A RELEITURA DA CAPACIDADE SUCESSÓRIA PASSIVA: MECANISMOS JURÍDICOS PARA GARANTIR PROTEÇÃO HEREDITÁRIA AOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
Pedro Teixeira Pinos Greco
SUMÁRIO: I – Os animais de estimação enquanto integrantes da família multiespécie em apreço à dimensão ecológica da dignidade; II – A liberdade de testar à luz da ausência de capacidade sucessória passiva dos animais de estimação e os expedientes jurídicos para protegê-los; Considerações finais; Referências.
“Eu sou a favor dos direitos animais bem como dos direitos humanos. Essa é a proposta de um ser humano integral” (Abraham Lincoln)
I – OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO ENQUANTO INTEGRANTES DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE EM APREÇO À DIMENSÃO ECOLÓGICA DA DIGNIDADE
A intenção dessa obra é fornecer argumentos para a ressignificação da capacidade sucessória passiva dos animais de estimação. Desse jeito, nossas pedras angulares para ler essa tese serão a dimensão ecológica da dignidade, que tem base constitucional no art. 1º, III, da CR/1988 e no princípio da liberdade de testar que está subentendido na função social da herança previsto no art. 5º, incisos XXIII e XXX, da Constituição. Outro argumento mobilizado será a ideia das famílias multiespécie, que bebe na fonte do art. 226, caput, da Constituição, para que possamos desaguar nas seguintes discussões: a) a deixa testamentária com o encargo de cuidar do animal de estimação; b) o dever de criar uma fundação ou testar para uma pessoa jurídica que já exista para cuidar daquele animal de estimação; e c) o desafio de repensar o fideicomisso para vermos se há chance de utilizá-lo em favor dos animais de estimação.
Esclarecemos, ainda, que não trataremos de detalhes relacionados à senciência animal ou do seu estado intrínseco de vulnerabilidade, em que pese o vulto desses argumentos, e o uso aqui, de forma indireta, dado que o objeto principal deste texto estará ligado à possibilidade de proteção sucessória dos animais de estimação e de seus instrumentos, por isso remetemos a leitura para quem deseja se aprofundar naquela temática a outro trabalho por nós escrito que esmiúça com mais verticalidade aquele debate.
Tendo dito isso, podemos iniciar o conteúdo de nossa missão com a fala de que os animais, em todas as suas espécies, tem o seu fundamento no art. 225, § 1º, VII, da Constituição de 1988, que foi uma Carta revolucionária em versar sobre a proteção dos animais contra os maus-tratos e o tratamento cruel. Na linha infraconstitucional, devemos cuidar do art. 82 do Código Civil, que, por sua vez, caminhou no sentido oposto ao da nossa Lei Máxima, não reconhecendo sequer uma tutela específica protetiva aos animais, seguindo uma concepção romana de divisão entre bens móveis e imóveis: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social” (grifos nossos). Embora parcela da doutrina já veja que esse cenário precisa ser reenquadrado, como pondera o Professor Francisco Amaral: “Esse critério está sendo revisto hoje em dia, tendendo-se a substituir a ideia de importância pela de interesse social, público, coletivo, que sugere uma especial disciplina para cada coisa ou categoria de coisas, independentemente da distinção entre móveis e imóveis“.
Ainda na seara nacional existe a Lei nº 9.605/1998, que é sobre crimes ambientais, tratando de forma oblíqua os animais, ainda na qualidade de coisa/bem. Na seara internacional, em complementação ao que estamos abordando até aqui, podemos dizer que não existe um tratado internacional formal de defesa dos direitos dos animais ratificado pelo Brasil, existindo apenas documentos que exortam a comunidade global a conferir um melhor tratamento aos animais e como um desses expoentes temos a Declaração Universal dos Direitos dos Animais de 1978, que é analítica em seu art. 14, b): “Os direitos dos animais devem ser defendidos por leis, como os direitos dos homens“.
