por sentença irrecorrível, em crime cuja pena exceda de dois anos de prisão.”

[19] “Art. 395. Perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou mãe: I – que castigar imoderadamente o filho; II – que o deixar em abandono; III – que praticar atos contrários à moral e aos bons costumes.”

[20] “Art. 1.521. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob seu poder e em sua companhia (…).”

[21] “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

[22] “Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.”

[23] “Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.”

[24] Carlos Roberto Gonçalves, em sua consagrada obra Responsabilidade Civil, já fazia no passado observação nesse mesmo sentido, valendo apontar o contido no item 17, que trata da responsabilidade civil entre cônjuges em que bem reflete na 5. ed., datada de 1994, a ausência de legislação no Brasil acerca do tema, bem como a timidez da doutrina e da jurisprudência nacional no enfrentamento da matéria (p. 68/71).

Por outro lado, merece destaque o estudo pioneiro da Professora Regina Beatriz Tavares da Silva, intitulado Dever de Reparação Imaterial entre Cônjuges (São Paulo: Forense Universitária, 1990).

[25] “Art. 1.548. A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do ofensor, se este não puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento, um dote correspondente à sua própria condição e estado: (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.01.1919) I – se, virgem e menor, for deflorada; II – se, mulher honesta, for violentada, ou aterrada por ameaças; III – se for seduzida com promessas de casamento; IV – se for raptada.”

[26] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil – direito de família. 7. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2007. v. 6. p. 32.

[27] Curso de direito civil: direito de família. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 2. p. 71.

No mesmo sentido Aubry et Rau: “Le préjudice dont le fiancé ou la fiancée délaissé peut obtenir réparation doit être aprécié conformément aux principes généraux de la responsabilité civile. Il comprend, entre autres, les éléments suivants: – le préjudice moral constitué par le chagrin et le dépit que cause l’abandon, par la prise que celui-ci donne à la malignité publique, par l’ obstacle qu’il peut apporter à um autre établissement; – le préjudice pécuniaire résultant des dépenses faites à l’occasion des fiançailles et en vue de la préparation des fêtes du mariage, de celles faites em vue de l’installation du inutiles et où leur revente ou la résilition du contrat d’achat entraîne une parte. C’est encore le préjudice résultant du fait que le fiancé ou la fiancée a abandonné une situation ou une résidence pour rejoindre l’autre fiancé ou satisfaire ses désirs” (Cours de droit civil français. 6. ed. Paris: Librairie de la Cour de Cassation, 1948. p. 31. Tomo VII).

[28] RODRIGUES, Silvio. Direito civil – direito de família. 2007. p. 15. v. 6.

[29] Ob. cit., p. 71.

[30] Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 23/24.

[31] Talvez, ainda melhor, a análise do ilícito que, nos dizeres de Sérgio Cavalieri, é “fonte da responsabilidade” (obrigação sucessiva, consequente ao descumprimento da obrigação originária) (ob. cit., p. 26).

[32] No REsp 275.568/RJ, da relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros, j. 18.05.04, a Corte da Cidadania acolheu a tese da destituição do poder familiar materno por “abandono afetivo”, com fulcro no art. 395, II, do CC/1916 (correspondente atual: CC/02, art. 1.638, II).

[33] Retomaremos, mais adiante, uma análise mais aprofundada sobre as razões jurídicas contidas no citado voto, com as quais não concordamos, assinala-se desde já.

Em pesquisa por nós realizada, nesta data, deparamo-nos com apenas 12 julgados do STJ acerca do tema atinente à responsabilidade civil em direito de família, por abandono imaterial (alguns casos envolvendo a questão atinente à investigação de paternidade) e danos morais, a saber: REsp 275.568/RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 18.05.04; REsp 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 29.11.05; REsp 514.350/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Jr., j. 28.04.09; REsp 1.159.242/SP, Relª Minª Nancy Andrighi, j. 24.14.2012; REsp 1.298.576/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 21.08.2012; REsp 1.374.778/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 18.06.2015; REsp 1.557.978/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 03.11.2015; REsp 1.493.125/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 23.11.2016; AgRg no Ag em REsp 811.059/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17.05.2016; Ag no Ag em REsp 766.159/MS, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 02.06.2016.

