REFLEXÕES SOBRE A AUTONOMIA DO DANO TEMPORAL E A SUA RELAÇÃO COM A VULNERABILIDADE DA VÍTIMA
Fernanda Tartuce
Caio Sasaki Godeguez Coelho
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Os Danos Indenizáveis e as Novas Categorias de Danos. 3 O Dano pela Perda de Tempo. 4 A Vulnerabilidade da Vítima e a Ofensa a sua Dignidade – Responsabilidade do Dano Temporal em Hipóteses não Consumeristas. 5 Conclusão. 6 Referências Bibliográficas.
1 Introdução
O emprego de tempos em determinadas atividades ao invés de outras é uma consequência natural da vida em sociedade, que cria deveres e obrigações diárias. No entanto, existem situações em que os indivíduos têm o seu tempo injustamente subtraído. São exemplos os caos: a) do vendedor de insumo que obriga que o consumidor, por repetidas vezes, tente reparar ou devolver um produto com defeito; b) do cliente do banco que passa horas em uma fila para ser atendido, estando somente um dos vários guichês em funcionamento; c) de precisar gastar horas para cancelar um serviço de assinatura prestado por empresa de telecomunicações.
Em decorrência de casos como este, surgiu o conceito de dano temporal, categoria de prejuízo reparável que teria como base o tempo indevidamente subtraído do individuo em algumas situações específicas. Esse dano é, no geral, reconhecido no subsistema da defesa do consumidor dada a sua situação de vulnerabilidade. Mas os consumidores não constituem o único grupo vulnerável: idosos, crianças e adolescentes, dentre outros, também têm sua vulnerabilidade reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro.
A possibilidade de ressarcimento pelos danos temporais fora da esfera consumerista – ou seja, em outros subsistemas de proteção aos vulneráveis ou nas relações entre iguais – não te sido foco de abordagem aprofundada na doutrina brasileira.
O presente artigo tem como objetivo promover reflexões sobre a possibilidade de a indenização por danos temporais ser concedida fora de contextos danosos ao consumidor. Para isso, examinar-se-ão o conceito do dano temporal, os requisitos para sua concessão e as peculiaridades presentes no subsistema de proteção ao consumidor para, ao fim, examinar a possibilidade de expansão da reparação dos danos temporais sofridos por não consumidores.
2 Os Danos Indenizáveis e as Novas Categorias de Danos
A responsabilidade civil tem ganhado cada vez mais força como forma de justiça social. As bases que fundam o dever de indenizar passaram por diversas transformações ao longo do século como consequência das adaptações necessária para que situações antes inviáveis em termos de ressarcimento pudessem ser resolvidas de forma satisfatória.
Este processo modificação das bases da responsabilidade civil não é atual, sendo perceptível desde as origens romanas, muito embora tenha se tornado mais forte e rápido a partir do século XIX (CARRÁ, 2014, p.48).
A mudança de paradigma se reflete principalmente na degradação dos filtros tradicionais de responsabilidade para que, por exemplo, se atribua cada vez menos importância à prova da culpa, do nexo causal e do próprio dano (SCHREIBER, 2011, p. 723) e maior importância à necessidade de indenização à vítima.
Outra degradação se deu no paradigma da responsabilidade que se funda na culpa, passando-se a considerar-se também a responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco (CARRÁ, 2014, p. 48), ou até mesmo, em alguns casos, a própria responsabilidade civil integral, como fundamentos para o estabelecimento do dever de indenizar faz parte do autor do dano.
A transformação das bases da responsabilidade civil se deu, por vezes, por meio de decisões judiciais inovadoras e, em outros casos, pela absorção, pelo Poder Judiciário, de novas teorias criadas pela doutrina nacional e estrangeira. Como consequência desse processo, tende-se a dar cada vez menos importância e alguns dos filtros da responsabilidade civil (culpa a nexo causal) e atribuir-se maior na analise quanto à ocorrência, de fato, do dano (SCHREIBER, 2015, p. 83).
Essa expansão da reparabilidade de danos é facilmente perceptível a partir da constatação do aumento do número de ações indenizatórias no Poder Judiciário. Tal incremento se deu sob dois aspectos: quantitativo e qualitativo. O aumento sob o viés quantitativo ocorreu tanto porque o afrouxar dos requisitos clássicos da responsabilidade civil faz o com que cada vez mais danos sejam passíveis de compensação, quanto porque, no Brasil, o acesso à justiça cada vez mais é reforçado. Sob a ótica qualitativa, a expansão da ressarcibiidade se deu porque novos interesses são tutelados pelo direito – inclusive os interesses não patrimoniais (direitos existenciais) antes alijados do ordenamento jurídico (SCHREIBER, 2015, p. 85).
Esse processo de expansão se deu principalmente com relação aos danos extrapatrimoniais, tendo gerado inclusive uma série de críticas ao que se chamou de uma suposta “indústria dos danos morais”. De fato, embora faltem pesquisas empíricas a respeito, parece ter havido um aumento significativo no número de pedidos indenizatórios baseados nessa categoria de dano. Entretanto, isso deriva também do fato de que houve um crescente número de indivíduos que antes eram privados do acesso à justiça. Agregada a isso está a ideia de que os próprios paradigmas da responsabilidades civil estão sendo flexibilizados. O que antes poderia ser considerado irreparável – como, por exemplo, danos morais decorrentes do abandono efetivo -, hoje começa a ser reconhecido pelos tribunais como fato gerador de indenização.
No entanto, é importante ter em mente que, mesmo com toda essa flexibilização, nem todas as situações cotidianas são consideradas aptas a gerar o dever indenizatório. Nesse sentido, por exemplo, os tribunais nacionais têm entendido que situações em que haja mero aborrecimento não configuram danos morais passíveis de ressarcimento (CARRÁ, 2014, p. 217) – aplicando-se a premissa romana do de minimis non curat praetor[1].
