REFLEXÕES SOBRE OS CONTRATOS DE SOFTWARE: O FUNDAMENTAL PAPEL DA ÁREA JURÍDICA
Henrique Rocha
Marcelo Egydio de Oliveira Carvalho
É evidente o aumento de investimentos nos setores de tecnologia da informação e comunicação nos últimos anos. No Brasil, apenas no ano de 2022, o mercado de tecnologia alcançou aplicações superiores a 45 milhões de dólares[1], o que indica alto grau de maturidade em investimentos pelas instituições públicas e privadas. Esse cenário faz com que o país detenha cerca de 1,65% dos investimentos em tecnologia em nível global e 40% dos investimentos em toda a América Latina[2].
Grande parcela do mencionado montante envolve a contratação de softwares para gestão de infraestruturas de tecnologia, de relacionamento com clientes (Customer Relationship Management — CRM), sistemas de gestão empresarial (Enterprise Resource Planning — ERP), bem como ferramentas colaborativas e de inteligência artificial.
Essa realidade origina, naturalmente, dissensos e disputas das mais variadas espécies, os quais são provocados, em especial, quando os contratos são celebrados e executados em caráter de urgência, como aqueles firmados durante o período da pandemia ou em momentos de furor econômico ou comercial.
Dentre os temas mais problemáticos, podem-se citar falhas na redação dos instrumentos, que tem o potencial de gerar discussões sobre propriedade intelectual, divergências interpretativas, falta de clareza sobre as obrigações, regimes de responsabilidades e os prazos de entrega, assim como conflitos sobre escopo, extensão e expectativas do projeto.
Nos contratos de desenvolvimento de software, por exemplo, é indispensável que o instrumento estabeleça o dever de originalidade da solução desenvolvida e o compromisso de inexistência de infração a direitos de terceiros, sob pena de responsabilização do contratado pela contrafação, plágio ou usurpação de direitos alheios, disposição que confere proteção apropriada ao contratante.
Caso contrário, a contratante estará exposta ao regime de responsabilidade solidária previsto na Lei de Direitos Autorais (artigo 104, da Lei nº 9.610/98), podendo responder conjuntamente com o contratado ao pagamento de indenização por danos ocasionados a terceiros, em montante de dez vezes o valor do software violado, como reconhece a jurisprudência madura do Superior Tribunal de Justiça[3].
Igualmente, deve o contratante instituir cláusula de cessão de direitos de propriedade intelectual e outros componentes associados à concepção do programa convencionado, com regular apresentação, pela contratada, do código-fonte e todo acervo técnico e material atrelado à solução. Essa condição assegura ao contratante o direito exclusivo de uso, exploração, adaptação e atualização da solução, bem como inibe que o contratado aproveite dos mesmos componentes e da estrutura desenvolvida para comercialização de novos softwares contratados por terceiros, impedindo a reprodução indevida do programa.
Com relação ao fornecimento e implantação de softwares de gestão empresarial e relacionamento com o cliente, revela-se essencial à participação concomitante do setor jurídico e de tecnologia da informação na fase inicial de proposta e evolução das tratativas, a fim de ajustar as condições do negócio e a intenção e expectativa com o projeto, assim como definir o escopo, cronograma, SLAs e penalidades, as responsabilidades e obrigações das partes, além da utilidade e pertinência da solução para a realidade da contratante.
Dada à complexidade desses contratos, que afetam todo o negócio e englobam diversas áreas da operação empresarial, o insucesso de projetos de implementação de software ou mesmo de contratação de licenciamento inadequado podem derivar de equívocos na avaliação prévia das necessidades do contratante, insuficiência ou despreparo de recursos humanos, ausência de governança efetiva e metodologia definida, superação de orçamento e aumento expressivo das estimativas de custo, atrasos no cronograma e não atendimento das expectativas, sem prejuízo de costumeiras demissões de colaboradores envolvidos, tornando o cenário ainda mais caótico.