Com esse grupo de atos normativos sobre os direitos dos animais apresentado, acreditamos que existe fragilidade quanto aos direitos (civis) dos animais; assim, seria interessante que o nosso País progredisse nessa seara. Nisso, ao consultar as propostas legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, notamos que existem vários projetos de lei que tentam, de uma forma ou de outra, às vezes até se repetindo, retirar expressamente o selo de coisa dos animais ou lhe chancelar um condição de seres sui generis. Dessa forma, podemos enumerar, exemplificativamente, o PL do Senado nº 351, de 2015, que tenta minorar esse horizonte ao incluir um parágrafo único no art. 82 do CC/2002, para afirmar que os animais não são considerados coisas, e o PL da Câmara nº 6.799/2013, que também tenta adicionar ao mesmo art. 82 um parágrafo único para dizer que a inteligência desse dispositivo não se aplica aos animais.
Após termos especificado algumas notas gerais sobre os animais em sentido amplo, teceremos algumas linhas sobre os animais de estimação. Quanto a esse grupo animal inexiste conceito nas leis atualmente em vigor, por isso buscaremos referência no Projeto de Lei nº 3.835/2015 da Câmara dos Deputados, que conceitua: “Para os efeitos desta lei considera-se animais de estimação aquelas espécies domésticas ou domesticadas, mantidos em cativeiro pelo homem, capazes de estabelecerem o convívio e a coabitação, sem o propósito de abate” (grifos nossos). Ainda com o fito aclarativo, podemos lembrar da Jurista Anelise Siqueira Machado, que trata da família multiespécie: “Pode-se conceituar a família multiespécie como a família formada por seres humanos e seres não humanos, que interagem entre si por meio de laços de afetividade“.
Ademais, podemos rumar em nossa composição para o art. 226 da Constituição, que explicita o princípio das entidades familiares plurais de maneira que todas as famílias, sem exceção, estão agasalhadas pelo ordenamento jurídico em rol numerus apertus, como ensina o Professor Paulo Luiz Netto Lôbo, sendo todas, não importando a configuração, marcadas de forma indelével pela dignidade, como leciona a Professora Ana Luiza Nevares, não havendo que se falar em qualquer tipo de hierarquia valorativa entre os diferentes tipos de famílias. Ponto de vista esse muito bem examinado pela Professora Maria Berenice Dias, que preconiza que os contornos das famílias nos dias atuais não são encarcerados como no passado, porque vivemos sob o manto do afeto/amor, da felicidade, do respeito, do cuidado, da tolerância, da proteção aos vulneráveis, da isonomia entre os sexos, os gêneros e as orientações sexuais, e da integração entre as espécies:
O novo modelo de família plural funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado. (grifos nossos)
Nessa mesma esteira o STJ, no Informativo nº 634, explicitado sob o REsp 1.713.167/SP, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, em caso que foi julgado em 19.06.2018, firmou o entendimento de que incide direito de visitação em prol do animal de estimação, após a dissolução da união estável, sendo ventilada a valorização dos animais de estimação enquanto parte integrante da família. Com esse mesmo espírito de colocar os animais de estimação inseridos na família multiespécie, mencionamos fragmento da valorosa compilação dos Professores Deborah Regina Lambach Ferreira da Costa e Fabiano Montiani Ferreira:
Evidente a sua importância, até porque o animal de companhia alçou a posição de membro da família. O novo paradigma de família, baseada no afeto, permite afirmar que o animal de companhia é acolhido como pertencendo ao núcleo familiar e, por conseguinte, não pode ser alienado e o produto da venda partilhado entre os ex-cônjuges. […]
A jurisprudência tem acompanhado a evolução dos fatos sociais, em que as famílias pós-modernas se constituem por outras formas que não o casamento: pela união estável, a família homoafetiva, monoparental, anaparental e, inclusive, a eudemonista. Todas elas caracterizadas pelo vínculo do afeto. Não é raro que essas diversas formas de família agreguem ao convívio de seus membros um animal de companhia. (grifos nossos)
De mais a mais, para corroborar a significância dos animais em nosso contexto sociofamiliar pós-contemporâneo, percebemos que os Professores Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer enaltecem com maestria a dimensão ecológica da dignidade: “A vedação de qualquer prática de ‘objetificação’ ou ‘coisificação’ (ou seja, tratamento como simples ‘meio’) não deve, em princípio, ser limitada apenas à vida humana, mas ter o seu espectro ampliado para contemplar também outras formas de vida“. Em harmonia com esse discernimento, a jurisprudência do Tribunal da Cidadania está atenta à dimensão ecológica da dignidade, como se nota do REsp 1.797.175/SP, de relatoria do Ministro Og Fernandes em julgamento que ocorreu no dia 21.03.2019, vazado no Informativo nº 645:
Outrossim, essa visão da natureza como expressão da vida na sua totalidade possibilita que o Direito Constitucional e as demais áreas do direito reconheçam o meio ambiente e os animais não humanos como seres de valor próprio, merecendo, portanto, respeito e cuidado, de sorte que pode o ordenamento jurídico atribuir-lhes titularidade de direitos e de dignidade. (grifos nossos)
Em adição a isso, a Professora Germana de Oliveira Moraes, especificamente, sobre esse caso entregue supra, faz comentários muito pertinentes, pois ela traz o dado da dimensão ecológica da dignidade, ou seja, se antes a dignidade era um terreno exclusivo do ser humano, atualmente esse valor pétreo supremo de nosso ordenamento jurídico recebeu, por meio do Judiciário e da doutrina, uma nova faceta que é (e será) essencial para reinterpretarmos as diretrizes magnas dos direitos dos animais, sendo que isso repercutirá em todos os outros ramos do Direito, inclusive para nós, no Direito das Sucessões:
No Brasil, o julgamento do Recurso Especial nº 1.797.175/SP (2018/0031230-00), do caso do Papagaio Verdinho, pelo Superior Tribunal de Justiça, é um precedente com potencialidade de grande repercussão no Direito, em virtude do reconhecimento na ordem jurídica formal da dignidade e dos direitos dos animas pelo sistema judicial. Notabiliza-se por atualizar a interpretação da vigente Constituição brasileira em compasso com os conhecimentos científicos e com os valores ecológicos atuais. Amplia o espectro do princípio da dignidade, a ponto de admitir a dimensão da dignidade ecológica […]. (grifos nossos)
Logo, deve-se reconhecer que o momento presente no Brasil é de progresso, uma vez que estamos evoluindo por atos corajosos da doutrina e da jurisprudência que avançam para ultrapassar a fase da coisificação animal para desembocar na visão dos animais de estimação, enquanto membros da família multiespécie, sendo perpassados pela dignidade no seu viés ecológico. Entretanto, nem tudo é perfeito, em virtude de termos uma relativa estagnação do Legislativo que tem uma série de projetos de lei que não se organiza em uma tutela efetiva e real dos direitos dos animais.