Por um lado, é importante que se faça a distinção entre danos que afetem interesses jurídicos concretos, que possuem caráter duradouro e efetivo (Idem, ibidem), e os meros aborrecimentos da vida moderna. Por outro, numa tentativa de barrar uma suposta “proliferação irracional” dos danos reparáveis (Idem, p. 218), por meio da proibição de que o juiz não trate de pequenos acasos da vida (de minimis non curat praetor), não se deve afastar a possibilidade de reparação de danos não positivamente reconhecidos, sob pena de causar injustiças sociais (CARRÁ, 2014, p. 218).
A fim de não deixar a análise de se houver ou não dano numa situação em concreto ao arbítrio do juiz, a doutrina estabelece critérios para a identificação da ocorrência de um prejuízo reparável. A fixação destes parâmetros traz maior segurança jurídica para quem sofre danos indenizatórios baseados em qualquer dissabor cotidiano (idem, p. 217).
Em primeiro lugar, é importante ter em mente que o dono, em qualquer de suas modalidades, contém dois elementos estruturais: o material e o formal (idem, p. 216). O elemento material diz respeito ao dano ocorrido no plano dos fatos, o efetivo dano sentido pelas pessoas na sociedade. Já o elemento formal é a própria qualificação jurídica do prejuízo, ou seja, a própria determinação feita, pelo Direito, de que aquele prejuízo de fato é juridicamente relevante e deve ser conhecido como um dano reparável (idem, ibidem).
Com base nesses dois elementos, Bruno Carrá identifica três requisitos para que um dano seja reconhecido como indenizável: (i) antijuridicidade, (ii) certeza e (iii) atualidade.
O dano antijurídico serio o “contrário ao Direito” (idem, p. 220). Na verdade, a contrariedade não deve ser entendida como um dano que negue o Direito, mas sim seja contrário a algum valor reconhecido pelo ordenamento jurídico. Essa contraposição do valor protegido pelo Direito e um ato lesivo a ele é que faria com que os danos dele oriundos fossem passíveis de indenização. Destaque-se que essa análise deve sempre ser feita considerando-se o sistema como um todo, já que o próprio Direito reconhece que alguns, mesmo a priori contrários aos valores juridicamente protegidos, devem ser suportados pela vítima (idem, ibidem). São exemplos os danos causados sob estado de necessidade ou por legítima defesa – que são reparáveis, muito embora possam ter ferido algum interesse juridicamente reconhecido (idem, p. 222).
Destaque-se, além disso, que nem todo prejuízo contraria um valor legalmente previsto. Um indivíduo que faça doações periódicas a uma organização não governamental, por mera liberalidade, pode cessar as doações a qualquer momento. Mesmo que aquela organização tenha sofrido prejuízo econômico, ainda assim o ato de parar de doar não fere qualquer valor jurídico – ou seja, não é antijurídico – e, portanto, não gera dano reparável (CARRÁ, 2014, p. 222).
Ademais, nem todo ato que gera dano é necessariamente contrário ao Direito, pelo menos em uma análise preliminar; é o caso, por exemplo, do abuso de direito[2]. O exercício de um direito, mesmo que legalmente reconhecido, feito de forma abusiva é apto e ensejar indenização caso gere um dano (idem, p. 222-223). O abuso de direito não é o dono em si, mas a causa do dano efetivado, já que nem todo abuso de direito gera um dano ressarcível. No entanto, os danos causados pelo exercício abusivo do direito são antijurídicos. Caso aquele dano seja suficientemente denso, será reconhecido pelo Direito como relevante e, por conseguinte, poderá gerar o dever de indenizar por parte do autor do dano.
Além da antijuridicidade, Bruno Carrá traz como segundo requisito a atualidade do dano: ele precisa existir no momento da propositura da ação que pleiteia a indenização (idem, p. 223).
Por fim, como último requisito, o dano como reparável, deve-se partir das premissas estruturais e dos requisitos de configuração do dano. Com base nessas premissas é possível examinar se o dano temporal, objeto de análise deste artigo, constitui um dano indenizável.
3 O Dano pela Perda de Tempo
A constitucionalização do Direito Civil, com a consequente intensificação da proteção da dignidade humana, fez com que diversos danos não patrimoniais fossem gradativamente reconhecidos pelos tribunais e pela doutrina como passíveis de serem indenizados (SCHREIBER, 2015, p. 89).
A já mencionada mudança de paradigma da responsabilidade civil é percebida principalmente pela preocupação cada vez maior com a vítima do dano, em detrimento do foco no autor do dano. Essa alteração de perspectiva veio a partir da harmonização da responsabilidade civil com a dignidade da pessoa humana (CARRÁ, 2014, p. 231), reconhecendo-se a reparabilidade “em eventos lesivos de natureza não patrimonial, seja para tornar mais fáceis as formas de acesso à reparação civil, seja, ainda, para colocar em destaque a importância da prevenção, notadamente aos danos à pessoa” (idem, ibidem).
Os eventos lesivos de natureza extrapatrimonial são cada vez mais comuns na vida pós-moderna, que cria novas situações de potenciais ofensas à dignidade da pessoa humana anteriormente inexistentes. Essas novas situações evidenciam o fato de que as antigas fórmulas de atribuição da obrigação de indenizar se tornaram insuficientes para mitigar os conflitos atuais (MESSINA DE ESTRELA GUTIEÉRREZ, 2004, p. 47).
Por causa disso, novas formas de prejuízos, que não se enquadram em conceitos clássicos (como os de danos materiais e morais), foram sendo constatadas e absorvidas por doutrina e jurisprudência (DESSAUNE, 2012, p. 7). A absorção das novas categorias de dano fez com que se evitassem potenciais distorções de equidade (CARRÁ, 2014, p. 230), já que algumas formas de lesão, por mais que fossem além de meros dissabores da vida, não eram contemplados pelas fórmulas clássicas de responsabilidade (DESSAUNE, 2012, p. 7).
