RKL Escritório de Advocacia

RECUPERAÇÃO JUDICIAL – PROCEDIMENTO

RECUPERAÇÃO JUDICIAL – PROCEDIMENTO

Daniel Carnio Costa

 

A recuperação judicial de empresas é a ferramenta jurídica adotada pelo sistema brasileiro que tem por objetivo ajudar empresas viáveis, mas em crise, a superar esse momento de dificuldade, de maneira a preservar sua atividade empresarial e, consequentemente, também os empregos dos trabalhadores, a circulação de bens e serviços, a geração de riquezas, o recolhimento de tributos e todos os demais benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável.

Portanto, quando se trata de recuperação judicial de empresas, tem-se como pano de fundo a questão relacionada à crise da empresa. É esse o contexto dentro do qual se insere o estudo da recuperação judicial de empresas.

Nesse sentido, mostra-se importante o estudo do sistema jurídico voltado a lidar com as questões relacionadas à crise da empresa. Analisando-se o sistema jurídico de forma mais abrangente, nota-se que o sistema brasileiro que lida com a crise ou com a insolvência empresarial traz, basicamente, duas ferramentas: a falência e a recuperação judicial de empresas.

Ambos os institutos (falência e recuperação judicial) buscam realizar os mesmos valores ou visam tutelar os mesmos interesses, que são os benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial, mas utilizam técnicas diferenciadas.

Na recuperação judicial, conforme já visto, busca-se preservar os benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial através da ajuda que se dá à empresa em crise para superação do momento de dificuldade a fim de permanecer em atividade, criando-se um ambiente adequado para que exista uma negociação equilibrada e transparente entre devedora e seus credores, o que resultará na adequação dos interesses envolvidos no processo e também na preservação da atividade empresarial.

Na falência também se busca preservar os benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial, mas através de técnicas diferentes. Tratando-se de empresa inviável, cuja continuidade de suas atividades se mostre antieconômica e não geradora de benefícios econômicos e sociais, busca a falência retirar essa empresa do mercado o mais rápido possível, a fim de se abrir a possibilidade de que outra empresa ocupe o espaço deixado por aquela empresa inviável e exerça uma atividade empresarial saudável, gerando empregos, produzindo bons produtos, prestando bons serviços, recolhendo tributos e gerando todos os benefícios que a sociedade espera da atividade empresarial. Ao mesmo tempo, busca a falência desvincular os ativos da empresa inviável, que não geravam qualquer benefício econômico e social naquela atividade, e realoca-los em atividades empresariais produtivas e geradoras dos referidos benefícios. Assim, por exemplo, quando se tem a decretação da falência de uma empresa que se desenvolvia em determinado imóvel, enquanto esse imóvel permanecer lacrado e vinculado àquela massa improdutiva, nenhum benefício econômico e social será produzido. Ao contrário, esse imóvel passa a ser fonte de despesas e de problemas sociais de toda ordem, correndo o risco de ser invadido, de se tornar foco de doenças ou mesmo de ser utilizado para abrigo ou esconderijo de criminosos. Entretanto, a partir do momento em que o imóvel é alienado na falência, outro empresário – o adquirente – passará a utilizar o imóvel novamente para o desenvolvimento de atividade produtiva e geradora de empregos, tributos, serviços e todos os demais benefícios decorrentes da atividade empresarial saudável. Além disso, a venda do ativo viabilizará o pagamento dos credores da empresa falida que, em última análise, são outros empresários ou empregados, que dependem desses valores para desenvolver suas atividades econômicas, fazendo a economia local funcionar adequadamente.

Perceba-se, então, que falência e recuperação judicial visam realizar os mesmos valores, mas por técnicas diferentes.

A falência é a ferramenta adequada para ser utilizada na hipótese de se ter uma empresa em crise estrutural, que a torne inviável, mostrando-se antieconômica qualquer tentativa de manter-se aquela atividade empresarial inviável.

A recuperação judicial é a ferramenta adequada para situações em que se tem uma empresa em crise circunstancial, mas viável, mostrando-se adequada a preservação daquela atividade, eis que potencialmente geradora dos benefícios econômicos e sociais que se pretende preservar.

É importante ressaltar que não se deve aplicar a recuperação judicial para empresas inviáveis. A manutenção artificial do funcionamento de uma atividade empresarial inviável gera prejuízos econômicos e sociais e coloca em risco o bom funcionamento do mercado, podendo levar ao encerramento da atividade de outras empresas viáveis que não conseguirão competir com aquela empresa inviável e que tem seu funcionamento subsidiado pela atuação judicial.

Também é importante destacar que o instituto da falência não é algo ruim, como se pode imaginar numa primeira análise. Trata-se da ferramenta adequada a ser utilizada para empresas inviáveis e que se destina à realização dos mesmos valores buscados pela recuperação judicial.

