REPATRIAÇÃO DE VALORES: INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 11 DA LEI Nº 13.254/2016
Ives Gandra da Silva Martins
Tema que tem levantado dúvidas sobre sua constitucionalidade e que merece uma leitura construtiva diz respeito à repatriação de valores concernentes a políticos não investigados ou denunciados, com recursos no exterior anteriores a seu ingresso na vida pública.
Antes de abordar este tema, entretanto, algumas considerações preliminares fazem-se necessárias [1]– [2].
A primeira delas é que, para solução da matéria objeto da Lei nº 13.254/2016, propus solução mais adequada, que poderia ter evitado qualquer questionamento judicial, muito embora os questionamentos que surgiram acerca do texto promulgado sejam, a meu ver, improcedentes e sem viabilidade de proteção jurisdicional.
Sugeri, apenas, que fosse extinta qualquer penalidade, mediante o pagamento do tributo e da multa de mora, algo que é previsto para adimplir espontaneamente qualquer tributo não declarado ou em atraso.
Escrevi:
“Parece-me que a solução ideal seria outra. Pagamento integral do imposto de renda (27,5{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6}), com a multa moratória prevista na legislação, no caso de denúncia espontânea, como faria qualquer pessoa que tivesse que pagar o imposto em atraso, antes de fiscalização. Eliminada estaria qualquer outra punição. Não haveria nenhum privilégio para quem enviou dinheiro para fora (imposto mais multa moratória) e a própria extinção da punibilidade, que já é prevista na legislação aplicável, estender-se-ia a outras eventuais infrações decorrentes da remessa irregular. À evidência, dinheiro resultante de narcotráfico, corrupção ou terrorismo não seria anistiado criminalmente, nem gozaria da possibilidade de repatriação, pois deveria ser inteiramente confiscado. Parece-me uma solução mais justa, que poderia fortalecer o conturbado caixa do governo, enquanto não resolver enxugar a esclerosada máquina, libertando-se dos mais de 100 mil ‘amigos do rei’ (comissionados) que incham as estruturas burocráticas da União.” [3]
Ninguém contestaria.
A fórmula adotada, todavia, não é ilegal e, nada obstante ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Popular Socialista esteja em tramitação perante o Pretório Excelso, a fragilidade de seus argumentos não me fazem vislumbrar provimento. Assim sendo, a solução aprovada pelo Parlamento brasileiro e sancionada pela Presidente parece-me correta [4].
A segunda observação é que, uma vez demonstrada a licitude dos recursos não declarados, todos os que estiverem em igual condição terão que se beneficiar dos mesmos direitos, por força do inciso II do art. 150 da CF, assim redigido:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”
Interpretei-o como se segue:
“‘Equivalente’ é um vocábulo de densidade ôntica mais abrangente do que ‘igual’. A igualdade exige absoluta consonância em todas as partes, o que não é da estrutura do princípio da equivalência. Situações iguais na equipolência, mas diferentes na forma, não podem ser tratadas diversamente. A equivalência estende à similitude de situações a necessidade de tratamento igual pela política impositiva, afastando a tese de que os desiguais devem ser tratados, necessariamente, de forma desigual. Os desiguais, em situação de aproximação, devem ser tratados, pelo princípio da equivalência, de forma igual em matéria tributária, visto que a igualdade absoluta, na equivalência, não existe, mas apenas a igualdade na equiparação de elementos (peso, valor, etc.). Qual foi a razão para tal elasticidade ofertada pelo constituinte, para proteção dos contribuintes, vedando ao poder tributante adoção de técnica diversa?
A tradição brasileira de pouco respeito aos direitos dos cidadãos em matéria tributária – o Presidente Collor acaba de pedir ao Congresso a redução dos direitos dos contribuintes para fazer uma reforma tributária, que tem na essência o princípio de ‘maiores tributos, menores direitos’ – certamente levou o constituinte a amarrar os poderes tributantes (três sobre o mesmo ‘pagador de tributos’) aos grilhões seguros do princípio da igualdade, evitando simultaneamente que: a) a título de tratamento desigual dos desiguais, se multiplicassem as hipóteses de situações diversas para neutralização do princípio da igualdade; b) servisse a redução legislativa do princípio da igualdade como forma de tratamento aplicável às perseguições fiscais em relação a setores, que estivessem em conflito com os governos.