Grande parte dessas novas formas de dano parte da premissa da proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos de personalidade. Por isso, nos campos de Direito de Família, direitos de personalidade e responsabilidade civil, ocorre a reformulação constante de paradigmas, abarcando-se em suas estruturas novas formas de proteção ao ser humano (CARRÁ, 2014, p. 230). São exemplos disso e dano estético e o dano por abandono efetivo, dentre outros. Pelo fato de o conteúdo da dignidade da pessoa humana ser extremamente vasto, é possível identificar cada vez mais interesses jurídicos reparáveis (SCHREIBER, 2015, p. 90-91), como de fato vem ocorrendo.
No que se refere especificamente ao âmbito dos danos morais, identifica-se de forma intensa a chamada “despatrimonialização do Direito Privado”, fenômeno que identifica o processo de desvio do foco da abordagem meramente patrimonial do dano para considerar também como danos indenizáveis as ofensas a outros bens jurídicos vinculados aos direitos não patrimoniais do indivíduo (CARRÁ, 2014, p. 231), como, por exemplo, ocorre com o chamado “dano temporal”.
A ideia de dano temporal parte pressuposto de que o tempo constitui verdadeiro bem jurídico do indivíduo, que decorre dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana[3] e da liberdade[4].
A dignidade da pessoa humana é vulnerada porque cada indivíduo tem o direito de empregar o tempo, na medida do possível, de forma a promover seu próprio bem-estar e sua qualidade de vida. O ser humano, que “percorre uma jornada biológica durante a qual descobriu a inexorabilidade da morte em decorrência da delicadeza do corpo a da mente” (ZULLIANI, 2009, p. 8), deseja e pode buscar, com seu tempo disponível, em última instância, a felicidade.
A liberdade também é um valor afetado porque cada pessoa deve poder escolher como alocar seu próprio tempo, não podendo ser obrigada a praticar determinadas atividades em detrimento de outras (MAIA, 2014, p. 163).
O dano temporal está geralmente vinculado à sistemática do direito do consumidor, derivado de dever de sua proteção pelo Estado, previsto no art. 5º, XXXII, da Constituição Federal[5]. O consumidor constitui grupo vulnerável, que justifica a sua proteção mais intensa. A retirada do direito de se dedicar a trabalhos, estudos, lazer, descanso e “ao afeto, seja este familiar ou amoroso” (idem, p. 169), ensejaria um dano juridicamente reparável.
Para Marcos Dessaune, a reparabilidade do dano temporal dependeria de dois requisitos fundamentais: (i) que o dano ocorresse dentro da lógica consumerista e (ii) que houvesse o chamado desvio produtivo do consumidor. Argumenta o autor que o bem jurídico tempo tem características – escassez, inacumulabilidade e irrecuperabilidade – que tornariam eventuais atos lesivos a ele reparáveis, inclusive fora da lógica da tutela da personalidade. Portanto, para o autor, o dano temporal não configuraria “mero novo fato gerador de dano moral” (DESSAUNE, 2012, p. 9).
Maurílio Maia, por sua vez, entende que, na esfera consumerista, a perda do tempo útil seria indenizável mesmo quando não houvesse efetiva comprovação de prejuízos econômicos na esfera patrimonial do indivíduo lesado; a perda forçada de tempo traz efeitos negativos que se reverberam na esfera efetiva, familiar e social (MAIA, 2014, p. 165). Defende, ainda, que o dano temporal constitui modalidade de dano sui generis, com características próprias que justificariam sua categorização autônoma.
Deve-se ter em mente, entretanto, que não é tempo em si um bem jurídico a ser protegido pelo Direito. O tempo, na verdade, é um conceito baseado na abstração humana da duração relativa de determinados eventos. Como é uma construção feita pela racionalidade humana, não se poderia afirmar que o tempo “pertenceria” à esfera jurídica do ser humano. Na verdade, o ser humano está contido em um universo regrado por forças e conceitos físicos. Dizer que o tempo pertence ao ser humano seria o equivalente a dizer que os indivíduos teriam em sua esfera jurídica a gravidade ou espaço (como conceito abstrato).
Com efeito, quando se fala na proteção do tempo, está-se referindo à forma como o tempo é utilizado por cada indivíduo. O tempo seria um recurso limitado a ser alocado pelo ser humano da forma como lhe aprouvesse.
A tutela do tempo, portanto não é a tutela do tempo em si, mas do direito que cada ser humano tem de utilizá-lo livremente da forma que entender melhor. O indivíduo pode usar seu tempo para trabalhar, ter atividades de lazer, descansar, dentre outros. O possível dano temporal a ser compensado decorreria da ofensa a essa liberdade de alocação do tempo. Na medida em que um indivíduo ou uma empresa praticasse ato comprometedor da livre alocação de tempo por certo indivíduo, estar-lhe-ia causando um prejuízo indenizável.
O dano temporal, a princípio, poderia ser concebido como uma espécie de dano extrapatrimonial sofrido por determinado indivíduo. Entretanto, deste se difere por duas principais características: (i) a presunção de que atos que obriguem determinado indivíduo a usar seu tempo de uma maneira específica, como, por exemplo, longas esperas em filas de banco, fazem com que necessariamente, o indivíduo sofra o dano em sua esfera jurídica; e (ii) a natureza efetiva do dano temporal pode ser tanto patrimonial, quanto extrapatrimonial.
O dano moral, como categoria de dano reconhecida, em regra[6], depende de prova. A vítima do dano geralmente deve provar que sofreu lesões em seus direitos de personalidade que justifiquem uma compensação pecuniária. É claro que, em determinados subsistemas, há a possibilidade de inversão do ônus da prova, como ocorre, por exemplo, na seara consumerista. A possibilidade de inversão do ônus da prova, entretanto, decorre justamente do fato de que a princípio é ônus de quem sofre o dano provar o prejuízo. Essa distribuição diferenciada do ônus probatório – também presente a partir da noção de carga dinâmica da prova – consiste em ferramenta disponível a uma parte quando reconhecida a dificuldade probatória em cartas circunstâncias.