É fundamental, portanto, que falência e recuperação judicial sejam aplicados corretamente para as hipóteses para as quais foram designados legalmente: falência para empresas inviáveis e recuperação judicial para empresas em crise, mas viáveis. Somente assim os resultados pretendidos pelo sistema legal de insolvência poderão ser integralmente atingidos.

 

1. Os sistemas jurídicos de insolvência empresarial[1]

Conforme já anotado, a recuperação judicial insere-se num contexto de crise empresarial. E a forma pela qual os países tratam essa questão diz muito sobre suas posições sociais, político e econômicas no que diz respeito à atividade empresarial.

Quando se analisa de forma panorâmica os sistemas de insolvência empresarial ao redor do mundo, constata-se que até o final do século passado existiam basicamente dois modelos de insolvência: o modelo de inspiração romano-germânica e o modelo de inspiração anglo-saxã. Nos modelos de inspiração romanística, o foco da recuperação de empresas está mais orientado para a tutela dos interesses do devedor, ao passo que nos modelos de origem anglo-saxã, o pêndulo da balança orienta-se mais para a tutela dos interesses dos credores.

Entretanto, os Estados Unidos da América, no final do século passado, reformaram seu Código de Falências e desenvolveram um novo modelo de insolvência, com inspiração diferente dos grandes modelos até então identificados, que não privilegiava a tutela do interesse dos credores e nem dos devedores, mas baseava-se na divisão de ônus entre credores e devedor como fator preponderante para que se pudesse atingir a recuperação da empresa em função dos benefícios sociais e econômicos relevantes que daí advém, inclusive, com a possibilidade de benefícios para credores e devedor no médio ou longo prazo.

O Brasil foi fortemente influenciado por esse novo modelo norte-americano quando editou a Lei 11.101/2005 que é fundada nessas mesmas premissas.

Portanto, é importante destacar que o modelo de recuperação judicial brasileiro é baseado na divisão equilibrada de ônus entre devedor e credores a fim de que se possa obter os benefícios sociais e econômicos que decorrem da recuperação da empresa.

Nesse sentido, e a partir dessa constatação, deve-se ter em mente que a empresa em recuperação deve assumir o ônus que lhe compete no procedimento agindo de forma adequada, tanto do ponto de vista processual, como também no desenvolvimento de sua atividade empresarial. E mais. A recuperação judicial somente tem sentido em função da geração dos benefícios sociais e econômicos relevantes que sejam decorrentes da continuidade do desenvolvimento da atividade empresarial, como geração de empregos ou manutenção de postos de trabalho, circulação e geração de riquezas, bens e serviços e recolhimento de tributos.

 

2. A teoria da superação do dualismo pendular

Observando-se o desenvolvimento das legislações de insolvência ao longo da história, no mundo e no Brasil, pode-se concluir que a concessão da possibilidade de recuperação surgiu, inicialmente, como uma possibilidade de pagamento aos credores, com a proteção do devedor contra penas corporais (cessio bonorum). Durante a evolução do instituto, e com variações entre os diferentes países e sistemas, é nítido que a recuperação judicial evoluiu de opção dos credores para ser considerado como benefício a ser concedido pelo Estado.

É possível observar, ainda, que durante a evolução da recuperação judicial, o instituto oscilou entre a proteção dos interesses dos credores e a proteção dos devedores. Em termos de legislação de insolvência, a maior proteção aos interesses dos devedores evidencia-se pela maior possibilidade de recuperação através da moratória ou da concordata. Ao contrário, quanto menores as possibilidades de moratória, maior o prestígio ao interesse patrimonial dos credores.

Analisando-se as características do instituto durante a sua evolução, verifica-se que ora a legislação estimula a moratória e a concordata, para fazer frente a períodos de crise econômica e desenvolver a atividade empresarial, ora a legislação traz maiores limitações a esses institutos, como reação ao abuso dos devedores, inclusive dando tratamento criminal a essas condutas fraudulentas.

Evidencia-se, assim, um dualismo pendular durante a evolução do instituto. Esse movimento pendular constante que oscila na proteção dos polos da relação de direito material já foi identificado na doutrina de Fábio Konder Comparato.[2]

Entretanto, a criação de um novo modelo pelo sistema norte-americano, com a reforma do Bankruptcy Code (especialmente o Chapter 11) no final da década de 80, do século passado, rompeu com o dualismo pendular.

Segundo a filosofia desse novo modelo norte-americano, a recuperação judicial não existe para defender interesse de credores ou de devedores. O objetivo do instituto é garantir a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial, ou seja, os empregos, os tributos, as riquezas e a circulação de bens, produtos ou serviços.