Entendo ter sido esta a razão fundamental que levou o constituinte, em relação ao princípio da igualdade, seja em seu aspecto subjetivo, seja naquele objetivo, a proteger todos os contribuintes contra o tratamento desigual, exigindo que este tratamento deva ser igual não apenas para situações iguais, mas para situações equiparadas, equivalentes, com núcleo comum de identidade. Compreende-se assim por que o discurso do inciso II é concluído com a afirmação de que a situação equivalente será detectada independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, dos títulos ou dos direitos dos contribuintes.
Em outras palavras, quaisquer que sejam os contribuintes, quaisquer que sejam os fatos imponíveis, o tratamento isonômico se impõe, vedada qualquer forma de atuação discriminatória.” [5]
Com efeito, todos os contribuintes que se encontrem em “situação equivalente” [6], para gozar de um benefício ou cumprir uma obrigação, devem ser tratados igualmente, nenhum deles podendo ser discriminado, pois a Lei Suprema, como cláusula pétrea, proíbe distinção em razão de “ocupação profissional” ou “função exercida“, independentemente da denominação jurídica “dos rendimentos, titulares ou outros“.
Cláusula pétrea, por força do § 4º, inciso IV, do art. 60 da Carta Maior, tal dispositivo vai além da proteção ao princípio da igualdade (similitude absoluta entre elementos), estendendo-se ao da equivalência (similitude por assemelhação) [7].
Por tal princípio, na época de obtenção de recursos ou patrimônio com origem lícita, embora não declarados à Receita, todos aqueles que assim agiram sem qualquer impedimento de natureza legal estão rigorosamente habilitados para usufruto da lei, mesmo que, posteriormente, possam ter incorrido em ações que possam ser consideradas impeditivas de tal gozo, mas que não tiveram qualquer influência na aquisição dos bens objeto da concessão legislativa, no momento em que foram adquiridos.
Admitindo, por hipótese extrema e para fins de mera argumentação, que alguém obtivesse recursos lícitos, sem nunca os ter utilizado, mas também não declarados, e que viesse a se tornar, posteriormente, um narcotraficante, deveria ser punido pelos crimes decorrentes do narcotráfico, mas não poderia ser excluído de benefícios da Lei nº 13.254/2016, pois a origem de seus recursos teria sido lícita e eles não teriam sido utilizados para a prática de suas operações criminosas.
A própria Exposição de Motivos da referida Lei esclarece:
“Em seu art. 1º, o projeto de lei destaca que o regime de regularização apenas se aplica aos ativos, bens ou dinheiro que sejam provenientes de atividade lícita, mas cuja existência não tenha sido declarada em tempo aos órgãos públicos brasileiros. Estão totalmente excluídas do âmbito da norma quaisquer condutas que envolvam: tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; terrorismo e seu financiamento; contrabando ou tráfico de armas; extorsão mediante sequestro; crimes contra a administração pública; crime contra o sistema financeiro nacional; organizações criminosas; crimes de particular contra a administração pública estrangeira; entre outros recursos financeiros que sejam provenientes de atos criminosos.” [8] (grifos meus)
A Exposição de Motivos declara que tais recursos, se “provenientes de atos criminosos“, inviabilizam o gozo dos benefícios da lei.
A contrario sensu, a Exposição está dizendo que, se os recursos, independentemente da condição do agente, forem legítimos, o gozo de tais estímulos está assegurado. Quem exerceu função pública, não era narcotraficante ou terrorista à época teria que ter tratamento rigoroso, igual a de todos os outros contribuintes pelo princípio da equivalência. A eles não se aplicaria o art. 11 da Lei nº 13.254/2016, que adiante comentarei.