Portanto, o dano temporal, embora pudesse ser encampado como subcategoria de dano moral[7] – haja vista que a perda forçada do tempo útil fere a liberdade e a dignidade da vítima do dano -, dele se diferencia por ser desnecessária e, por vezes, inviável a prova do dano. Provar a perda do tempo útil demandaria ter que comprovar como se alocaria o tempo no período em que se foi forçado a ficar na fila do banco por horas? Em certos casos, o dono é patente – por exemplo, se o indivíduo deixou de trabalhar para resolver um problema advindo da má prestação dos serviços bancários. Em outros, contudo, a prova é praticamente impossível; a pessoa lesada teria de comprovar que estaria, por exemplo, em um jantar com a família, indo ao cinema ou desempenhando uma atividade qualquer – que obviamente não se verificou por conta da limitação temporal.
Em quaisquer das hipóteses, é patente que o lesado desejava alocar o tempo de outra forma que não aquela a que foi forçado pelo causador. E aqui reside a segunda característica que justifica a categorização autônoma do dono temporal: não importa a natureza jurídica do dano efetivamente causado ao indivíduo. O dono pode ter sido patrimonial – caso tenha deixado de trabalhar – ou moral – se deixou de usar o pouco tempo livre para estar com a família. Em todos os casos, o dono é presumido.
Evidentemente, nada impede que o indivíduo comprove qual a atividade deixou de desempenhar naquele tempo útil perdido. Por exemplo, caso prove que deixou de fechar um negócio, será indenizado pelos lucros cessante daquela perda de tempo. Nesse caso, o nexo causal é patente: o ato de uma empresa ou de um indivíduo obrigou que a vítima tivesse que alocar seu tempo em determinada atividade em vez de fechar o negócio.
Nesse caso, a indenização não seria especificamente por dano temporal, mas sim por danos patrimoniais advindos dos lucros cessantes ou da perda de uma chance. Contudo, é possível que o indivíduo não consiga comprovar qual atividade deixou de desempenhar no período. Ainda sim poderá ser indenizado com base no dano temporal. O fato é que alguma atividade – seja ela produtiva ou não – teria sido desempenhada naquele e, por isso, a liberdade e a dignidade do indivíduo foram lesadas a ponto de justificar uma indenização.
A questão que surge, nesse ponto, é a averiguação se o dano temporal seria algo indenizável ou se recairia nos chamados “dissabores da vida”, não indenizáveis segundo jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[8].
Para Marcos Dessaune, o dano temporal deve ser distinguido dos meros dissabores com base em três análises: (i) a conduta do autor do dano foi ilícita?; (ii) quanto tempo a vítima do dano desperdiçou em razão do suposto ato danoso?; (iii) o suposto tempo desperdiçado foi algo desejável por parte da vítima do dano, independentemente de ter gasto o tempo por uma necessidade ou por voluntariedade? (DESSAUNE, 2012, p. 11.).
O primeiro requisito não diz respeito especificamente ao dano em si, mas outro requisito da responsabilidade civil aquiliana: a ilicitude do ato. Para que um dano seja reparável, além da própria configuração da lesão, exige-se que tenha havido um ato e que se estabeleça um nexo causal entre ele e o dano. Além disso, é necessário que haja um nexo de imputação – que poderá ser a culpa, no caso da responsabilidade subjetiva, ou risco da atividade, nos casos da cláusula geral da responsabilidade objetiva do Código Civil, ou ainda alguma outra imputação objetiva prevista no ordenamento jurídico (como, por exemplo, o vício ou fato do produto previsto no Código de Defesa do Consumidor).
Com relação à responsabilidade subjetiva, é necessário, além da comprovação da culpa e do nexo causal, que o ato praticado pelo agente tenha sido ilícito. Não se trata de ato culposo, mas sim de ato que atenta contra os valores jurídicos, como já explicada ao tratar da antijuridicidade. A ilicitude parte de uma análise objetiva – discrepância entre o ato e o que é juridicamente lícito –, ao passo que a culpabilidade parte de uma análise subjetiva, sendo culpável um ato atribuível a determinado sujeito (DIAS, 1997, p. 122).
Assim, o primeiro requisito trazido por Marcos Dessaune não é um quesito para a configuração do dano em si, mas sim para eventual imputabilidade do agente caso ele tenha efetivamente causado um dano reparável. Estando-se dentro do regime da responsabilidade subjetiva, por mais que eventualmente um dano tenha sido produzido, ele não poderá ser indenizado se o agente causador do dano não tiver praticado qualquer ato ilícito.
Aqui resta uma situação problemática. O dano temporal é trazido por Marcos Dessaune dentro da lógica consumerista, cujo regime de responsabilização dos fornecedores pelo vício ou fato de produto ou serviço é objetivo. Assim, é desnecessária a prova de culpa ou a constatação da ilicitude do ato para que eventual dano ao consumidor seja ressarcido. Isso não quer dizer, é claro, que somente com base na responsabilidade objetiva poderia o fornecedor ser responsabilizado. Provada a culpa e a ilicitude do ato, o consumidor pode pleitear ação indenizatória com base na responsabilidade aquiliana – mas isso raramente ocorre, já que o consumidor tem à disposição a invocação do regime de responsabilidade objetiva, de mais fácil configuração.
Ao trazer a necessidade de que, para ser ressarcido, o dano temporal deva ser produzido a partir da prática de um ato ilícito, Marcos Dessaune parece entender que somente seria possível uma indenização por dano temporal com base na responsabilidade subjetiva do fornecedor.
