A RESPONSABILIDADE CIVIL E OS INFLUENCIADORES DIGITAIS
Ricardo Rocha Leite
Este artigo tem por objetivo trazer uma breve análise da possível responsabilidade civil dos influenciadores digitais em um contexto publicitário. Na sociedade contemporânea, a publicidade é um instrumento de formação do consentimento do consumidor. Com a massificação das relações negociais e a divulgação de produtos e serviços por meio de sofisticadas técnicas persuasivas, há necessidade de um maior controle jurídico da publicidade[1].
O CDC, ao tratar da publicidade, prevê alguns princípios, estabelece uma regra diferenciada para distribuição do ônus da prova e traz os conceitos de publicidade enganosa e de publicidade abusiva. Dentre os princípios estabelecidos pelo Código, o primeiro deles é a vinculação do fornecedor àquilo que foi veiculado (art. 30). Como prática comercial, a publicidade é dotada de um caráter pré-contratual. Se o contrato de consumo vier a ser celebrado, o fornecedor, via de regra, fica obrigado aos termos do que foi estabelecido no anúncio publicitário.
Outro princípio importante para a controle jurídico da publicidade é a previsão contida no art. 36 do CDC, que descreve a necessidade de identificação da publicidade. Com base na boa-fé objetiva, o consumidor deve, ao receber a mensagem, identificar, imediatamente, que aquela comunicação está voltada para a aquisição de um produto ou serviço.
Busca-se o controle da publicidade velada ou oculta.
Ainda no âmbito protetivo do Código, há uma regra da distribuição do ônus da prova no contexto publicitário. O art. 38 do CDC atribui o ônus da prova da veracidade da informação ou da comunicação publicitária e a correção destas ao fornecedor. De acordo com a redação do dispositivo, é possível constatar que cabe ao consumidor, tão somente, o ônus da afirmação de que a informação ou a comunicação publicitária são inverídicas ou incorretas, para que recaia sobre o fornecedor o ônus da comprovação em sentido contrário àquilo que foi informado pelo consumidor.
O CDC utiliza conceitos distintos para a publicidade enganosa e a abusiva. A primeira emprega o critério da falsidade ou do vício do consentimento do erro sobre o objeto previsto no CC (art. 139, III). O fornecedor utiliza-se de ardil capaz de induzir o consumidor a acreditar nas características de determinado produto ou serviço. A publicidade abusiva atenta contra os valores éticos da sociedade e revela comportamentos que induzem o consumidor à possível prática de atos contrários à sua saúde e segurança. Ambas são reconhecidas como publicidade ilícita.
Além do âmbito jurídico de controle, há um sistema de auto-regulamentação da publicidade. Há uma disciplina privada da publicidade por meio do Conar (Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária) e do Código Brasileiro de Regulamentação Publicitária[2]. Dessa forma, é possível afirmar que vigora um sistema misto de controle da publicidade, em que se conjuga auto-regulamentação e participação da Administração e do Poder Judiciário.
Neste contexto de publicidade e de técnicas persuasivas para o incremento do consumo, surgem os influenciadores digitais. Segundo Marcos Inácio Severo de Almeida, Ricardo Limongi França Coelho, Celso Gonçalves Camilo-Junior e Rafaella Martins Feitosa de Godoy, “influenciadores digitais são formadores de opinião virtuais que representam uma alternativa para empresas que confiam na comunidade reunida em torno desses perfis como público-alvo da divulgação”[3]. Em clássico escrito, Paulo Jorge Scartezzini Guimarães tratou da publicidade e da responsabilidade civil das celebridades que dela participam[4].
Embora celebridades e influenciadores digitais, essencialmente, possam ser sujeitos distintos, ou seja, uma celebridade pode não ser influenciador digital, há um inegável ponto de contato entre eles: a finalidade de aproximar o consumidor do produto ou serviço veiculado. Há um propósito específico na utilização deste intermediador, qual seja atuar na formação do convencimento do consumidor, para que a sua tomada de decisão seja direcionada para a aquisição de determinado produto ou serviço. De acordo com Caio César do Nascimento Barbosa, Michael César Silva e Priscila Ladeira Alves de Brito[5]:
[…] Ante as inovações da era digital, surge figura similar às celebridades, os chamados influenciadores digitais (digital influencers), indivíduos que, via de regra, saiu do anonimato e por meio de determinados atributos, como carisma, criatividade e credibilidade, em áreas específicas, conquistaram milhares de seguidores em redes sociais, tornando-se, pelas novas gerações, modelos a serem seguidos.
A utilização dessa técnica para incremento de consumo pode gerar um desvio na racionalidade do consumidor, com a construção de vieses (desvios cognitivos), seja por meio de um viés de adesão (decidir de uma determinada forma porque outras pessoas assim o fazem), seja por meio de um viés de confirmação (tomar uma decisão na crença de que o produto ou serviço é atestado por aquele intermediador).
Com base em toda essa proporção assumida pelos influenciadores digitais, surge a discussão em torno da sua responsabilização civil. No caso, a responsabilidade civil pode ser discutida à luz do controle jurídico existente sobre a publicidade, bem como sobre a existência de um fato ou vício do produto ou serviço.
Inicialmente, é importante destacar que o influenciador digital é considerado fornecedor por equiparação, o que permite o seu enquadramento em uma relação jurídica de consumo. Segundo Leonardo Roscoe Bessa, “o CDC, ao lado do conceito genérico de fornecedor (caput, art. 3º), indica e detalha, em outras passagens, atividades que estão sujeitas ao CDC”[6]. Para o autor, todos aqueles que participam do contexto publicitário, direta ou indiretamente, são considerados fornecedores equiparados.