Desloca-se o pêndulo dos polos da relação de direto material (credor-devedor) para a finalidade social e econômica do instituto.

A legislação brasileira foi fortemente influenciada pelo Bankruptcy Code dos EUA, adotando um sistema que também prestigia a realização dos objetivos do sistema ao invés do interesse de credores ou devedores. O grande salto evolutivo representado pela Lei 11.101/2005 foi o reconhecimento da função social da atividade empresarial e da necessidade de preservação dessa atividade como pressuposto de manutenção de todos os benefícios sociais e econômicos dela decorrentes.

Além disso, houve também o reconhecimento da necessidade de se criar um ambiente favorável à negociação entre credores e devedores a fim de se encontrar a melhor solução para a crise da empresa, tendo com vetor de atuação a preservação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade da empresa, que deverão prevalecer sobre o interesse particular do empresário devedor ou dos credores.

Superou-se, portanto, o dualismo pendular.

E a observação dessa evolução do instituto da recuperação judicial está na base do raciocínio da teoria da superação do dualismo pendular.

Senão, vejamos.

Conforme já visto, a legislação de insolvência, em sua evolução, ora protege mais o credor, ora mais o devedor. Mas esse raciocínio dual não existe apenas em relação à lei de insolvência. Isso ocorre em todas as áreas do direito. Assim, observa-se também que a lei ora protege mais o consumidor ou o fornecedor, o inquilino ou o locador; e assim por diante. Esse fenômeno também é observado em relação ao intérprete. Assim, não só a lei toma partido na proteção de um dos polos da relação de direito material, mas também o intérprete busca aplicar a lei sempre em favor de um dos polos da relação de direito discutida no processo de solução de um caso concreto.

Entretanto, segundo a teoria da superação desse dualismo pendular, esse dualismo de proteção legal deve ser abandonado com o reconhecimento que o que deve orientar o legislador e o intérprete é a busca pela realização das finalidades do sistema dentro do qual as relações de direito material estão inseridas. Deve-se deslocar o foco da proteção/interpretação para a busca da finalidade útil do instituto jurídico. A finalidade do instituto e o bom funcionamento do sistema jurídico devem prevalecer sobre a proteção do interesse de um dos polos da relação de direito material.

Nesse sentido, conforme já sustentado:[3]

“Assim, numa relação de crédito e débito, o foco da interpretação deve estar no atingimento da eficiência no sistema de cobrança, muito mais do que na proteção de credor ou devedor. Isso porque, por exemplo, se a lei cria proteções ao devedor, de modo a tornar intransponível a realização do crédito, o sistema perde eficácia e, nessa condição, deixará de ser utilizado pelos credores, que buscarão a realização de seu crédito através de sistemas alternativos, muitas vezes ilegítimos. E, se a ideia da lei ou do intérprete era proteger a dignidade do devedor, a implosão da eficácia do sistema vai, em última análise, prejudicar justamente o devedor, vez que num sistema ilegítimo (como a cobrança particular através de cobradores privados) o devedor não terá qualquer proteção.

Diante de uma situação real, é possível que o intérprete encontre diversas soluções, todas elas tecnicamente sustentáveis e de acordo com o sistema legal na qual se insere. Pode-se interpretar a lei em favor do credor ou em favor do devedor. Entretanto, qual deve ser a interpretação correta? Será aquela que prestigia a finalidade do sistema, em eficiência plena.

Por isso é que sustento a necessidade de superação do dualismo pendular. A preservação da eficiência do sistema deve ser o limite ao exercício da interpretação da lei.

Esse raciocínio se aplica totalmente à recuperação de empresas. Muito embora se observe que o pêndulo legal oscilou entre credor e devedor durante a evolução do instituto, deve-se reconhecer que, nesse momento, esse pêndulo deve ser deslocado das partes para a realização eficaz da finalidade do próprio instituto.

Assim, a interpretação correta, quando se trata de recuperação de empresas, será sempre aquela que prestigiar a recuperação da atividade empresarial em função dos benefícios sociais relevantes que dela resultam. Deve-se buscar sempre a realização do emprego, do recolhimento de tributos, do aquecimento da atividade econômica, da renda, do salário, da circulação de bens e riquezas, mesmo que isso se dê em prejuízo do interesse imediato da própria devedora ou dos credores.

Como já visto acima, os credores e a empresa devedora devem assumir os ônus para que prevaleça a finalidade maior da lei que vem a ser a consecução de todos os benefícios sociais relevantes já mencionados.

É fácil notar que se nossos Tribunais aplicarem a lei para prestigiar o interesse de alguns setores econômicos ou de classes de credores ou mesmo da própria devedora, correrão o risco de ferir de morte o instituto da recuperação judicial de empresas.