Essa conclusão é interessante; nesse caso, não só se deve demonstrar a ocorrência de dano temporal como também a ocorrência de um ato ilícito que tenha causado o dano produzido. Numa ação que vise à indenização por defeito de um produto que gerou dano temporal, por exemplo, deverá o consumidor: (i) demonstrar a configuração da responsabilidade objetiva do fornecedor para ser indenizado pelo conduto, e (ii) demonstrar que o fato gerador do fundo foi ilícito para poder ser indenizado pelo dano temporal.
Os segundo e terceiro requisitos, por sua vez, são análises que de fato ajudam a determinar se o possível prejuízo configura mesmo um dano ou não passa de mero dissabor da vida cotidiana. Como segundo requisito da reparabilidade do dano, Marcos Dessaune indica que o tempo desperdiçado pelo consumidor deve ter sido de uma intensidade anormal, não esperada para aquela ação em específico.
É claro que a vida demanda a dedicação de tempo a certas situações, por mais desagradáveis que possam ser. Reparos de veículos, resolução de problemas no banco de cancelamento de contratos de fornecimento são situações de demandam o uso de certo tempo; por mais desagradáveis que sejam, não justificam, por si só, uma demanda indenizatória. Por outro lado, não é razoável que para o cancelamento de um contrato de fornecimento dispendam-se duas horas ao telefone com algumas empresas prestadoras de serviço. A análise sobre se determinado tempo gasto para a prática de certo ato foi ou não além da situação normalmente esperada deve ser feita em concreto, pelo juiz.
Como terceiro e último requisito, Marcos Dessaune traz a necessidade de que o tempo gasto em determinada atividade não tenha sido desejado pela vítima do dono. É patente que se determinado indivíduo voluntariamente gastou um período de tempo numa atividade, o tempo nela gasto foi querido e, portanto, não teria havido qualquer ofensa à sua liberdade. O desejo, entretanto, deve ser analisado não só em relação ao ato em si, senão também com relação ao tempo gasto na atividade. Pode ser que um sujeito queira resolver presencialmente uma pendência bancária que o esteja incomodando, mas não espera e nem quer gastar mais do que uma hora para resolver o problema.
Uma demanda que vise à indenização pelo dano temporal, portanto, deveria demonstrar de forma clara que o segundo e o terceiro requisitos foram preenchidos. Destaque-se, mais uma vez, que é desnecessária a prova sobre como seria usado o tempo caso o sujeito não fosse obrigado a gastá-lo em certa atividade (por exemplo, o que faria caso não tivesse que ficar três horas na fila do banco). Qualquer que fosse a utilização – trabalho ou lazer –, feriu-se a liberdade de o indivíduo empregar seu tempo de forma como lhe aprouvesse.
Além de estruturalmente possível, o reconhecimento da possibilidade de indenização do dano temporal é importante “para a reeducação dos fornecedores no mercado de consumo” (MAIA, 2014, p. 175). Justifica-se, portanto, também sob o aspecto sociológico: reconhecimento de que certos atos que desperdiça, indevidamente o recurso temporal de terceiros fará com que haja um desincentivo dos fornecedores em agir em desrespeito aos interesses dos consumidores.
Cabe, como última questão a ser tratado, uma indagação final. Sendo o dano temporal uma categoria de dano que ocorre a partir da ocorrência de um ato que obrigue determinado indivíduo a usar seu tempo, de forma desproporcional, em uma atividade que ele não escolheria desempenhar, parece ser possível que ele seja configurado em quaisquer situações da vida. No entanto, a indenização pelos danos temporais vem sendo atrelada às relações consumeristas. Seria possível a expansão e o reconhecimento de sua pertinência em relações jurídicas regidas pelo Código de Defesa do Consumidor?
4 A Vulnerabilidade da Vítima e a Ofensa a sua Dignidade – Ressarcibilidade do Dano Temporal em Hipóteses não Consumeristas
Toda a lógica das relações jurídicas que se formam à luz do Direito do Consumidor deriva do fato de que, nas relações do consumo, existe uma disparidade de forças entre as partes. A vulnerabilidade técnica do consumidor perante os fornecedores de bens e serviços é patente, sendo inclusive reconhecida a incidência do Código de Defesa do Consumidor mesmo em contratos entre empresas – desde que constatada uma vulnerabilidade técnica jurídica ou econômica de uma das partes[9].
A situação de vulnerabilidade cria a necessidade de haver um conjunto de regras que garantam uma série de vantagens; trata-se, portanto, de um “microssistema de natureza finalista’ (ZULIANI, 2009, p. 6), ou seja, que tem o objetivo de, na medida do possível, colocar em pé de igualdade o fornecedor e o consumidor”.
No caso específico do dano temporal, o seu reconhecimento vem se dando dentro desse contexto de disparidade de forças da relação de consumo. A ideia da reparabilidade do dano temporal é geralmente associada ao art. 18 do Código de Defesa do Consumidor; isso se deu, por exemplo, na Apelação Cível 2007.060473-7 de Santa Catarina, cujos argumentos foram dissecados por Maurilio Casas em artigo com essa finalidade (MAIA, 2015).
Nesse julgado, foi reconhecido o abuso de direito por parte do fornecedor que extrapolou o prazo de 30 dias previsto no § 1º daquele artigo, fazendo com que o consumidor tivesse que, por seis vezes, durante um ano, tentar substituir um bem do consumo que havia comprado, sem sucesso.