II – A LIBERDADE DE TESTAR À LUZ DA AUSÊNCIA DE CAPACIDADE SUCESSÓRIA PASSIVA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO E OS EXPEDIENTES JURÍDICOS PARA PROTEGÊ-LOS
Por consequência, com os sustentáculos dos direitos dos animais fulcrados nas famílias multiespécie e na dimensão ecológica da dignidade humana, o caminho natural agora é versar sobre a capacidade sucessória passiva; contudo, antes de adentrar esse item, é imprescindível que preguemos sobre os delineamentos que gravitam em torno da liberdade de testar. Destarte, cabe elucidar que o Direito Civil, de forma geral, está amparado na viga mestra da autonomia privada que dentro do Direitos das Sucessões e, sobretudo, no livro da sucessão testamentária é canalizado no princípio da liberdade de testar. Nisso fazemos referência às palavras paradigmáticas dos Professores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
É certo é incontroverso que o fundamento essencial da sucessão testamentária é a autonomia privada, marca registrado dos negócios jurídicos como um todo, como decorrência da inexorável liberdade que é o núcleo duro da dignidade da pessoa humana. […]
Para além disso, relembrando que o direito sucessório é corolário do exercício do direito constitucional de propriedade privada (CF, art. 5º, XXII e XXX), observamos que a regra geral há de ser a plena liberdade de testamento, reconhecendo ao titular a livre disposição de seus bens. A Carta Magna de 5 de outubro não autoriza outra interpretação, sob pena de amesquinhar a propriedade privada, retirando um de seus elementares poderes: a livre disposição. (grifos nossos)
Dessa maneira, podemos trazer à baila os dispositivos que são os exemplos cardeais desse fenômeno, o art. 1.857, caput, do CC/2002: “Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte“, e o art. 1.858 do CC/2002: “O testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo“, que esquadrinham justamente a liberdade de testar, louvando esse vetor precípuo das sucessões da ampla liberdade de testar. Em sinergia com essa alegação temos o princípio da prevalência da vontade do testador (in favor testamenti) que tem laços estreitos com todo este contexto que estamos abordando, pois ele eleva a verdadeira intenção do testador, avultando a sua mais fiel disposição de última vontade.
Quanto à capacidade sucessória passiva, devemos nos apegar à disposição legal prevista no art. 1.798 do Código Civil de 2002, que traz: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão“, ou seja, qualquer pessoa pode suceder, salvo exceções previstas na própria lei, sendo que essa regra vale tanto para as sucessões legítimas e testamentárias. Além dessa norma geral temos o art. 1.799 do CC/2002, que é específico da sucessão testamentária, sendo que esse dispositivo tem três incisos que arrolamos: “I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; II – as pessoas jurídicas; III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação“.
Fica evidente após um exame perfunctório do diploma que gere o tema de que os animais de estimação não estão no elenco para receber um quinhão hereditário por força de lei e tampouco podem arrecadar diretamente por força de testamento. Dessa maneira, podemos dizer que doutrina amplamente majoritária é assente em concordar com a lei para que somente pessoas (físicas ou jurídicas) tenham capacidade sucessória passiva. Assim, citamos o Professor Silvio Venosa, que afirma: “Coisas e animais não podem receber por testamento […]”, e nesse mesmo sentido o Professor Luiz Paulo Vieira de Carvalho arremata com lucidez:
Diante de tais considerações, não pode ser atribuído direito sucessório às naturais já falecidas por ocasião da morte do hereditando (incluindo-se aí os santos e os espíritos em geral), bem como seres animados ou inanimados, que nunca foram considerados pessoas, isto é, os animais, os vegetais etc.
Com efeito, a contrario sensu do disposto na regra acima, o nosso ordenamento jurídico não permite que almas, santos e animais de estimação possam receber, mesmo por via testamentária, herança ou legado, tendo em vista que, em tais hipóteses, falta personalidade jurídica e a consequente aptidão para tanto. (grifos nossos)
Em outras palavras, a capacidade sucessória passiva é a possibilidade de receber herança por força de lei e/ou devido a um testamento, no que é nominado vocação hereditária legítima e testamentária. Isso acontece porque a nossa lei civil condiciona para que alguém possa receber um quinhão hereditário a natureza de pessoa física ou jurídica ou pelo menos o potencial de se tornar uma pessoa física ou, ainda, que haja uma pessoa jurídica a ser constituída por força do testamento. Por todo o exposto, a doutrina do Direito das Sucessões é praticamente unânime em não conferir capacidade sucessória passiva aos animais de estimação.