É que, pelo princípio da equivalência constitucional, o que prevalece é a igualdade na condição tipificada no momento da ação, e não na conduta posterior do agente. A primeira ação – obtenção de recursos – terá que ter tratamento jurídico absolutamente igual ao dispensado a qualquer outro contribuinte colocado em idêntica situação quanto à origem de recursos, que devem ser sempre lícitos.
Alguém que ingressou na política após ter auferido recursos de origem lícita poderá usufruir dos benefícios de lei, pois a única condição é, precisamente, a licitude da origem de seus recursos.
Mais do que isto, se a própria lei fizesse discriminações, seria inconstitucional, pois não poderia criar qualquer desigualdade não permitida pela Lei Suprema [9].
Todos, em condições idênticas ou equivalentes, no momento de obtenção de recursos ou patrimônio não declarados, devem ter idêntico tratamento, por força do inciso II do art. 150 da CF, que é norma imodificável da Lei Maior, não podendo ser excluídos do benefício por legislação infraconstitucional [10].
Lembro que a lei define as hipóteses em que é permitido usufruir de seus benefícios, nos arts. 1º, 2º e 3º, assim como sua não aplicação aos casos do § 5º do art. 1º e do art. 11 da referida Lei [11].
Dedicar-me-ei, pois, à luz das premissas estabelecidas nas considerações iniciais, a examinar tais artigos.
O art. 1º da Lei nº 13.254/2016, retro citado, claramente, impõe, como primeira condição para usufruir dos benefícios da lei, que os recursos sejam “de origem lícita“, esclarecendo que tais recursos teriam que ter sido “não declarados” ou declarados “com omissão” ou “incorreção” em relação a “dados essenciais“, “remetidos” ou “mantidos” ou “repatriados” por “residentes” ou “domiciliados no país“, conforme a legislação “cambial ou tributária” de regência.
A licitude deve corresponder ao acatamento das regras do direito privado, que não podem ser alteradas pela legislação tributária, conforme preceituam os arts. 109 e 110 do CTN [12].
Se tais operações forem legítimas do ponto de vista da lei civil, serão, necessariamente, para efeitos da disciplina da lei, consideradas lícitas.
Como se percebe, os recursos ou o patrimônio envolvido não podem ter como origem, por exemplo, a prática de terrorismo, narcotráfico ou corrupção.
É de se lembrar que tais expressões sequer constam da lei para exclusão dos benefícios. Só da Exposição de Motivos.
O elemento essencial a ser analisado no dispositivo fulcral de toda a lei é, pois, a origem dos recursos. Sendo lícita, não há o que se discutir. A condição do agente que os obteve é fator despiciendo, pois a lei apenas exige que a origem dos recursos seja lícita.
À evidência, mesmo em se tratando de negócio com origem lícita, se o dinheiro utilizado para sua celebração não for lícito, isto é, estiver envolvido, ainda que indiretamente, em crimes de que tiver resultado condenação ou decorrer de uma das três chagas que os governos em todo o mundo têm procurado combater (corrupção, narcotráfico e crimes paralelos, assim como o terrorismo), a origem poderá ser diretamente lícita, mas ilícita indiretamente. Entendo que, para estas hipóteses, a lei considera não lícita a origem [13] desde que tenha havido condenação pelos crimes elencados no art. 2º, inciso II.
É esta a leitura que fica do art. 2º, nada obstante a sua amplidão, ao definir o tipo de recursos, de patrimônio e sua origem, principalmente no inciso II, cuja dicção repito:
“Art. 2º Consideram-se, para os fins desta Lei:
(…)
II – recursos ou patrimônio de origem lícita: os bens e os direitos adquiridos com recursos oriundos de atividades permitidas ou não proibidas pela lei, bem como o objeto, o produto ou o proveito dos crimes previstos no § 1º do art. 5º;”
Nada obstante o triste retrato que a Operação Lava Jato está a desventrar sobre o nível de corrupção existente no país – discordo apenas da tipificação adotada pelo Juiz Sérgio Moro, pois creio que a figura é de concussão, e não de corrupção -, ainda acredito que a maioria dos políticos e dos servidores públicos não é corrupta [14].
