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A RESPONSABILIDADE CIVIL NA MIRA DA TEORIA DOS SISTEMAS DINÂMICOS

A RESPONSABILIDADE CIVIL NA MIRA DA TEORIA DOS SISTEMAS DINÂMICOS

Maria Candida Do Amaral Kroetz

 

Estamos presenciando um movimento sui generis no desenvolvimento científico. Parece que, repentinamente, todos os ramos do conhecimento, tornados estranhos uns aos outros pela especialização extremada, começaram a ressentir-se do isolamento em que se encontravam, passando a buscar mais e mais suas bases comuns. A necessidade crescente de estudos interdisciplinares, capazes de analisar a realidade de ângulos diversos e complementares, passou a aguçar a conscientização de que umas séries de princípios são validamente aplicáveis às várias ciências. Exemplo eloquente desse movimento de desvendar fundamentos comuns a quaisquer áreas de conhecimento é a chamada teoria dos sistemas dinâmicos.

Vinda da matemática aplicada, a teoria dos sistemas dinâmicos é um paradigma inovador e influente em muitas áreas de estudo, incluindo, mais recentemente, as ciências sociais. Um sistema dinâmico é um conjunto de elementos interligados que constituem um todo maior que a sua mera soma. Esses elementos nem sempre são harmônicos entre si.

Para solucionar as tensões internas, os sistemas desenvolvem circuitos de influência mútua (feed-back loops) que neutralizam as incompatibilidades intrassistêmicas, eventualmente gerando novos conflitos ou instabilidades. De acordo com essa teoria, os sistemas adaptam-se, mudam e evoluem no tempo numa volatilidade constantemente renovada, apesar de sempre resistirem a mudanças.

Estamos imersos em sistemas, somos sistemas. Segundo Donatella Meadows, uma escola é um sistema. Assim como uma cidade, e uma fábrica, e uma corporação, e a economia nacional. Um animal é um sistema. Uma árvore é um sistema, e uma floresta é um sistema maior que abrange subsistemas de árvores e animais. A Terra é um sistema. Assim como o sistema solar, assim como uma galáxia.

Segundo Gregoire Nicolis e Ilya Prigogine, as instabilidades e flutuações são responsáveis pela incrível variedade e riqueza das formas e das estruturas que vemos na natureza que nos rodeia. Novas estruturas, conceitos e ideias, distintos daqueles padrões de periodicidade e estabilidade próprios às ciências clássicas, são necessários a explorar a complexidade e a instabilidade dos sistemas físicos, biológicos e também sociais.

Essas dinâmicas contraditórias de constante instabilidade e auto-organização também regem os sistemas jurídicos. Para Orlan Lee, é preferível adotar uma concepção do direito como um sistema aberto e suscetível a analise lógica. As regras não são elementos absolutos, mas se inter-relacionam com outros elementos do sistema e até com outros sistemas visando alcançar o propósito maior do sistema jurídico em si, qual seja, o de contribuir nos processos decisórios que viabilizam o convívio social regido pela auto-organização. É preciso que a argumentação jurídica evite respostas fixas e rígidas e busque aquelas coerentes com o sistema jurídico que não se subsumi às regras legais, mas que também abriga outros elementos, como os princípios gerais e a equidade.

A responsabilidade civil também é um sistema integrado por impulsos discordantes, espontâneo, aberto, complexo, sinergético, voltado a assegurar estabilidade social. A este também se aplicam a lógica e os paradigmas propostos pela teoria dos sistemas dinâmicos. Vale dizer, a responsabilidade civil é muito mais que um conjunto de elementos e teorias estáticas. Apesar de muitas vezes ser descrita como um sistema, raramente ela é examinada como tal. A maioria das teorias busca explicar a legislação, a estrutura e as funções da responsabilidade civil, mas não suas dinâmicas internas.

Alan Calnan, debruçando-se sobre os “torts” do common law, sustenta serem eles uma estrutura de alocação dos prejuízos derivados de um encontro social em que alguém sofre danos. Eles servem para articular a coerência do sistema em que coexistem posições adversariais.

Desse ponto de vista, o sistema do tort é mais que a legislação de regência, pois é um perpétuo processo para coordenar e reconciliar conflitos em diferentes níveis, marcado por prévios aportes teóricos, doutrinas e práticas, que se ajustam para absorver novos influxos que redirecionam a adequada alocação de prejuízos.