Assim, após termos visto os institutos-chave para o nosso deslinde, trataremos adiante dos três expedientes sugeridos para beneficiar os animais de estimação dentro do Direito das Sucessões: a) a deixa testamentária com o encargo de cuidar do animal de estimação; b) o dever de criar uma fundação ou testar para uma pessoa jurídica que já exista para cuidar daquele animal de estimação; e c) o desafio de repensar o fideicomisso para vermos se há chance de utilizá-lo em favor dos animais de estimação.
O primeiro caso por nós proposto é a deixa com o encargo de cuidar do animal de estimação, proceder que é sintetizado pelo Professor Carlos Roberto Gonçalves, que discursa sobre o art. 1.798 supratranscrito: “Como o dispositivo em apreço refere-se somente a ‘pessoas’ não podem ser contemplados animais, salvo indiretamente, pela imposição ao herdeiro testamentário do encargo de cuidar de um especificamente” (grifos nossos), e que, outrossim, é dissecado pela Professora Maria Berenice Dias:
As coisas não podem ser sujeitos de direitos, faltando-lhe legitimação pra suceder. Os animais, as almas, os santos, não podem suceder, pois não tem personalidade jurídica. No entanto, nada impede que o testador os favoreça, atribuindo herança ou legado a uma pessoa com encargo de cuidá-los ou preservá-los. (grifos nossos)
Impera explanar que essa estratégia não é uma chicana jurídica, porque pode-se fazer uma disposição testamentária sob elemento acidental dos negócios jurídicos, não havendo nenhuma ofensa à norma de ordem pública, estando consagrado no art. 1.897 do CC/2002 esse gatilho: “A nomeação de herdeiro, ou legatário, pode fazer-se pura e simplesmente, sob condição, para certo fim ou modo, ou por certo motivo“. Caso o beneficiário entenda que o gravame é muito oneroso ou desproporcional, pode ele renunciar se quiser, mas que fique avisado, ele o fará no todo, pois não existe renúncia parcial, como indica o art. 1.808 do CC: “Não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo“, sendo que ele não pode voltar atrás na sua decisão de aceitar ou renunciar, como acentua o art. 1.812: “São irrevogáveis os atos de aceitação ou de renúncia da herança“.
A segunda conduta que pode ser tomada é a criação de uma fundação de proteção dos animais com o encargo de que essa instituição cuide do seu animal de estimação ou, ainda, é possível elucubrar que se faça uma deixa testamentária em dinheiro ou bens para uma instituição que já exista com o encargo que ela cuide do seu animal de estimação. Atuação essa que é exposta pelo Professor Flávio Tartuce: “Ilustrando, por meio de um testamento é possível constituir uma fundação, nos termos do art. 62 do Código Civil em vigor […]“, sendo que fazemos referência integral a esse último dispositivo abordado, valendo salientar que a fauna também faz parte do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como acentua o art. 225, § 1º, VII, da Constituição:
Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.
Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins de:
[…]
VI – defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável. (grifos nossos)
Esse segundo cenário, com as suas duas subdivisões, também é plácido quanto a sua imediata aplicação jurídica, tendo em vista que o Direito pátrio admite, com apoio nos arts. 1.799, II e III, do CC, já aludidos antes, sobre a deixa testamentária para fundação a ser criada e para pessoa jurídica que já exista. Nisso vale a pena conferir a explicação dos Professores Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald sobre essa trama:
Também estão legitimados para a sucessão testamentária as pessoas jurídicas devidamente constituídas […] Igualmente, é possível beneficiar por testamento uma pessoa jurídica que será constituída com o patrimônio transmitido. Cuida-se de uma fundação que deve ser criada para fins não lucrativos […].
Superadas as concepções remansosas a respeito da conjuntura da capacidade passiva sucessória para proteger o animal de estimação, urge que abordemos o terceiro e último ponto: se o fideicomisso poderia servir aos animais de estimação para que eles recebam um quinhão hereditário. Não ignoramos que essa abstração proposta é uma tese arrojada, de forma que não poderia ser aplicada hoje em dia, por falta de permissão legal, sendo que deveria se reformar o Código Civil para que ele seja alterado com a visão que vamos alinhavar em seguida, após um breve apanhado a respeito do fideicomisso.