Nesse diapasão, é importante observar que a recuperação da empresa devedora não é princípio absoluto e somente deve ser feita em função dos benefícios sociais relevantes que serão produzidos em razão da preservação e recuperação da atividade produtiva.

Supera-se, assim, o dualismo pendular em busca da preservação do sistema legal.”

 

3. Teoria da divisão equilibrada de ônus na recuperação judicial de empresas

A teoria da divisão equilibrada de ônus na recuperação judicial é, na verdade, um passo adiante no raciocínio da superação do dualismo pendular. Na medida em que se reconhece que a recuperação judicial deve ser aplicada/interpretada com o foco na realização dos objetivos maiores do sistema dentro do qual as relações de direito material estão inseridas, observa-se que credores e devedores (inseridos no contexto da recuperação judicial) devem assumir ônus a fim de viabilizar o atingimento do resultado útil do processo recuperacional. Esses ônus devem ser compartilhados e divididos de forma equilibrada entre credores e devedores e terão como contrapartida o valor social do trabalho e todos os benefícios econômicos e sociais decorrentes da manutenção da atividade empresarial.

É certo que a recuperação judicial deve atender aos interesses dos credores, que vão receber os seus créditos, ainda que em termos renegociados, com valores e prazos distintos do que foi originalmente assumido pela devedora (e isso representa um benefício no médio ou longo prazo, visto que tal concessão permitirá a manutenção das atividades da devedora, que continuará a negociar com seus fornecedores/credores e a gerar empregos). É certo, também, que a recuperação judicial deve ser boa para a devedora, que continuará produzindo para pagamento de seus credores em termos renegociados e compatíveis com sua condição econômica. Entretanto, não se pode perder de vista que a recuperação judicial, acima dos interesses de credores e devedores, se faz em função do atingimento do benefício social e, portanto, somente é considerada exitosa no momento em que se atinge a preservação dos benefícios sociais decorrentes da preservação da atividade empresarial.

Por isso, credores e devedores devem agir de maneira compatível com o atingimento dos objetivos maiores do sistema recuperacional. Nenhum interesse de credor ou de devedor poderá se transformar em barreira intransponível ao atingimento das finalidades sociais do processo. Não se deve permitir aos credores e devedores que coloquem os seus interesses particulares acima dos interesses sociais resultantes do atingimento das finalidades do sistema recuperacional.

Daí que credores e devedores devem assumir alguns ônus no processo de recuperação, a fim de que se comportem de maneira compatível com o atingimento das finalidades do sistema. Esses ônus se justificam em função dos benefícios de interesse social resultantes do sucesso da recuperação judicial que, em última análise, aproveitam a todos os credores e devedores.

Não se pode negar, entretanto, que credores e devedores (como agentes de mercado) agem no processo de recuperação judicial voltados à realização de seus próprios interesses. Não é a finalidade social do processo que orienta a atuação das partes no processo, mas sim a busca pela condição mais favorável do ponto de vista de seus interesses próprios e egoísticos. Assim, o credor vai buscar receber o seu crédito de maneira mais favorável aos seus interesses, ao passo que a devedora vai tentar buscar uma vantagem negocial que lhe seja mais favorável, independentemente da finalidade social do processo.

Assim, cabe ao juiz do processo (auxiliado pelo administrador judicial) controlar a atividade de credores e devedores no processo recuperacional, fazendo com que suas atuações sejam compatíveis com a realização das finalidades sociais do processo, impedindo que os interesses particulares sejam colocados em patamar superior em relação aos interesses sociais, evitando que se transformem em barreiras intransponíveis à realização dos interesses maiores do sistema.

Falando em outras palavras, cabe ao juiz distribuir os ônus que credores e devedores deverão suportar no processo de recuperação judicial, a fim de que sejam atingidas as finalidades do sistema.

E tais ônus devem ser distribuídos de forma equilibrada, a fim de que não seja carreado apenas à devedora ou apenas a um ou alguns credores, todo o peso da recuperação judicial. Isso porque, se o benefício social a todos aproveita, os ônus para seu atingimento devem ser compartilhados por todos.

É importante destacar, ainda, que os ônus da recuperação judicial devem ser suportados por credores e devedores, na medida em que existe essa contrapartida de interesse social. Credores e devedores não têm a opção de se recusar a suportar tais ônus. Isso lhes será imposto pelo juiz como condição de sucesso da recuperação e diante da demonstração da existência da contrapartida de interesse social.

Mas quais são os ônus que devem ser suportados por credores e devedores?