Por isso, o instrumento contratual celebrado deve prever o propósito da contratação e a intenção das partes, assim como definir os termos e fenômenos ocorridos no decorrer do contrato (customização, manutenção evolutiva, desenho etc.), fato que auxiliará na compreensão do objeto e temas técnicos na hipótese de conflito judicial.
De mais a mais, o pagamento dos serviços deve estar atrelado à homologação prévia das entregas e atividades executadas pelo contratado, evitando o recebimento de valores antes da efetiva e regular atendimento das tarefas acordadas e a correção de eventual trabalho defeituoso e pendente. Aliado a isso, é fundamental a escrituração e o acompanhamento de cronograma dos trabalhos com enforcement adequado, de forma apurar atrasos e caracterizar o inadimplemento contratual, sendo importante também documentar eventuais repactuações para formação de provas e evidências a serem utilizadas futuramente no Judiciário.
A respeito do tema, convém ressaltar o entendimento firmado no Recurso Especial 1.731.193 – SP, ocasião em que a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a obrigação de implantação de software é de resultado, porque 1) “uma empresa que encomenda a confecção e implementação de software para gestão integrada de suas atividades produtivas somente tem interesse em um sistema que seja efetivamente capaz de substituir, com vantagem, aquele anteriormente utilizado” e 2) “quem se compromete a desenvolver um sistema de computador para fomentar a atividade empresarial de determinada sociedade assume uma obrigação de resultado, pois, conquanto não esteja obrigado a propiciar efetivamente resultados financeiros positivos, está sim obrigado a entregar uma ferramenta que atenda às especificações técnicas previstas no contrato”[4].
Em arremate, o STJ considerou que o insucesso do projeto acarreta a resolução do contrato e o restabelecimento das partes ao estado anterior ao contrato, com a devolução dos valores pagos pelo contratante pelos serviços deficientes e que não proporcionaram proveito e utilidade. Esse posicionamento, também aplicado pelos tribunais estaduais[5], declara que a prestação deficitária ou incompleta pelo contratado representa, em regra, inadimplemento absoluto do contrato, na medida em que não atende ao interesse jurídico, tampouco aproveita ou traz benefício à parte contratante.
[1] Dados extraídos do estudo “Mercado Brasileiro de Software – Panorama e Tendências” divulgado pela Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes). Disponível em: https://abes.com.br/download/58947/. Acesso em 30/04/2023
[2] Informação disponível em: https://abes.com.br/abes-apresenta-tendencias-para-o-mercado-brasileiro-de-software-em-2022/. Acesso em 30/04/2023
[3] Nesse sentido são os arestos: AgInt no REsp nº 1.300.021/MS, relator ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 17/10/2017, DJe de 26/10/2017; e REsp nº 1.552.589/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/8/2016, DJe de 12/8/2016
[4] STJ, Resp n.º 1.731.193 – SP, ministro relator Moura Ribeiro, Terceira Turma, J. 22/09/2020.
[5] Nesse sentido: TJSP, Autos n.º 1052844-03.2020.8.26.0100, desembargador relator Régis Rodrigues Bonvicino, 21ª Câmara de Direito Privado, DJe 16/05/2022; TJSP; Apelação Cível 1010595-13.2015.8.26.0100; relator Rodolfo Cesar Milano; 25ª Câmara de Direito Privado; J. 05/08/2021; TJPR, Apelação 0007891-27.2018.8.16.01941; relator(a): Rogério Etzel Desembargador; Órgão Julgador: 11ª Câmara Cível; Data da Decisão: 12/12/2022; Data de Publicação: 15/12/2022; TJDF, Apelação 0716245-46.2018.8.07.0001; relator (a): Luís Gustavo B. de Oliveira; Órgão Julgador: 3ª Turma Cível; Data da Decisão: 15/06/2022; Data de Publicação: 01/07/2022; TJMG, Apelação Cível 1618748-85.2012.8.13.0024; relator(a): desembarador (a) Marcos Lincoln; Órgão Julgador: Câmaras Cíveis / 11ª Câmara Cível; Data da Decisão: 13/07/2022; Data de Publicação: 13/07/2022.