[34] REsp 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves.

Data venia, o voto condutor equivoca-se em diversas premissas e assertivas, vejamos: a) o abandono ou o descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos é punindo o infrator com a perda do poder familiar, suficientemente capaz de cumprir as suas finalidades dissuasórias e punitivas, hábil a demonstrar aos indivíduos que o direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono e, em conclusão do Relator, “com o que cai por terra a justificativa mais pujante dos que defendem a indenização por dano moral” (ledo engano!); b) faz ilações quando afirma que “a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso” (ora, esse argumento, mutatis mutandis, poderia ser aplicado – equivocadamente – a todas as demais demandas de dano moral de ordem diversa, o que importaria em negativa de vigência do Código Civil e da Constituição Federal) e, ademais, dano moral não se indeniza, compensa-se; c) outras ilações: “ainda outro questionamento deve ser enfrentado: o pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso?”, e prossegue a ilação, respondendo o Relator à sua própria indagação: “Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos (…). Por certo, um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno”; d) confunde o voto o sustento material fundado na verba alimentar com os desígnios da compensação pecuniária por danos morais, vejamos: “O deferimento do pedido não atenderia, ainda, ao objetivo da reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido” (isto é, perda do poder familiar); e) e, para arrematar, confunde a natureza do pedido condenatório em pecúnia por danos morais com obrigação de fazer, vejamos: “Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada”.

Vencido (mas com absoluta razão de fato e de direito), o Ministro Barros Monteiro assim sintetizou o seu entendimento contrário à tese vencedora: “no caso, ocorreram conduta ilícita, o dano e o nexo de causalidade. O dano resta evidenciado com o sofrimento, a dor, com o abalo psíquico sofrido pelo autor durante todo esse tempo”.

Na mesma linha, não reconhecendo ato ilícito e consequente dano moral por abandono em ação de investigação de paternidade com pedido condenatório cumulativo, v. REsp 514.350/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Jr., j. 28.04.09 (unânime).

[35] Responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 149 (ed. atualizada por Rui B. Dias).

[36] Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 18. v. III. t. 2.

[37] O STJ acolheu no REsp 1.159.242/SP, da relatoria da Minª Nancy Andrighi, a tese, nesses casos, do dano in re ipsa, segundo se infere do voto: “Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação” (j. 24.04.2012). Acompanharam a Relatora o Min. Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Cueva, ficando vencido o Min. Massami Uyeda.

[38] REsp 1.557.978/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 03.11.2015 (unânime).

Rejeitando o pedido de compensação pecuniária por dano moral em face de abandono afetivo, assim decidiu o STJ: “A possibilidade de compensação peciniária a título de danos morais e materiais por abandono afetivo exige detalhada demonstração do ilícito civil (art. 186 do Código Civil) cujas especificidades ultrapassem, sobremaneira, o mero dissabor, para que os sentimentos não sejam mercantilizados e para que não se fomente a propositura de ações judiciais motivadas unicamente pelo interesse econômico-financeiro (…)” (REsp 1.493.125/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 23.02.2016).

[39] Sendo esse o mote, parece-nos que não há maior “indústria indenizatória” do que a condenação por dano moral por lançamento indevido do nome do consumidor em órgãos de proteção ao crédito.

[40] “(…) 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no direito de família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado -, importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.”