Pelo texto legal, todavia, mesmo que o agente seja um político ou um servidor público corrupto, se a origem do patrimônio for lícita, e não produto da corrupção, sendo “a não declaração” a única irregularidade sanável pela Lei nº 13.254/2016, poderá usufruir de seus benefícios, pois cuida a lei da origem dos recursos, apenas excluindo do benefício as hipóteses do § 5º do art. 1º, como redigido abaixo, em havendo condenação:
“§ 5º Esta Lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal” [15],
e do art. 11, cuja dicção repito:
“Art. 11. Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.”
É interessante que a hipótese mencionada no referido parágrafo abrange aquelas do § 1º do art. 5º, este assim redigido:
“§ 1º O cumprimento das condições previstas no caput antes de decisão criminal, em relação aos bens a serem regularizados, extinguirá a punibilidade dos crimes previstos:
I – no art. 1º e nos incisos I, II e V do art. 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990;
II – na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965;
III – no art. 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV – nos seguintes arts. do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando exaurida sua potencialidade lesiva com a prática dos crimes previstos nos incisos I a III:
- a) 297;
- b) 298;
- c) 299;
- d) 304;
V – (VETADO);
VI – no caput e no parágrafo único do art. 22 da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986;
VII – no art. 1º da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes previstos nos incisos I a VI;
VIII – (VETADO).“
A análise dos dois dispositivos impõe a adoção do disposto no art. 111 do CTN, que sujeita à interpretação literal a norma que trate de dispensa de obrigações acessórias, suspensão ou exclusão de tributo ou outorga de isenção. Ou seja, a interpretação no tocante a essas matérias há de ser estrita, ou seja, vinculada exclusivamente a aquilo que está previsto na lei. Não se trata, portanto, de exegese meramente gramatical. A doutrina considera que se trata de interpretação sistemática, mas com conteúdo não extensivo.
Ora, no caso concreto da Lei de Repatriação, a clareza dos termos inclusão e exclusão permite a aplicação do art. 111 do CTN, sem qualquer esforço exegético. Claramente, o que está escrito é o que prevalece [16]. A condenação com trânsito em julgado exclui o benefício. Prevalece o princípio da coisa julgada. O processo em andamento não o exclui, por imperativo do princípio da benigna amplianda do art. 106, inciso II, do CTN [17].
A exclusão dos benefícios, na hipótese do § 5º do art. 1º, e não na hipótese do inciso II do art. 2º com mesma tipificação penal, está no encerramento do processo penal com condenação, no primeiro caso, e de ausência de condenação, no segundo.
A primeira hipótese pressupõe uma condenação formal do contribuinte que mantém recursos no exterior; na segunda, a condenação inexiste, por estar o processo em curso ou sequer iniciado.
Nesta linha de raciocínio, compreende-se a disposição do § 1º do art. 5º, que extingue a punibilidade, na esteira do art. 138 do CTN, ao determinar que:
“Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.
Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.” [18]
Para concluir o comentário a este dispositivo, reitero que a Lei cuida da licitude da origem de recursos e patrimônio, de sua não declaração, independentemente da condição do agente. A única hipótese de exclusão do usufruto dos benefícios – de duvidosa legalidade – cuida da condenação de pessoas por crimes elencados no § 1º do art. 5º da referida Lei, se, na origem, houver recursos ilícitos ou decorrentes de delitos. Se não houver condenação, mesmo havendo os crimes elencados no § 1º do art. 5º, o gozo dos benefícios está assegurado.
A origem dos recursos, e não a condição do autor no momento em que obteve os recursos, é o pressuposto do gozo do benefício instituído pela Lei de Repatriação [19], incluindo-se nas hipóteses hospedadas pela lei os crimes mencionados no § 1º do art. 5º, se seu autor ainda não tiver sido condenado.