A responsabilidade civil decorrente de um fato do produto ou do serviço dispensa a comprovação do elemento culpa. É importante abordar o conceito criado pela doutrina de acidente de consumo, que está voltado para a proteção da incolumidade físico-psíquica do consumidor.
Trata-se da tutela da saúde e da segurança do consumidor, cujos defeitos de concepção, produção ou informação atuam em desconformidade com a legítima expectativa.
As hipóteses de vícios do produto ou do serviço estão previstas, respectivamente, nos arts. 18 e 20 do CDC. Os vícios podem ser de qualidade ou de quantidade. Os primeiros encontram-se em desconformidade com a informação prestada e, na segunda espécie, há diversidade do peso ou da medida. Nos vícios de qualidade, há disparidade do produto ou do serviço quanto ao que foi ofertada e a legítima expectativa do consumidor, a redução do valor daquele ou a informação prestada não se mostrou clara e adequada.
Em relação ao contexto publicitário, caso haja uma publicidade ilícita, seja porque se trata de publicidade enganosa ou abusiva, ou mesmo uma publicidade velada ou oculta, há a prática de um ato ilícito, violador da boa-fé objetiva. No caso, basta a veiculação da publicidade sem identificação, enganosa ou abusiva, sem a necessidade da demonstração do dolo, para que se possa aferir a existência da responsabilidade civil do influenciador digital.
Contudo, quando a responsabilidade civil é tratada na perspectiva de um fato ou vício do produto ou serviço, a discussão assume contornos mais específicos. Em relação ao fato do produto, o CDC estabelece uma responsabilidade diferenciada para o comerciante (art. 13). No que diz respeito ao fato do serviço, há a responsabilidade subjetiva para o profissional liberal (art. 14, § 4º). Além do mais, o defeito pode ter como origem a falta de informação ou o próprio defeito em si. Nesse contexto, chega-se a sustentar a inexistência de responsabilidade daquele que veicula a publicidade[7], ou até mesmo a responsabilidade subjetiva no caso de fato de serviço, pois o influenciador digital pode ser um profissional liberal.
Quanto ao vício do produto ou serviço, o CDC não traz diferenciação em relação às espécies de fornecedores, o que possibilitaria o enquadramento da responsabilidade objetiva. Assim, quando existe uma disparidade entre aquilo que é ofertado e aquilo que é entregue, há um maior consenso sobre a possível responsabilização civil, em decorrência de os influenciadores digitais promoverem o produto ou serviço e influenciarem o consumidor na tomada de decisão, o que atrairia a ideia do risco-proveito.
Diante de tudo o que foi exposto, conclui-se que o influenciador digital pode ser enquadrado como fornecedor por equiparação e a ela ser aplicado o CDC. No contexto da publicidade ilícita, a responsabilidade civil decorre da prática de ato contrário à lei e a sua obrigação de indenizar pode atingir o âmbito individual e/ou coletivo. No caso de a responsabilidade civil ser tratada à luz do fato do produto ou do serviço, a discussão sobre a responsabilidade civil assume aspectos mais específicos e propõe-se a análise casuística da situação.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Marcos Inácio Severo de; COELHO, Ricardo Limongi França; CAMILO-JUNIOR, Celso Gonçalves; GODOY, Rafaella Martins Feitosa. Quem lidera sua opinião? Influência dos formadores de opinião digitais no engajamento. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro: Anpad, v. 22, n. 1, 2018.
BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2, n. 2, p. 01-21, maio/ago. 2019.
BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. In: MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (org.). Doutrinas essenciais de direito do consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. III, 2011.
BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In: MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (org.). Doutrinas essenciais de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. I, 2011.
GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
SILVA, Michael Silva; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na “era das lives”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/328701/a-responsabilidade-civil-dos-influenciadores-digitais-na–era-das-lives. Acesso em: 11 dez. 2021.
[1] BENJAMIN, Antônio Herman V. O controle jurídico da publicidade. In: MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (org.). Doutrinas essenciais de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. III, 2011
[2] Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Código. São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.conar.org.br/codigo/codigo. php. Acesso em: 11 dez. 2021.
[3] ALMEIDA, Marcos Inácio Severo de; COELHO, Ricardo Limongi França; CAMILO-JUNIOR, Celso Gonçalves; GODOY, Rafaella Martins Feitosa. Quem lidera sua opinião? Influência dos formadores de opinião digitais no engajamento. Revista de Administração Contemporânea, Rio de Janeiro: Anpad, v. 22, n. 1, p. 16, 2018.
[4] GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 161.
[5] BARBOSA, Caio César do Nascimento; BRITTO, Priscila Alves de; SILVA, Michael César. Publicidade ilícita
e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 2,2, p. 01-21, maio/ago. 2019. Também deve ser analisada a publicação de Michael César Silva,Caio
César do Nascimento Barbosa e Glayder Daywerth Pereira Guimarães intitulada A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na “era das lives”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-deresponsabilidade-civil/328701/a-responsabilidadecivil-dos-influenciadores-digitais-na–era-das-lives. Acesso em: 11 dez. 2021.
[6]BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. In: MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno (org.). Doutrinas essenciais de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. I, 2011. p. 1025.
[7] GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 221.