[41] “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C DANOS MORAIS. RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO POR MEIO DE EXAME DE DNA. OMISSÃO DO GENITOR NO CUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. ILÍCITO DENOMINADO ‘ABANDONO AFETIVO’. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES ATINENTES AO PODER FAMILIAR. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM COMPENSATÓRIO. OBJETO DE RECURSO POR AMBAS AS PARTES. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. JUROS DE MORA. TERMO A QUO FIXADO EX OFFICIO DA DATA DO RESULTADO DO EXAME DE DNA. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA Nº 54 DO STJ E ART. 398 DO CC. RECURSO DO RÉU PARCIALMENTE PROVIDO E DA AUTORA DESPROVIDO.

I – O ilícito comumente chamado de ‘abandono afetivo’ nada mais é do que a atitude omissiva dos genitores no cumprimento dos deveres de ordem sentimental e moral (não raramente também material) decorrentes do poder familiar legalmente estabelecidos, dentre os quais se destacam os de prestar assistência, educação, atenção, carinho, amor e orientação para a boa formação da criança e do adolescente. O que enseja o ilícito civil e, por conseguinte, a compensação pecuniária é o descumprimento dos deveres jurídicos do poder familiar, e não a falta de afeto por si só.

Assim, por estar devidamente demonstrado, in casu, o abandono afetivo sofrido pela autora, com o cristalino descumprimento pelo réu dos deveres inerentes ao poder familiar – dever legal de cuidado lato sensu -, a manutenção da sentença que o condenou ao pagamento de compensação pecuniária é medida que se impõe.

Não é a falta de afeto (amor) que configura o ilícito civil, mas, sim, a falta de observância dos deveres paternos atinentes à filiação. O dano é in re ipsa e o nexo de causalidade, mais do que evidente, é elementar.

II – Considerando a natureza compensatória do montante pecuniário no âmbito de danos morais, a importância estabelecida em decisão judicial há de estar em sintonia com o ilícito praticado, a extensão do dano sofrido pela vítima, a capacidade financeira do ofendido e do ofensor, bem assim servir como medida punitiva, pedagógica e inibidora.

Deste modo, há de ser mantido o valor fixado a título de compensação pecuniária pelos danos morais experimentados pela autora, pois mostra-se razoável e compatível com a gravidade dos fatos e a capacidade financeira das partes.

III – Em se tratando de responsabilidade civil extracontratual, cujo ilícito civil é gerador de dano moral, incidem os juros moratórios a contar do evento danoso, consoante disposto no art. 398 do Código Civil e na Súmula nº 54 do STJ.

Em casos em que o Estado-juiz não tem a capacidade de adentrar no foro íntimo de cada cidadão para identificar a data precisa em que o réu teve conhecimento seguro da paternidade, para a definição da data do evento danoso, no caso dos autos há de se estabelecer o termo inicial para a incidência de juros moratórios o momento em que o genitor reconhece formalmente o filho, ou, como na hipótese vertente, o dia em que o genitor teve ciência do resultado do exame de DNA não impugnado.” (Apelação 0004396-81.2012.8.24.0090, j. 17.12.2015)

[42] V. entendimento contrário do STJ: REsp 1.557.978/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 03.11.2015 (unânime).

[43] Esse, aliás, é também o entendimento afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça: REsp 1.374.778/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 18.06.2015 (unânime).

[44] Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 10. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 306 e 330.

[45] Código Civil brasileiro interpretado. 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980. v. III. p. 413/414.

Na mesma linha: DINIZ, Maria Helena. Código Civil comentado. 10. ed. Obra em coautoria, coord. de Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 226.

[46] REsp 1.298.576/RJ, j. 21.08.2012 (unânime). Nesse caso, contudo, a Quarta Turma reconheceu a prescrição para a ação de danos morais, acolhendo apenas o pedido declaratório de reconhecimento de paternidade, porque o autor da ação tinha desde sempre ciência de o réu era seu pai biológico, contudo, permaneceu inerte mesmo após completar a maioridade aguardando mais de 30 anos para ajuizar a ação com pedido cumulativo (aos 51 anos de idade).