A responsabilidade civil também opera como um sistema complexo e holístico, como uma rede elementos, coerentemente organizados e interligados a outros sistemas visando alcançar um objetivo que, basicamente, é perpetuar sua própria existência. Os elementos do sistema, se considerados isoladamente, podem chocar-se entre si ou com os objetivos do sistema. Como são suas partes integrantes, o sistema precisa adaptar-se ou reinventar-se para manter-se. Isso explica a volatilidade dos sistemas, que constantemente estão a organizar as suas desordens intrínsecas, com base em princípios universais como complementaridade dos opostos.

Segundo Alan Calnan, o tort, e analogamente, a nosso ver, a responsabilidade civil, não é somente uma construção jurídica, mas um sistema natural complexo, interligado e coordenado com outros sistemas, voltado a assegurar o bem-estar humano em sociedade. O sistema conecta-se com outros que lhe são perimetrais e relacionados aos poderes públicos que limitam o sistema de tort. O Poder Executivo impõe comandos e punições, o Legislativo cria normas e convenções relacionadas ao tort e o Judiciário interpreta e operacionaliza os princípios que asseguram o funcionamento do sistema.

Do ponto de vista interno, o sistema de tort não é monolítico, mas abriga três subsistemas: no centro, um sistema de resolução de conflitos ao quais os particulares acorrem para resolver suas disputas; ele é envolto por um sistema judiciário mais amplo, que se baseia em normas e precedentes para regular o caso concreto e traçar parâmetros para futuros casos semelhantes; esse sistema público, por sua vez, está inserido em um sistema sociocultural de valores, que informa e limita as camadas inferiores. Para entender como o sistema opera, é preciso examinar cada uma dessas instâncias.

Danos resultam de um infortunado encontro entre particulares, causando incômodo a ambos porque surgem interesses contrários, egoístas e conflitantes. Essas partes buscam o auxílio de advogados. Esses terceiros, por sua vez, passam a conduzir as ações das partes e escalam a questão a nível estatal, no Poder Judiciário. Este exerce duas funções: a de fornecer as regras básicas para disputa e a de prover premissas legais para orientar a resolução do conflito. O Estado não aplica essas regras dogmaticamente, mas empodera os juízes para sintetizar, interpretar e adequar ditos preceitos ao caso concreto. Tudo é contido e coordenado por um ritual restaurativo: quando é feita a narrativa do caso diante do julgador, há uma abertura para o aspecto emocional, enraizado nos valores sociais. Essa permeabilidade aos aspectos morais da narrativa faz, muitas vezes, haver uma acomodação sistemática pelo temperamento dos argumentos jurídicos por valores sociais.

O sistema de resolução de conflitos entre particulares na responsabilidade civil também influencia o sistema estatal de criação do Direito porque recebe os sinais das patologias sociais. Os julgadores devem aplicar as regras e os precedentes necessários à solução do problema eventualmente os coordenando com julgados anteriores que lhe são contrários para modular o sistema em si. Assim, o sistema de criação de regras e o de resolução de conflitos se retroalimenta reciprocamente, de forma a ligá-los aos valores culturais que os circundam.

A dinâmica descrita acima não é peculiar ao sistema de responsabilidade civil, mas também se observa em outros campos do Direito.

O que distingue o sistema de responsabilidade civil dos demais são suas regras, suas teorias e seus princípios, que definem as situações em que se pode alocar a responsabilidade por danos em esfera jurídica distinta daquela em que ele se operou. As regras de responsabilidade civil, que visam recompensar comportamentos benéficos e punir ou reprimir condutas que causem danos a outrem, são inspiradas em valores de cooperação, cuidado, lealdade e integridade. Para proteger e assegurar a liberdade, as normas criam esses elementos antagônicos, mas interconectados e coexistentes, que asseguram as liberdades mútuas. Ocorre que, quando surgem confrontos entre as partes, o julgador precisa reconciliar direito e deveres, sopesando-os e coordenando-os.

A natureza adversaria da responsabilidade civil não expõe sua verdadeira identidade. Porque a responsabilidade por danos pode ser imputada a outrem com base em diferentes teorias, que se distinguem com base no nexo de imputação por dolo, por culpa ou por comandos normativos que estabelecem casos de responsabilidade objetiva, doutrinadores, advogados e julgadores consideram que essas teorias a definem. Todavia, conforme Alan Calnan, os torts, e, novamente por analogia, a responsabilidade civil, funda-se em verdades mais profundas. Cada uma das formas de responsabilização se conecta com um componente distinto da moralidade humana. Malfeitos intencionais são instantaneamente reprovados, com fulcro nos valores fundamentais da humanidade que rechaçam atitudes que firam, ofendam, logrem ou degradem o outro. Atos negligentes são diferentes porque não intentam lesar ou ferir a autonomia e a dignidade dos outros, por isso podem ensejar reações menos gravosas. Isto contempla um senso binário de moralidade, pois, como a mera negligência não induz uma resposta intuitiva negativa, atribui-se uma discricionariedade maior ao julgador para definir suas consequências. Com base em Standards sociais de razoabilidade, ele promove a harmonia do sistema reforçando seu aspecto solidário.