A base legal do fideicomisso está exposta no art. 1.951 do CC: “Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário“. Na doutrina quanto a esse instrumento, nos sustentamos nos ombros do Professor Caio Mário: “Consiste na instituição de herdeiro ou legatário, com encargo de transmitir os bens a uma outra pessoa a certo tempo, ou sob condição preestabelecida“. Sobre os personagens do fideicomisso, temos: a) fideicomitente; b) fiduciário; e c) fideicomissário. E o culto Professor Mário Roberto Faria assim apresenta, elucidando futuras dúvidas que pudessem surgir:
- Fideicomitente – é o testador ou o doador. Quando por ato causa mortis, é instituído pelo testador e, quando realizado por ato inter vivos, pelo doador. No testamento, o instituidor só podem ser vários os instituidores. Tem que ser pessoa certa de transmitir a título gratuito o que lhe pertence.
- Fiduciário ou gravado – é o beneficiado em 1º grau, a quem incumbe findo o fideicomisso passar o bem recebido ao beneficiado em 2º grau. Só pode ser pessoa certa, capaz de adquirir do fideicomitente o que este lhe quiser transmitir.
- Fideicomissário ou substituto – é o beneficiado em 2º grau, que recebe a coisa livre de qualquer gravame. É necessário que não tenha sido concebido até o momento do óbito do testador.
Notamos que, devido a esses traços marcantes do fideicomisso, ele tem uma aplicação truncada, por conta da sua configuração forçosa de que o fideicomissário seja uma pessoa que não tenha sido concebida até o momento do óbito do testador. Nessa mesma página estão as informações sobre fideicomisso invocadas pelo douto Professor Flávio Tartuce, que nos atualiza quanto a esse instituto:
A verdade é que o fideicomisso sempre teve reduzida ou nenhuma aplicação entre nós, e o Código Civil de 2002 encarregou-se de diminuir ainda mais a sua incidência prática, porque, nos termos do seu art. 1.952, a substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador. […]
Alguns julgados sobre fideicomisso podem ser encontrados em sede de Superior Tribunal de Justiça, mas todos dizem respeito às pessoas existentes ao tempo da disposição como fideicomissárias, o que não pode ocorrer na prática atual.
Pontue-se que, a propósito, em pesquisa realizada no início de 2014, o presente autor não encontrou um julgado sequer, de qualquer Corte Julgadora, aplicando o art. 1.952 da codificação nos seus exatos termos, quanto à prole eventual. Foi utilizado programa de busca que leva em conta praticamente todos os Tribunais do País. (grifos nossos)
Por essas características do fideicomisso, mormente, a inteligência do art. 1.952 do CC: “A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador“, que também foi destacado pelos autores jurídicos de escol, e, por conta da sua rara aplicação, talvez pudéssemos imaginar uma revisão desse instituto para que ele estivesse em concórdia com os arts. 1º, III; 5º, XXIII e XXX; e 226, caput, da Constituição, que assinalam os pilares principiológicos do Direito Civil pós-contemporâneo na senda do direitos dos animais de estimação, cronologicamente, dimensão ecológica da dignidade, função social da herança e pluralidade familiar.
Vale salientar que não se trata de inconstitucionalidade material do fideicomisso, pois ele não aparenta ter nenhuma ofensa grave aos ditames constitucionais para eventualmente ser alvo do controle de constitucionalidade; não obstante, é latente que ele não está de acordo com a diretriz da operabilidade que é um dos guias do Código Civil de 2002. Assim, o CC trouxe uma concepção de que as normas não devem ser vazias, isto é, as regras que não trazem nenhum ou conferem pouco ganho jurídico devem ser revistas para que tenham maior utilidade.