Passo, agora, ao exame de outro dispositivo.
Alguém que exerça uma função pública, sem nenhuma contestação de sua conduta, com moralidade, eficiência, impessoalidade, publicidade de seus atos e legalidade, nas funções para as quais foi escolhido, não pode ser excluído dos benefícios apenas em razão da função exercida, principalmente se os recursos e o patrimônio possuídos foram adquiridos antes do exercício de qualquer função pública [20].
Reitero a respeito a redação do art. 11 da Lei nº 13.254/2016, assim redigido:
“Art. 11. Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.”
Feriria, de longe, este dispositivo o princípio da igualdade, se se adotasse uma interpretação extensiva.
Tal dispositivo só pode ser entendido à luz dos dispositivos retro analisados. Sua intenção, nitidamente, é não permitir que políticos, que tivessem obtido recursos espúrios colocados no exterior, no exercício de função pública, se beneficiassem dos incentivos da Lei.
Ora, se mesmo para criminosos não julgados é possível beneficiar-se da Lei, que se dirá de servidores públicos não criminosos, não corruptos, que tinham recursos de origem lícita no exterior, muito antes do ingresso na vida pública.
Este artigo, a meu ver, só comporta uma exegese. Para políticos que se enquadrarem nas hipóteses do § 1º do art. 5º (condenados ou não) e nos crimes contra a Administração Pública, bem como seus parentes, não há possibilidade de beneficiar-se das disposições legais de repatriação. Quando a origem é lícita e anterior à entrada na vida pública, não se aplica o art. 11, pois de forma nítida, clara e inequívoca o princípio da isonomia está assegurado pela Lei Suprema. Para o diploma em exame, a origem lícita dos recursos é a única justificativa.
[1] O art. 1º, caput, da Lei nº 13.254/2016 tem a seguinte dicção:
“Art. 1º É instituído o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), para declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no País, conforme a legislação cambial ou tributária, nos termos e condições desta Lei.”
[2] O § 5º do art. 1º da referida Lei está assim redigido:
“§ 5º Esta Lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal:
I – (VETADO); e
II – cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do art. 5º, ainda que se refira aos recursos, bens ou direitos a serem regularizados pelo RERCT.” (grifos meus)
[3] Artigo A Polêmica de um Projeto Necessário (Jornal Folha de S. Paulo, 17.08.2014, p. 3 – Opinião).
[4] A procedência pedida na ação é a seguinte:
“(iv.i) declarar a inconstitucionalidade do art. 4º, § 1º, da Lei nº 13.254, de 13.01.2016;
ou, subsidiariamente, dar interpretação conforme a Constituição ao art. 4º, § 1º, da Lei nº 13.254, de 13.01.2016, para fixar o entendimento de que: as informações constantes na declaração não poderão ser utilizadas como único indício ou elemento para efeitos de investigação criminal, excetuados os casos de crime de lavagem de dinheiro e seu respectivo crime antecedente quando o capital não tiver origem nos crimes previstos no art. 5º, § 1º, incisos I a VI, da Lei.
(iv.ii) declarar a inconstitucionalidade do art. 6º da Lei nº 13.254, de 13.01.2016;
ou, subsidiariamente, dar interpretação conforme a Constituição ao art. 6º da Lei nº 13.254, de 13.01.2016, para fixar o entendimento de que: o montante dos ativos declarador pelo contribuinte que aderir ao RERCT estará sujeito ao pagamento de imposto de renda à alíquota padrão, vigente em 31.12.2014, respeitada a progressividade regularmente definida.
(iv.iii) dar interpretação conforme a Constituição ao art. 1º, § 1º, e ao art. 2º, inciso I, da Lei nº 13.254, de 13.01.2016, para fixar o entendimento de que: o RERCT aplica-se aos residentes ou domiciliados no país em 31.12.2014 que tenham sido ou ainda sejam proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos no período entre 01.01.2010 e 31.12.2014, ainda que, nessa data, não possuam saldo de recursos ou título de propriedade de bens e direitos.” (trecho constante do material a que tive acesso)
[5] Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 93, p. 75-77; e Caderno de Pesquisas Tributárias nº 17, coedição CEU/Resenha Tributária, 1992, p. 19-21.