Por fim, a razão de ser da responsabilização objetiva não é tão óbvia ou uniforme. Nem sempre ela recai sobre o autor da conduta e nem sempre deriva de uma conduta reprovável. Às vezes, surge apenas para regular um desequilíbrio de forças, como nas relações consumeristas. Em geral, a responsabilidade objetiva se funda em razões políticas que investigam as fissuras do sistema e submetem-nas a um escrutínio diverso daquele que moralmente sustenta as demais formas de atribuição de responsabilidade, criando novos padrões para a solução de conflitos.

O problema que se coloca é que, geralmente, essas três bases de imputação foram transformadas em uma trilogia classificatória estanque que encerra a explicação do sistema cível de responsabilização na análise de seus próprios elementos, roubando-lhe as bases que o conectam com a sociedade e as pessoas que a compõem. São vistas como categorias rígidas e estáveis, ignorando as sinergias que podem abalá-las e ensejar mudanças.

Como a responsabilidade civil é um sistema de sistemas, seus contornos são indefinidos. As formas de responsabilidade baseadas nos diversos nexos de imputação são partes operantes de um mesmo sistema cujo objetivo, segundo Calnan, não é a justiça corretiva, a justiça distributiva, a geração de precedentes ou a eficiência econômica. É, antes, a dinâmica de coordenação de conflitos pessoais, políticos, legais, sociais e até morais que lhe são subjacentes no decorrer do tempo, implicando a altercação de padrões de atividade quando for necessário reconciliá-los para garantir manutenção da integridade do sistema.

Não há conclusão para essas reflexões. O objetivo foi lançar luzes à premente demanda por um olhar interdisciplinar e sistêmico para a responsabilidade civil, integrando-a à percepção que vem grassando nas ciências físicas, biológicas e sociais, de que nada se explica somente por teorias abstratas e atomistas fulcradas na análise isolada de elementos intrínsecos. Nesse afã, a teoria dos sistemas dinâmicos é uma lente de grande valia porque parte de premissas como a complexidade, a abertura e a conservação dos sistemas para reconhecer padrões de interação e mudança que obedecem a regras universais, como, por exemplo, é preciso complexificar para simplificar; pequenas alterações podem acarretar grandes mudanças na estrutura e na dinâmica dos sistemas, para o bem ou para o mal; sistemas complexos tendem a mover-se em direção à coerência e à integração; e intervenções em sistemas complexos quase sempre resultam em consequências não previstas e indesejadas.

Em ambientes acadêmicos e profissionais, entender e abordar as questões a partir de uma perspectiva sistêmica é uma habilidade essencial. Quiçá este pequeno escrito possa instigar melhores resultados na necessária empreitada de evoluir na autêntica análise sistêmica do Direito, em especial da responsabilidade civil. De novo, ressoamos Alan Calnan, que leciona que, apesar de as disposições legais poderem ser únicas e diversificadas, continuam a ser um produto previsível da dinâmica do sistema. As regras escalam de níveis mais baixos para níveis mais altos, deixando a sua impressão em cada camada do sistema, em seus subsistemas e em sistemas periféricos, informando-os e alterando-os ao mesmo tempo em que o próprio sistema é informado e alterado.

Assim como as nossas leis homeostáticas moldam as nossas instituições jurídicas, as nossas instituições jurídicas afetam os nossos valores culturais, as nossas normas sociais e até o que ele chama de nosso instinto biológico de legalidade.

 

REFERÊNCIAS

CALNAN, Alan. Tort as systems. Southern California Interdisciplinary Law Journal, Vol. 28, 2019.

CALNAN, Alan. Holistic tort theory. Southern California Law Review, Vol. 49, 2020.

COLEMAN, P. T. The way out: how to overcome toxic polarization. New York: Columbia University Press, 2021.

COLEMAN, P. T.; REDDING, N.; FISHER, J. Understanding intractable conflict. In: SCHNEIDER, A.; HONEYMAN, C. (eds.). The negotiator’s desk reference. Chicago: American Bar Association Books, 2017.

LEE, Orlan. Systems dynamics in the law: a comparative approach to certainty in the common law and reviewability of past decisions (2004).

Oxford University Comparative Law Forum 5 at ouclf.law.ox.ac.uk. MEADOWS, Donella. Thinking in systems – A primer. London: Earthscan, NICOLIS, G.; PRIGOGINE, I. Exploring complexity. New York: Freeman, 1989.