A ideia é associar a necessidade de se fazer um direito mais eficaz e mais efetivo, devendo todo o arcabouço ser aplicado aos casos concretos adequadamente, por esse motivo também se nomeia esse instituto como concretude. A consequência é que este eixo traga estofo para os profissionais do direito objetivarem a derrota de normas abstratas e genéricas que nada ou pouco acrescentam à prática, provocando o legislador para que ajuste as leis que estão incongruentes com o mundo fático.
Nesse compasso, a nossa sugestão é que o fideicomisso seja reedificado para que os animais de estimação pudessem ter uma capacidade sucessória passiva sui generis, seguindo até mesmo alguns projetos de lei que tem esse fito, para autorizar que eles possam ser fiduciários e que tenham consigo a herança até o seu óbito e, em seguida, essa herança se reuniria por inteiro na pessoa do fideicomissário; assim, teríamos uma técnica para simbolicamente engrandecer em relevância os animais de estimação, já que eles não são coisas, em que pese não serem pessoas. A nosso ver, essa seria uma visão intermediária que poderia ser amadurecida e sofisticada para inserir e enriquecer os direitos sucessórios dos animais de forma direta sem quebrar os alicerces do Direito das Sucessões.
Repisamos que isso não será um construto que possa ser imediatamente sacralizado, dado que se demandaria uma nova lei que modificasse as engrenagens do Direito das Sucessões. Portanto, nosso engenho é dar mais praticidade ao fideicomisso, escudando que talvez fosse possível caminhar nesse sentido, frisando que os animais de estimação não se tornariam herdeiros propriamente ditos, seria uma figura híbrida que conferiria peso jurídico, sem prejudicar os baluartes sucessórios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após termos visto uma parcela dessa peleja jurídica, podemos caminhar para a parte final de nossa dissertação para engrossar o coro da necessidade de reavaliarmos o item da capacidade sucessória passiva dos animais de estimação para que essa apreciação seja atravessada pelos mandamentos constitucionais da dimensão ecológica da dignidade, da função social da herança na sua vertente liberdade de testar e da pluralidade familiar, levando-se em conta as famílias multiespécie. Com esse mesmo juízo, os Professores Pablo Stolze e Rodolfo
Pamplona, quanto à discussão da vocação hereditária, fazem um parecer bastante realista e correto sobre a situação do Direito das Sucessões, em especial a parte que estamos destrinchando nessa redação:
Da mesma forma, uma análise crítica da legislação positivada impõe reconhecer que há uma profunda “assistematização” no texto codificado, que deveria ser sinceramente repensado e reorganizado.
[…]
Isso sem falar da confusa disciplina legal brasileira sobre a capacidade sucessória, que será objeto de tópico específico neste capítulo, com o fito de diagnosticar tal complexa situação, antes de se enfrentarem as minúcias dos temas da vocação hereditária e da sucessão legítima, tratados em capítulos autônomos. (grifos nossos)
Fluxo contínuo, a nossa justificativa para o vulto desse tópico é a suplantação pela doutrina e jurisprudência de ponta do ideário de que os animais de estimação não são coisas, e, por isso, a nosso sentir, merecem uma tutela diferenciada que repercuta no Direito das Sucessões. Assim, a via ideal seria conferir a eles uma condição especial (sui generis) diferente das coisas inanimadas e dos bens móveis. Par e passo a esse debate, ainda merece que desdobremos a visão de que, se uma pessoa jurídica pode suceder, que é uma ficção criada pelo ser humano, ou, ainda, se uma pessoa física que sequer foi concebida (prole eventual) pode suceder, porque não um animal de estimação, que é tangível e tem uma fina sintonia afetiva com os seres humanos integrantes da família multiespécie?