Entendeu-se possível o deferimento de indenização por dano temporal (na forma, entretanto, de dano moral). Destaca-se o seguinte trecho do referido acórdão:
“No caso em apreço, não alega o consumidor que a falta do notebook tenha ocasionado grave prejuízo pela necessidade do bem para o uso em trabalho. não houve pedido de reparação por lucro cessante e tampouco se invocou a tese de direito a reparação pela perda de uma chance. O que se alega, tão-somente, é que o serviço de atendimento ao consumidor oferecido pela ré foi de tal forma ineficiente e irresponsável, que o sujeito a uma condição indigna e angustiante, além de lhe subtrair tempo e lhe privar do gozo do bem comprado.” (BRASIL, 2010)
O julgado deixa bastante claro que o fundamento da ação indenizatória não é a reparação de danos materiais, mas sim indenização advinda da ineficiência do fornecedor, que fez com que o consumidor fosse submetido a situações que lhe privaram de tempo e do gozo do bem adquirido. Ao fim do julgado, entretanto, o relator entendeu que o dano temporal seria reparável na forma de danos morais de forma autônoma.
Portanto, o voto: (i) reconheceu que o tempo humano deve ser tutelado, ainda que não de forma autônoma (MAIA, 2015, p. 472); (ii) concedeu indenização moral de caráter compensatório e pedagógico, incluindo-se nela tanto o dano temporal sofrido pelo consumidor quanto a dor psicológica advinda da situação degradante por que passou.
Esse julgado, assim como alguns outros decisórios pontuais[10] e a doutrina, reconhecem a reparabilidade do dano temporal nas relações de consumo. Disso decorre que, para esses autores e julgadores, existe algo que justifica a possibilidade de ressarcimento do dano temporal quando se está diante de conflitos consumeristas.
Conforme visto, o que diferencia o âmbito consumerista de outras searas é a discrepância de forças entre as partes da relação, ou seja, a situação de vulnerabilidade em que se encontra um dos indivíduos. A equiparação de forças é objetivo final de todo o sistema protetivo do consumidor. Assim, a consequência lógica seria aceitar que a reparabilidade do dano temporal, além de estar aliada à proteção à liberdade e dignidade da pessoa humana, depende de uma premissa: que uma das partes se encontra vulnerável na relação jurídica.
Ao ser questionado sobre o assunto em uma entrevista, Marcos Dessaune toca lateralmente no assunto ao dizer que existe de fato uma relação entre a vulnerabilidade do consumidor e o dano de desvio produtivo (DESSAUNE, 2012, p. 13). Nesse sentido, entende que, caso não houvesse uma vulnerabilidade do consumidor em relação ao fornecedor, aquele teria possibilidade de que fosse exigida uma melhor prestação de serviços ou o oferecimento de produtos com maior qualidade[11] (idem, ibidem). Nesse caso, a reparação por dano temporal não seria cabível. Fica claro, portanto, que a situação de vulnerabilidade parece estar intrinsecamente vinculada à possibilidade de ressarcimento por dano temporal.
A fim de reconhecer essas situações, cabe, então, adentrar brevemente no conceito de vulnerabilidade. O vocábulo vulnerabilidade pode ser definido em três sentidos: (i) como característica de certas pessoas ou grupos sociais; (ii) como condição humana; (iii) como princípio ético, sendo a primeira acepção a que principalmente interessa para a finalidade protetiva de alguns subsistemas do Direito (TARTUCE, 2012, p. 163).
Por mais que o Direito tenha em sua concepção e a ideia da igualdade e imparcialidade, é natural devotar especial preocupação com determinados grupos mais fracos em relação aos demais, impondo-se regras protetivas àqueles (idem, p. 166) – o que ocorrido com maior intensidade após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (idem, p. 167).
Diversos grupos sociais se enquadram na condição de vulnerabilidade quando comparadas às outras partes de relações jurídicas que se formam no decorrer da vida, o que justifica haver regras jurídicas especificas para sua proteção.
A vulnerabilidade e as normas protetivas se encontram, por exemplo, (i) na relação entre empregados e empregadores, já que aqueles têm menores condições e, portanto, são mais suscetíveis a prejuízos na relação de emprego; (ii) na proteção das pessoas portadoras de necessidades especiais, coibindo-se o preconceito e a discriminação (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015); (iii) na proteção das crianças e adolescentes, garantindo-se seu crescimento e desenvolvimento saudável (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90); (iv) na proteção de mulheres vítimas de violência doméstica (Lei nº 11.340/06); (v) na proteção dos idosos, que muitas vezes possuem limitações físicas e psíquicas (Lei nº 10.741/03); (vi) no combate ao racismo (Lei nº 12.288/2010); e (vii) na proteção dos consumidores (idem, p. 167-181).
A vulnerabilidade desses grupos sociais se concentra em diversos aspectos da vida. Como visto, a vulnerabilidade do consumidor se concentra nas esferas técnicas, jurídica e socioeconômica. A vulnerabilidade do idoso, por sua vez, também estaria potencialmente vinculada a essas esferas, somada também às esferas físicas e psicológicas (PEREIRA, 2015, p. 547), assim como a das crianças e adolescentes. Portanto, cada grupo possui suas próprias vulnerabilidades, algumas vezes coincidentes, outras não.
Em todos esses grupos, é possível que alguns direitos sejam feridos quando comparados às relações dadas entre iguais. É o caso, por exemplo, da dignidade da pessoa humana, entendida como capacidade de autodeterminação. É fácil notar que idosos, crianças, adolescentes, empregados, mulheres vítimas de violência doméstica, enfim, todos aqueles que pertencem a grupos vulneráveis são mais suscetíveis a terem sua dignidade violada pela sociedade. A proteção aos vulneráveis, portanto, está intrinsecamente ligada à ideia da preservação da dignidade.
Não se vislumbra, assim, uma razão jurídica para que os danos temporais possam afetar tão somente os consumidores integrados na cadeia de fornecimento. Na medida em que a mesma probabilidade de que consumidores sofram danos à sua dignidade também existe com relação aos outros grupos vulneráveis, tem-se como consequência lógica que estes também possam sofrer temporais ressarcíveis.