[6] O Ministro Moreira Alves, ao proferir palestra no XVII Simpósio Nacional de Direito Tributário do CEU – Escola de Direito, assim se refere ao meu trabalho:
“A quarta indagação me pareceu também bastante imaginosa:
‘Havendo identidade de benefícios, é constitucional a previsão de alíquotas mais elevadas para a contribuição sobre o lucro e sobre a folha de salários devida por contribuintes pertencentes a determinados setores da atividade econômica?’
Como quanto às contribuições a que alude o art. 149 não se faz alusão apenas aos princípios que são aplicáveis, mas se alude expressamente a princípios que não são aplicáveis, surge então o problema de saber se os outros, que não foram expressamente definidos como aplicáveis, se aplicariam ou não se aplicariam.
E aí o problema está, de certa forma, também entrosado com essa questão, porque o inciso II do art. 150 diz da vedação a tratamento desigual, mas não diz que não possa haver esse tratamento em razão de determinados setores da atividade econômica (Ives diz que a expressão ‘equivalente’ é mais ampla do que ‘igualdade’). Surge então o problema de se saber se esse inciso II seria aplicável às contribuições sociais, tendo em vista a circunstância de que o art. 149 não alude a ele, mas somente aos incisos I e III desse mesmo art. 150. E aí se pergunta: e o inciso II, com isso, estaria excluído? A expressão ‘equivalente’ não teria sido posta para justamente afastar a rigidez da igualdade?”(grifos meus) (Conclusões do XVII Simpósio publicadas no Caderno de Pesquisas Tributárias, v. 18, Princípios Constitucionais Tributários, coordenação geral de Ives Gandra Martins, coed. Ed. Resenha Tributária e Centro de Extensão Universitária – CEU – Escola de Direito, São Paulo, 1993. p. 649)
[7] Prova de adoção do “princípio da equivalência” mais amplo pelo STF é o acórdão abaixo ementado
“Isonomia tributária e possibilidade de tratamento peculiar devido às características próprias das sociedades de profissionais liberais: ‘Os §§ 1º e 3º do art. 9º do DL nº 406/68, que tratam do ISS devido por sociedades civis prestadoras de serviços profissionais, foram recebidos pela CF/88. Com esse entendimento, o Tribunal manteve acórdão do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná que reconhecera à sociedade de advogados o direito de recolher o ISS pelo regime fixo anual calculado com base no número de profissionais habilitados, negando a pretensão do Município de Curitiba no sentido de cobrar o ISS sobre o rendimento bruto da sociedade, recolhido mensalmente. Afastaram-se as alegações de ofensa ao princípio da isonomia tributária (CF, art. 150, II), uma vez que os mencionados dispositivos não configuram isenção, sequer parcial, mas, sim, tratamento peculiar devido às características próprias das sociedades de profissionais liberais, tendo em vista a responsabilidade pessoal de cada profissional. Refutou-se ainda as pretendidas violações ao princípio da capacidade econômica (CF, art. 145, § 1º) e à proibição de instituir isenções de tributos da competência dos Municípios imposta à União (CF, art. 151, III)’ (STF, 2ª T., RExtr 236.604/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, decisão: 26.05.99, Informativo STF nº 151).” (grifos meus) (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 1.773)
[8] PL nº 2.960/2015 da Lei nº 13.254/2016.