Os credores devem suportar o ônus de negociar e de dar suporte a um plano de recuperação judicial que vai implicar em alteração das condições originais do negócio realizado com a devedora. Portanto, o credor não faz um favor de negociar. Isso lhe é imposto como um ônus do processo recuperacional. O devedor que se recusa a negociar age de maneira contrária aos objetivos do sistema e, como consequência, poderá ter sua posição superada judicialmente. Assim, por exemplo, o voto do credor contrário ao plano de recuperação em função da recusa de negociar, será desconsiderado pelo juiz.

Os devedores também devem assumir ônus. A empresa em recuperação (devedora) deve atuar de maneira adequada, tanto do ponto de vista processual, quanto do ponto de vista empresarial, sempre com vistas ao atingimento das finalidades do instituto jurídico em questão.

Não se pode admitir que a empresa em recuperação se coloque na cômoda situação de carrear aos seus credores todo o ônus de sua recuperação, comportando-se de forma descompromissada do tipo “devo, não nego e pago quando e como puder”.

A empresa em recuperação (devedora) deve assumir ônus de duas ordens: empresariais e processuais.

São ônus empresariais da empresa em recuperação: agir de maneira transparente e de boa-fé, manter os postos de trabalho, recolher tributos, produzir e fazer circular produtos e serviços e, enfim, preservar os benefícios econômicos e sociais que são buscados com a manutenção da atividade empresarial.

 

Não faz sentido, portanto, que uma empresa para qual foi deferido o processamento da recuperação judicial, experimentando toda a proteção legal do instituto, deixe de se desincumbir de seu ônus e demita funcionários injustificadamente ou encerre as atividades de produção e circulação de riquezas ou deixe de recolher tributos.

É certo que não se proíbe a demissão de funcionários, desde que tal redução nos postos de trabalho tenha estreita correspondência com o projeto de sua recuperação, como nos casos em que a recuperação da empresa passa necessariamente pela diminuição de suas dimensões. Todavia, mesmo nesses casos, não é aceitável que a empresa em recuperação deixe de providenciar todos os pagamentos das indenizações trabalhistas determinadas por lei em função da rescisão dos contratos de trabalho.

Do ponto de vista das atividades da empresa, tem-se que a devedora em recuperação judicial, por receber toda a proteção legal e em função dos ônus suportados pelos credores, tem o ônus de preservar os benefícios sociais e econômicos buscados pelo instituto.

A empresa devedora tem também o ônus de apresentar um plano de recuperação que seja factível, tenha sentido econômico e seja razoável, dentro da lógica de divisão equilibrada de ônus.

Mas a devedora também tem ônus processuais que devem ser cumpridos.

É ônus processual da recuperanda atender prontamente as determinações do juiz, do administrador judicial e cumprir de maneira fiel os prazos legais. A conduta processual da recuperanda deve ser alinhada com a finalidade do procedimento e, portanto, deve sempre ser pautada pela mais absoluta transparência e boa-fé, como decorrência lógica do princípio da divisão equilibrada de ônus.

Cabe ao administrador judicial, como auxiliar do juízo, fiscalizar de perto as condutas processuais e empresariais da recuperanda para o bom exercício de sua função. É certo que o administrador judicial não vai assumir a administração da empresa, mas deve estar muito atento na fiscalização dos rumos empresariais assumidos pelos seus diretores, a fim de certificar-se de que os recursos auferidos pela devedora durante o período de proteção legal estejam sendo aplicados em atividades compatíveis com as finalidades do instituto. Da mesma forma, deve o administrador judicial fiscalizar de maneira muito próxima o cumprimento dos prazos pela recuperanda, bem como sua conduta processual, que também deve ser compatível com a finalidade do instituto.

O descumprimento pela recuperanda de seus ônus processuais e empresariais poderão gerar a convolação da recuperação em falência. Muito embora tal situação não esteja prevista expressamente na lei, é evidente que o desaparecimento dos fundamentos do instituto, considerados como pressupostos do processo de recuperação judicial, devem implicar na falência da empresa cuja superação da crise, pela própria conduta da devedora, se mostra absolutamente improvável.

Sobre a influência do direito norte-americano no que diz respeito à divisão equilibrada de ônus, confira-se:[4]

“No sistema norte-americano de recuperação judicial de empresas (Bankruptcy Code – 11 USC, Chapter 11), cuja filosofia confessadamente influenciou a formação do modelo brasileiro, a confirmação ou homologação do plano de recuperação judicial depende da verificação judicial da existência de alguns requisitos ou standarts que garantem que os ônus da recuperação empresarial estejam divididos de maneira equilibrada entre credores e devedora.