Isso não quer dizer, entretanto, que o dano temporal autonomamente considerado não possa ocorrer e de fato não aconteça em situações da vida regidas pelas mais diversas normas jurídicas. Por exemplo, é possível conceber a hipóteses de um acidente de trânsito em que a parte culpada não queira ressarcir a vítima do dano, fazendo com que esta tenha que utilizar boa parte de seu tempo tentando resolver a questão sem a necessidade do ajuizamento de processo judicial. É claro que, nessa situação, a vítima do dano estaria alocando seu tempo para resolver um problema causado por terceiro ao invés de utilizá-lo da forma como lhe aprouvesse. Nesse caso regido pelas normas gerais de Direito Privado, também há uma lesão à liberdade de escolha por parte da vítima.
O que diferencia a situação acima descrita da situação do direito do consumidor ou de outros grupos vulneráveis, está na intensidade da ofensa à dignidade humana.
A situação de vulnerabilidade presente tanto nas relações de consumo quanto nas demais relações com partes vulneráveis faz com que as ofensas aos direitos desses grupos, com maior frequência, os coloquem em situações degradantes de modo a ofender sua dignidade. As situações entre particulares, embora possam potencialmente ofender a dignidade da vítima do dano, dada a suposta igualdade entre as partes da relação jurídica, teriam que ser muito mais gravosas para justificarem a reparabilidade pela perda do tempo.
A fim de ilustrar essas situações, tome-se o caso dos idosos. A sua vulnerabilidade é reconhecida tanto no art. 230 da Constituição Federal[12] quanto pelo Estatuto do Idoso – Lei promulgada em 2003 com a finalidade específica de garantir proteção especial aos idosos. O Estatuto do Idoso, no art. 2º, deixa claro que esse grupo de pessoas tem direito à proteção integral, assegurando-se a “preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”[13].
Vê-se que a proteção trazida pelo art. 2º do Estatuto do Idoso é bastante ampla, englobando os aspectos espirituais e sociais. Além disso, a parte final do artigo, curiosamente, reafirma com destaque que a liberdade e a dignidade dos idosos devem ser resguardadas.
Imagine-se, então, o exemplo do acidente de trânsito em que a vítima seja idosa. O fato de o autor do dano forçar que o idoso tenha que, por inúmeras vezes, ir a uma oficina para fazer orçamentos e comprovar que seu veículo foi danificado faz com que ele seja obrigado a alocar seu tempo em atividades que não desempenharia caso não tivesse sido vítima do dano. Nesse tempo, o idoso poderia realizar atividades em prol de sua saúde ou mesmo de seu bem-estar. Não existe diferença intrínseca entre essa situação e a situação do consumidor que é obrigado a tentar, por diversas vezes, substituir o bem que veio com defeito. Em ambos os casos, a vítima é vulnerável quando comparada à outra da relação jurídica e sua dignidade foi diretamente ferida.
Portanto, é plenamente possível que haja a concessão de indenização por dano temporal em outros subsistemas que não na esfera do Direito do Consumidor. O que se deve analisar é se a dignidade e a liberdade da vítima foram feridas a ponto de justificar uma indenização. Na medida em que os grupos vulneráveis têm esses direitos lesados com maior frequência, a reparabilidade pelo dano temporal será igualmente mais frequente nas relações em que eles estejam presentes.
Portanto, pode-se concluir que existem quatro requisitos para que seja configurada a ressarcibilidade do dano temporal, sendo três primeiros os trazidos por Marcos Dessaune.
Em primeiro lugar, o ato que produz o dano temporal deve ser ilícito, de forma que deve ter havido uma real ofensa a um direito ou a um valor juridicamente reconhecido.
Em segundo lugar, deve haver ofensa à liberdade da vítima de escolher o que fazer com seu tempo; em outras palavras, o tempo gasto não deve ter sido querido pela vítima.
Em terceiro lugar, a perda de tempo deve ser intensa o suficiente para lesar direitos de personalidade e ultrapassar a noção de mero dissabor – análise que deverá ser feita sempre no caso concreto.
Por fim, como quarto requisito, deve haver uma ofensa à dignidade (capacidade de autodeterminação) da vítima do dano. Em situações de vulnerabilidade de uma das partes, essa ofensa tende a ocorrer com maior frequência. Em relações entre partes com equivalência de forças, deve haver uma demonstração clara de que essa ofensa de fato ocorreu.
O primeiro requisito diz respeito à licitude do ato que causou o dano e os segundo, terceiro e quarto dizem respeito à averiguação do dano em si. Em qualquer dos casos, os outros requisitos de responsabilidade civil devem estar presentes: ato, nexo causal e nexo de imputação.
Vê-se, assim, que a ideia de ressarcimento do dano temporal não está vinculada somente à verificação da efetiva perda de tempo, mas também à análise da situação da vítima do dano em relação à outra parte da relação jurídica. A possibilidade de que a vítima sofra danos em sua dignidade não está atrelada especificamente às relações consumeristas, mas tem pertinência em todas as situações em que o sujeito se encontre em uma situação de vulnerabilidade.
5 Conclusão
A reparabilidade do dano temporal tem sido cada vez mais discutida doutrinariamente e aceita em decisões judiciais, seja considerando-se o dano pela perda de tempo uma categoria autônoma, seja englobando-o no contexto dos danos morais.
O dano temporal não merece ser reconhecido como simples subcategoria de danos extrapatrimoniais. Na verdade, a reparabilidade do dano temporal não decorre da proteção do tempo em si, mas da liberdade que tem a pessoa de alocar seu tempo – um recurso que tem à sua disposição – da forma que lhe convier.
O dano efetivamente causado à vítima pode ter tanto caráter patrimonial quanto extrapatrimonial, a depender do tipo de atividade que teria sido desempenhada no tempo perdido. A vítima poderia ter desempenhado tanto atividades de cunho patrimonial (como trabalhar ou fechar um negócio) quanto de índole extrapatrimonial (como estudar, ter atividades de lazer e passar tempo com familiares).