[9] Yonne Dolácio de Oliveira ensina:
“3.2. Princípio da igualdade que postula os mesmos gravames tributários para os governados que se encontrem nas mesmas condições. Princípio antigo, reconhecido como de igualdade relativa, é, em geral, visto em correlação com dois outros: o princípio da generalidade, que veda a exclusão de governados da imposição tributária, em razão de privilégio de classe, religião, raça, etc.; e o princípio da capacidade econômica ou contributiva, cuja complexidade não leva a uma conclusão unânime, mas pode ser visto como critérios de distribuição das cargas tributárias, por exemplo, potencialidade econômica efetiva dos contribuintes, ou grau da sua participação na fruição dos serviços públicos. Pinheiro Xavier, após salientar que a justiça tributária está na base do princípio da igualdade, ressalta que esta, na criação e na majoração dos impostos, tem um aspecto positivo – a adoção do critério da capacidade econômica – e um aspecto negativo que exige a exclusão de qualquer outro critério baseado no sexo, na raça ou até na nacionalidade.
O princípio da igualdade visto em coimplicação com o da generalidade – todos devem suportar a carga tributária, afastados quaisquer privilégios – comporta exceção consubstanciada nas desonerações tributárias. As imunidades, definidas na Constituição, são poucas e trazem a suposição de um exame a nível nacional e sistemático. Todavia, isenções, redução da base de cálculo, de alíquota, etc., têm grande implicação com o princípio da generalidade, postulando cuidados especiais.” (Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva/Centro de Extensão Universitária/Fund. Inst. de Ensino para Osasco, 1982. p. 4)
[10] O princípio é universal nos regimes desonerativos. Lembro que Antonio Castagno, sobre o princípio da igualdade, escreve:
“En el mismo sentido, el doctor Linares Quintana sostiene que ‘la igualdad es la segunda columna – la libertad es la primera y el imperio de la ley la tercera – que sostiene el edificio de gobierno constitucional y, por otra parte, no es sino una consecuencia necesaria de la libertad. Es la noble igualdad de que habla nuestro himno. Es la médula espinal, pues, de un Estado de Derecho.
Y así como los hombres han de ser iguales ante la ley, la justiça, los impuestos y cargas públicas, también han de ser iguales los puebios, formando un conjunto de entidades consideradas con iguales derechos e iguales posibilidades de progreso. Que no existan individuos sometidos a otros es de la esencia de la democracia; que no haya pueblos inferiores es Ia esencia dela paz y Ia convivência.” (Enciclopédia Jurídica Omeba. Buenos Aires: Ancalo, 1974. v. 14. p. 915-916)
[11] Reproduzo os referidos artigos:
“Art. 1º É instituído o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), para declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no País, conforme a legislação cambial ou tributária, nos termos e condições desta Lei.
(…)
- 5º Esta Lei não se aplica aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal:
I – (VETADO); e
II – cujo objeto seja um dos crimes listados no § 1º do art. 5º, ainda que se refira aos recursos, bens ou direitos a serem regularizados pelo RERCT.
Art. 2º Consideram-se, para os fins desta Lei:
I – recursos ou patrimônio não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais: os valores, os bens materiais ou imateriais, os capitais e os direitos, independentemente da natureza, origem ou moeda que sejam ou tenham sido, anteriormente a 31 de dezembro de 2014, de propriedade de pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no País;
II – recursos ou patrimônio de origem lícita: os bens e os direitos adquiridos com recursos oriundos de atividades permitidas ou não proibidas pela lei, bem como o objeto, o produto ou o proveito dos crimes previstos no § 1º do art. 5º;
III – recursos ou patrimônio repatriados objeto do RERCT: todos os recursos ou patrimônio, em qualquer moeda ou forma, de propriedade de residentes ou de domiciliados no País, ainda que sob a titularidade de não residentes, da qual participe, seja sócio, proprietário ou beneficiário, que foram adquiridos, transferidos ou empregados no Brasil, com ou sem registro no Banco Central do Brasil, e não se encontrem devidamente declarados;
IV – recursos ou patrimônio remetidos ou mantidos no exterior: os valores, os bens materiais ou imateriais, os capitais e os direitos não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais e remetidos ou mantidos fora do território nacional;
V – titular: proprietário dos recursos ou patrimônio não declarados, remetidos ou mantidos no exterior ou repatriados indevidamente.