Com esse intuito, reiteramos que os animais de estimação são partes essenciais nas famílias multiespécie, tendo não raro papel de protagonista. Vale sublinhar que os outros integrantes reagem com eles, fornecendo-lhe toda sorte de assistência que não raro está no mesmo patamar daquela dada a um ser humano também parte da mesma família. Por isso o Código Civil e o Direito das Sucessões precisam ser remodelados para conceber e proteger todas as modalidades de famílias, o que, por decorrência, respinga nas sucessões mortis causa.
Outra filigrana que merece reverências é a dimensão ecológica da dignidade, que é basicamente a dignidade da pessoa humana positivada no art. 1º, III, da Constituição, inclinada para o direito dos animais, sendo que é de boa técnica sobressair que, se aos animais já foi estendido esse direito essencial de nosso sistema, deve todo o seu estatuto protetivo vir a reboque, no que couber, até que se faça uma lei específica para os animais de estimação.
Com esse espírito, a lógica da liberdade de testar também deve ter prioridade, porquanto o Direito das Sucessões tem imanente dentro de si a lógica da propriedade, na forma do 5º, XXIII e XXX, da Constituição, à luz da sua respectiva função social; porém, ele também busca mentoria no Direito das Famílias, em que a pedra de toque é o afeto/amor. Por esse dois motivos, deve haver permissivo para que haja maior liberdade para quem deixar e em quais termos deixar, sem contar que os elos amorosos e familiares entre diferentes espécies hoje já são uma realidade da qual não se pode fugir, e, com isso, deve o afeto também repercutir nas disposições de última vontade, se assim for o desejo do testador, e desde que a deixa venha da sua parte disponível e não ofenda a legítima.
O nosso último apontamento será direcionado ao fideicomisso, que, a nosso modo de ver, precisa se renovar para conceber novas ideias que estejam em consonância com o que se pratica nos nossos dias. Nisso a abertura aos direitos dos animais poderia ser uma boa tática para trazer mais concretude a um instituto que é pouco utilizado, sendo que não é nosso plano revogar as bases do fideicomisso como conhecemos, a mentalidade é que ele seja atualizado em homenagem a uma possível maior proteção sucessória dos animais de estimação.
Pelo exposto, vemos que o Direito Civil, como um todo, e o Direito das Sucessões, notadamente, precisam modernizar o seu corpo legal para se afinar com os direitos dos animais. Nessa obra, vemos que os animais não têm capacidade sucessória passiva, e, sem embargo, elencamos dois traçados que podem ser encaminhados para salvaguardar minimamente os direitos dos animais de estimação; contudo, a terceira ideia, que é a mais ousada, clama por um passo a frente, para que os direitos sucessórios dos animais sejam levados a sério e nessa jornada vamos elogiar as colocações dos Professores Deilton Ribeiro e Rafaela Costa, que reforçam essa moldura:
Há uma tendência doutrinária ao apego ao texto legal. Texto este que, deixa bem claro que, somente pessoas naturais são dotadas de capacidade passiva para suceder. Todavia, o direito necessite de plenas e constantes mudanças. O animal por si só pode não ser capaz, obviamente, de administrar seus bens. Mas a vontade do de cujus, juntamente com a mudança da visão antropocêntrica deve ser levada em consideração. Existem condições, inclusive jurídicas, para que aos animais (não humanos) seja atribuída a capacidade passiva para figurarem como herdeiros. […]
O que se percebe de toda esta pesquisa, é a necessidade, principalmente no que se refere a direitos sucessórios, de uma mudança para que o que seja previsto legalmente reflita os anseios sociais. (grifos nossos)
Em resumo, não se pode olvidar que os princípios régios da liberdade de testar, que está encaixado na função social da herança, que tem assento constitucional no art. 5º, XXIII e XXX, da Constituição, o que traz para essa altercação uma gravidade constitucional que eventualmente pode, somado aos pressupostos também constitucionais da pluralidade familiar e da dimensão ecológica da dignidade, nessa ordem, nos arts. 226, caput, e 1º, III, da CR/1988, refundar todo o sistema legal sucessório dos animais de estimação.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
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