Mesmo que se trate de plano de recuperação judicial aprovado por todas as classes de credores (plans accepted by every class), a Section 1129(a) do Bankruptcy Code estabelece 16 requisitos que devem ser preenchidos como condição para homologação do plano apresentado pela devedora (ou pelos próprios credores, já que isso também é possível no sistema norte-americano). Assegura-se que o plano de recuperação seja justo e tenha sentido econômico, garantindo que os credores que foram contrários à sua aprovação (mesmo nas classes que aprovaram o plano) recebam ao menos o mesmo montante que receberiam em caso de decretação de falência (Section 1129(a)([5])); algumas categoria de créditos, como os trabalhistas, devem ser pagas em dinheiro na data de efetivação do plano, salvo concordância da classe em recebimento diferido, mas no valor integral do débito (Section 1129(a)(9)(A)); o plano deve ser factível (feasibility requirement), o que significa que deve haver demonstração de que o devedor tem condições de cumprir as metas nele estabelecidas, sem a necessidade de futuras renegociações e sem a chance evidente de conversão em falência.

Importante destacar, ainda, que a Section 1129 (d) estabelece como importante standart para homologação do plano, que ele não tenha como principal propósito evitar ou fraudar o recolhimento dos tributos ou o pagamento de garantias registradas.

Nota-se, assim, que no sistema norte-americano, o controle judicial do equilíbrio na divisão de ônus entre devedora e credores se faz pela verificação de standarts como fairness, feasiability, best interests of creditors, special treatment for priority claims, dentre outros.

Muito embora a lei brasileira seja silente quanto ao controle judicial desse equilíbrio de ônus, sua realização é imprescindível para garantir o resultado útil da recuperação de empresas e se trata, por óbvio, de uma decorrência necessária do sistema.”

 

4. Aspectos fundamentais do procedimento da recuperação judicial de empresas: negociação entre devedora e credores e stay periodcomo instrumento de negociação

O sistema brasileiro de recuperação judicial de empresas tem como fundamento a negociação entre devedora e credores. Segundo a lei, a solução para a crise da empresa deve ser encontrada conjuntamente por credores e devedores. Por isso, o objetivo imediato do procedimento da recuperação judicial de empresas é viabilizar a negociação transparente e equilibrada entre a devedora e seus credores.

Credores e devedora deverão negociar um plano de recuperação que seja compatível com as condições econômicas da devedora e, ao mesmo tempo, atenda minimamente aos interesses dos agentes de mercado, de modo a preservar as atividades empresariais da devedora e, consequentemente, a geração dos empregos, o recolhimento dos tributos e a circulação de bens, produtos, serviços e riquezas.

Entretanto, não é natural (como visto acima) que os credores atuem no processo visando o seu resultado social. Daí que houve a necessidade de criação de estímulos legais para que a negociação aconteça.

O principal estímulo legal é o stay period.

Conforme dispõe o art. 6º, caput, da Lei 11.101/2005, o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. Essa suspensão deverá durar por no máximo 180 dias.

A lógica do sistema é a de que, dentro desse prazo de 180 dias, seja possível que a devedora negocie a consiga aprovar um plano de recuperação em Assembleia Geral de Credores.

Durante o período de stay, os credores ficam proibidos de prosseguir na execução individual de seus créditos em face da devedora.

Essa é a principal ferramenta legal destinada a garantir a negociação no ambiente da recuperação judicial. Isso porque, caso os credores pudessem optar por executar individualmente seus créditos, raramente optariam por sentarem-se a mesa para negociar coletivamente com a recuperanda, a fim de se sujeitarem a condições diversas daquelas que foram originalmente contratadas.

O prazo de suspensão de 180 dias foi estabelecido em função do prazo para realização da AGC, que é de 150 dias, conferindo-se ao magistrado um prazo de 30 dias para análise e homologação do plano eventualmente aprovado pelos credores.

 

5. A constatação informal preliminar (perícia prévia)

Segundo dispõe o art. 52 da Lei 11.101/2005, “estando em termos a documentação exigida pelo art. 51 desta lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial”.

Entretanto, o art. 51 da Lei 11.101/2005 estabelece que a devedora deve juntar uma série de documentos contábeis, fiscais e econômicos que se destinam a fornecer ao juízo e aos credores um conhecimento mínimo da situação da crise da empresa. É por essa razão que a lei impõe que a devedora apresente balanço, resultados, projeções de faturamento, relação de credores etc.

O juiz deverá analisar essa documentação como condição para deferir o processamento da recuperação judicial.

A decisão que defere o processamento da recuperação judicial é, sem dúvida, uma das mais importantes do processo, na medida em que é a partir de tal decisão que entra em vigor o stay period, impactando de forma importante o funcionamento do mercado e a conduta do conjunto de credores.

Nesse sentido, é evidente que o juiz deve ter condições de analisar a completude e o teor dos documentos juntados pela devedora e que instruem sua petição inicial antes de tomar uma das decisões mais importantes do processo.