Art. 3º O RERCT aplica-se a todos os recursos, bens ou direitos de origem lícita de residentes ou domiciliados no País até 31 de dezembro de 2014, incluindo movimentações anteriormente existentes, remetidos ou mantidos no exterior, bem como aos que tenham sido transferidos para o País, em qualquer caso, e que não tenham sido declarados ou tenham sido declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, como:
I – depósitos bancários, certificados de depósitos, cotas de fundos de investimento, instrumentos financeiros, apólices de seguro, certificados de investimento ou operações de capitalização, depósitos em cartões de crédito, fundos de aposentadoria ou pensão;
II – operação de empréstimo com pessoa física ou jurídica;
III – recursos, bens ou direitos de qualquer natureza, decorrentes de operações de câmbio ilegítimas ou não autorizadas;
IV – recursos, bens ou direitos de qualquer natureza, integralizados em empresas estrangeiras sob a forma de ações, integralização de capital, contribuição de capital ou qualquer outra forma de participação societária ou direito de participação no capital de pessoas jurídicas com ou sem personalidade jurídica;
V – ativos intangíveis disponíveis no exterior de qualquer natureza, como marcas, copyright, software, know-how, patentes e todo e qualquer direito submetido ao regime de royalties;
VI – bens imóveis em geral ou ativos que representem direitos sobre bens imóveis;
VII – veículos, aeronaves, embarcações e demais bens móveis sujeitos a registro em geral, ainda que em alienação fiduciária;
VIII – (VETADO); e
IX – (VETADO)”;
(…)
Art. 11. Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta Lei.”
[12] Os artigos citados estão assim dispostos:
“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
[13] A interpretação do direito impõe ao intérprete buscar o sentido da lei. Lembra Carlos Maximiliano que:
“7 – Não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico.
‘A memória retém com dificuldade o que é acidental; por outro lado, o intelecto desenvolve dia a dia o logicamente necessário, como consequência, evidente por si mesma, de um princípio superior. A abstração sistemática é a lógica da ciência do direito. Ninguém pode tornar-se efetivo senhor de disposições particulares sem primeiro haver compreendido a milímoda variabilidade do assunto principal na singeleza de ideias e conceitos da maior amplitude; ou, por outras palavras, na simples unidade sistemática.’” (Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 5)
[14] Parecer neste sentido, elaborado por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira e por mim, publicado na Revista Dialética de Direito Processual, n. 152, nov. 2015, p. 135-160, e na Revista dos Tribunais, n. 960, out. 2015, p. 299-360.
[15] É de se lembrar que, em direito tributário, a hermenêutica impõe sempre a interpretação, nos casos de dúvida, mais favorável ao contribuinte, estando o art. 112 do CTN assim redigido:
“Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;
II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.”
[16] O art. 111 do CTN tem a seguinte dicção:
“Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
I – suspensão ou exclusão do crédito tributário;
II – outorga de isenção;
III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.”
[17] O art. 106, inciso II, do CTN tem a seguinte dicção:
“Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
(…)
II – tratando-se de ato não definitivamente julgado:
- a) quando deixe de defini-lo como infração;
- b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo;
- c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”
[18] Relembro o caput do art. 5º, cujo § 1º já foi transcrito no corpo do parecer:
“Art. 5º A adesão ao programa dar-se-á mediante entrega da declaração dos recursos, bens e direitos sujeitos à regularização prevista no caput do art. 4º e pagamento integral do imposto previsto no art. 6º e da multa prevista no art. 8º desta Lei.”
[19] Qualquer outra interpretação levará à severa crítica de Francesco Ferrara (Interpretação e aplicação das leis. 2. ed. Coimbra, 1963. p. 129), que dizia que o pior intérprete é o que coloca na lei o que na lei não está por preferência pessoal ou dela retira o que nela está por antipatia à norma.
[20] São os cinco princípios fundamentais da Administração Pública expressos no art. 37, caput, da CF:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”