O que diferencia o dano temporal das demais espécies de dano é a desnecessidade de que comprovar o que deixou de ser realizado. Mesmo quanto há dificuldade ou impossibilidade de prova das atividades “perdidas”, o dano temporal é passível de ressarcimento diante do de alguma atividade, produtiva ou não, deixar de ter sido realizada. Existe, assim, uma presunção absoluta de que o indivíduo lesado iria realizar alguma atividade nesse tempo, qualquer que fosse sua natureza.
Mas isso não impede que a vítima prove a natureza efetiva do dano, se preferir. Nesse caso, não se estará geralmente diante de um dano temporal propriamente dito, mas de outros tipos de danos patrimoniais ou extrapatrimoniais, como lucros cessantes ou danos morais, a depender da atividade que deixou de ser realizada.
A autonomia do dano temporal, por conseguinte, decorreria do fato de que: (i) o dano definitivamente sofrido pode ter natureza tanto patrimonial quanto extrapatrimonial, e (ii) existe uma presunção absoluta de que o indivíduo lesado deixou d realizar alguma atividade que voluntariamente teria escolhido desempenhar. Caso a vítima do dano comprove ter sofrido danos patrimoniais ou extrapatrimoniais por causa do tempo perdido, poderia optar pela indenização com base nesses danos comprovados, em vez de recorrer à presunção inerente à lógica do dano temporal.
Embora autônoma, a indenização por dano temporal depende do preenchimento de quatro requisitos: (i) que haja um ato ilícito praticado pelo agente do dano; (ii) que haja ofensa à liberdade da vítima de escolher o que fazer com seu próprio tempo; (iii) que haja perda de tempo em quantidade apta a justificar uma indenização – o que dependerá da análise do caso concreto -; e (iv) que haja uma lesão à dignidade da parte lesada.
Em razão de sua condição peculiar de vulnerabilidade, o dano temporal é geralmente reconhecido na esfera do direito do consumidor, pois mais facilmente e com maior frequência a sua dignidade é ferida pelos fornecedores de serviços e produtos. Entretanto, a situação de vulnerabilidade dos componentes de certos grupos sociais justifica a possibilidade de concessão de indenização por danos temporais fora de relações de consumo.
Conforme visto, não é requisito essencial da reparabilidade por perda de tempo que haja vulnerabilidade, mas sim que haja uma ofensa objetiva à liberdade e à dignidade da vítima do dano. Entretanto, o fato de que algumas pessoas possam ser especialmente protegidas pelo ordenamento jurídico, dada sua situação frágil, faz com que, em alguns casos, a ofensa à dignidade ocorra com maior frequência e com base em atos ilícitos que não necessariamente, em uma relação entre iguais, faria com que a vítima do dano fosse colocada em uma situação degradante.
Por fim, importa ressaltar que a reparabilidade do dano temporal não estaria descartada em relações jurídicas entre particulares com equivalência de condições. Todavia, neste caso, deve haver uma demonstração clara de que os requisitos da indenização por dano temporal foram preenchidos, especialmente no que tange à lesão à dignidade da pessoa lesada pelo ato ilícito.
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[1] “O pretor não cuida de coisas pequenas”, tradução livre.
[2] “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
[3] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana.”
[4] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…),”
[5] “Art. 5.º. (…) XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.”
[6] Vale lembrar que em certos casos presume-se o dano moral, que é considerado in re ipsa. Flávio Tartuce exemplifica: “O art. 20, caput, do CC, tutela o direito à imagem e os direitos a ele conexos, confirmando a previsão anterior do art. 5º, V e X, da CF, que assegura o direito à reparação moral no caso de lesão à imagem. Destaque-se, a respeito dos danos morais, que o Superior Tribunal de Justiça editou, em novembro de 2009, a Súmula nº 403, prevendo que “independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos, os danos morais são presumidos ou in re ipsa” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e parte geral. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 1. P. 188-189).
[7] Esta é a visão, por exemplo, de Flávio Tartuce, que identifica ampliação do reconhecimento de dano moral quando “presente um aborrecimento relevante, notadamente pela perda do tempo útil. Essa ampliação de situações danosas, inconcebíveis no passado, representa um caminhar para a reflexão da responsabilidade civil sem dano” (Direito civil: direito das obrigações e responsabilidades civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 2. p. 423-424).
[8] Nesse sentindo, BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.399.931/MG. Recorrente: Ronan Guimarães Moreira. Recorrida: Albmar Comercial Ltda. Rel. Min. Sidnei Baneti. Julgado em: 11.02.2014; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 1.269.246/RS. Recorrente: Glênio Luis Ohlweiler Ferreira. Recorrido: Gol Transportes Aéreos S.A. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em: 20.05.2014; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.234.549/SP. Recorrente: Allan Silva Nicanor e outro. Recorrido: Edson Hernandes. Rel. Min. Massami Uyeda. Julgado em: 01.12.2012.
[9] Nesse sentido, BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.010.834/GO Recorrente: Marbor Máquinas Ltda. Recorrido: Sheila de Souza Lima. Relª Nancy Andrighi. Julgado em: 03.08.2010.
[10] Por exemplo, o do Processo 0005804-43.2014.8.26.0297. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo 0005804-43.2014.8.26.0297. Autor: Ivair Antonio Vazon. Réu: Banco Santander S.A. Juiz Fernando Antonio de Lima. Julgado em: 08.08.2014
[11] Nas palavras do autor: “penso que há, sim, uma relação entre a vulnerabilidade do consumidor e o novo dano de desvio produtivo que ele sofre no mercado. Isso ocorre porque, se os consumidores fossem mais fortes (ou menos vulneráveis) jurídica e economicamente na relação principalmente com os grandes fornecedores, o atendimento às expectativas de respeito e às exigências de maior qualidade de produtos e serviços receberiam certamente maior atenção das empresas”.
[12] “Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”
[13] “Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.”