Mas tratando-se de documentos técnicos, contábeis e econômicos, o juiz necessitará de auxílio técnico para fazer essa análise, na medida em que, como regra, o juiz não tem formação em outras áreas do conhecimento além do direito.

Assim, muito embora a Lei 11.101/2005 não tenha a previsão expressa de que o juiz poderá se socorrer de auxílio técnico para análise da documentação inicial, tal possibilidade resulta da aplicação das regras gerais de processo. O Código de Processo Civil dispõe que, sempre que o juiz necessitar de conhecimento técnico diverso do direito para julgar determinada questão, se fará necessária a realização de uma perícia.

Além disso, a realização de um estudo pericial para a análise da documentação do art. 51 da Lei 11.101/2005 também se impõe como consequência da sua interpretação a partir da teoria da superação do dualismo pendular.[6]

Nesses termos, antes de decidir sobre o deferimento do processamento da recuperação judicial, deverá o juiz determinar a realização de uma perícia prévia. Na realidade, não se trata de uma perícia propriamente dita, mas sim de uma constatação informal prévia.

Essa constatação informal prévia tem por objetivo verificar se os documentos juntados pela requerente preenchem todos os requisitos exigidos pelo art. 51 da Lei 11.101/2005.

E mais.

Deverá o perito visitar as dependências da devedora para constatar suas reais condições de funcionamento e para fazer uma correlação inicial dos documentos juntados com a realidade da empresa.

São objetivos da constatação informal prévia: (a) garantir que a documentação inicial esteja completa; (b) garantir que a documentação inicial seja fiel à realidade da empresa; (c) garantir que a empresa esteja efetivamente em funcionamento e tenha capacidade de gerar os benefícios que a lei busca preservar; (d) evitar fraudes; (e) preservar o cumprimento das regras de competência.

Caso estejam faltando documentos, ou alguns documentos não espelhem a realidade encontrada na constatação in loco feita pelo perito, o juiz deve conceder prazo para que a requerente emende a petição inicial e complete a documentação ou corrija os defeitos encontrados.

Constatando-se que a empresa devedora não tem qualquer atividade, nem tem condições de funcionamento, não faz qualquer sentido se iniciar um processo de recuperação judicial. Deve o pedido ser indeferido de plano. Ora, conforme já visto, a recuperação judicial se faz em função dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial. O objetivo da lei é preservar os benefícios que decorrem da atividade empresarial, ou seja, empregos, tributos, circulação de produtos, serviços, riquezas. Nesses termos, não há razão para se iniciar um processo de recuperação judicial se, desde logo, se percebe que a empresa não produz qualquer dos benefícios que a lei busca preservar. Um processo de recuperação de empresa que não produz benefícios econômicos e sociais ser faria apenas e tão somente no interesse da própria devedora, em detrimento dos credores e sem que houvesse qualquer contrapartida de interesse social.

Apurando-se a existência de tentativa de fraude contra credores, o que pode ser muitas vezes observado pela simples visita in loco na empresa devedora, deve o juiz indeferir de plano o processamento da recuperação judicial e encaminhar a notícia ao Ministério Público para a apuração criminal cabível.

Por fim, constatado que aquele não é o local do principal estabelecimento da devedora, deve o juiz encaminhar o processo ao juízo competente, preservando-se as regras legais de competência.

A constatação informal prévia deve ser determinada pelo juiz para ser feita em prazo breve. Não se deve prolongar esse período de análise preliminar, sob pena de se causar grave prejuízo à devedora. Isso porque, ao ser distribuído o pedido de recuperação judicial, a notícia se espalha ao mercado, iniciando-se uma verdadeira corrida dos credores contra o patrimônio da devedora. Caso se prolongue a constatação prévia, antes do deferimento do processamento e da proteção do stay period, corre-se o risco de se inviabilizar a empresa antes mesmo do início de sua recuperação judicial.

Nesse sentido, a constatação prévia deve ser realizada no prazo máximo de 5 dias.

Tratando-se de constatação informal e prévia, não haverá necessidade de indicação de quesitos, nem de indicação de assistentes técnicos. Trata-se de medida informal que visa dar ao juiz melhores condições de decidir sobre o início do processo de recuperação judicial.

O perito a ser nomeado para realização da constatação informal prévia é, normalmente, aquele que posteriormente atuará como administrador judicial, caso o processamento do pedido seja deferido judicialmente. Dessa forma, caso o pedido seja indeferido de plano, o juiz fixa o valor da constatação prévia em sentença. Caso a recuperação seja processada, o custo da realização da constatação prévia será incluído no custo geral da administração judicial.

A constatação informal prévia vem sendo aplicada desde 2011 pela 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo com excelentes resultados.[7] Tanto assim, que a prática vem sendo atualmente replicada por outras Varas de Falência e Recuperação Judicial em diversas outras regiões do Brasil.

 

5.1. A viabilidade como pressuposto da recuperação judicial

A viabilidade econômica da empresa em crise deve ser analisada pelos credores (agentes de mercado) no momento de se votar o plano apresentado pela devedora. É competência dos credores e do mercado em geral fazer esse tipo de análise. Não cabe ao magistrado fazer uma análise de viabilidade econômica uma vez que tal questão diz respeito ao mérito do plano de recuperação judicial, estando abrangido pela soberania da assembleia geral de credores.

Sustenta-se, equivocadamente, que a realização da perícia prévia (constatação informal prévia) teria por objetivo analisar a viabilidade econômica da empresa, antes de se deferir o processamento do pedido.

Entretanto, na verdade, a perícia prévia não tem o objetivo de analisar a viabilidade econômica da empresa por duas razoes: primeiro, porque viabilidade econômica é questão afeta aos credores; segundo, porque seria impossível a aferição da viabilidade econômica da empresa em momento tão inicial do processo, considerando que uma empresa aparentemente inviável do ponto de vista econômico poderia se viabilizar pelo plano aprovado pelos credores.

A perícia prévia (constatação preliminar) visa analisar, dentre outras coisas, outro tipo de viabilidade, que consiste na capacidade que a empresa possui de gerar os benefícios que a lei busca preservar.

Portanto, a viabilidade para fins de se deferir o processamento da recuperação judicial consiste na capacidade que a empresa possuir de produzir, circular riquezas, gerar em pregos e recolher tributos.

Nesse sentido, se durante a perícia prévia se constata que a empresa requerente encontra-se fechada, sem atividade, sem produção, sem empregados e sem recolher tributos e que não tem condições de gerar esses benefícios econômicos e sociais porque não possui clientes ou pedidos, pergunta-se: qual seria a razão para se deferir o processamento da recuperação judicial, jogando-se nas costas dos credores todo o peso do processo recuperacional (o stay, a negociação, o plano) se desde logo se observa que a empresa não gera qualquer dos benefícios sociais e econômicos que a lei busca preservar e que, portanto, não haverá qualquer contrapartida de interesse social?

Conforme já visto, a recuperação judicial de empresas somente se justifica em função da preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da manutenção das atividades empresariais saudáveis. Todos os ônus que devem ser suportados por devedores e credores devem encontrar contrapartida na produção de benefícios econômicos e sociais.

Nesse sentido, não faz qualquer sentido que se inicie um processo de recuperação judicial (deferimento de seu processamento) se já é possível constatar desde logo que a empresa não tem condições de gerar os benefícios que a lei busca preservar.

É esse o sentido de viabilidade que deve ser analisado pelo juiz no momento de deferir (ou não) o processamento da recuperação judicial. A viabilidade econômica é questão que deve ser analisada pelos credores no momento de votar o plano apresentado pela devedora.

 

6. Visão geral do procedimento da recuperação judicial

O processo de recuperação judicial se inicia com a apresentação pela devedora de petição inicial que deverá expor as causas concretas da situação patrimonial do devedor e as razões da crise econômico-financeira.7 Além disso, a petição inicial deverá ser acompanhada das demonstrações contábeis relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o pedido, confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e compostas obrigatoriamente de: (a) balanço patrimonial; (b) demonstração de resultados acumulados; (c) demonstração do resultado desde o último exercício social e; (d) relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção.

Deverá, ainda, a devedora instruir a petição inicial com os seguintes documentos: (a) a relação nominal completa dos credores, inclusive aqueles por obrigação de fazer ou de dar, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente; (b) a relação integral dos empregados, em que constem as respectivas funções, salários, indenizações e outras parcelas a que têm direito, com o correspondente mês de competência, e a discriminação dos valores pendentes de pagamento; (c) certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas, o ato constitutivo atualizado e as atas de nomeação dos atuais administradores; (d) a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor; (e)  os extratos atualizados das contas bancárias do devedor e de suas eventuais aplicações financeiras de qualquer modalidade, inclusive em fundos de investimento ou em bolsas de valores, emitidos pelas respectivas instituições financeiras; (f)  certidões dos cartórios de protestos situados na comarca do domicílio ou sede do devedor e naquelas onde possui filial; (g) a relação, subscrita pelo devedor, de todas as ações judiciais em que este figure como parte, inclusive as de natureza trabalhista, com a estimativa dos respectivos valores demandados.

O juiz deverá analisar a petição inicial e, nesse momento, muito embora não exista previsão expressa na lei, poderá determinar a realização da perícia prévia (constatação informal preliminar) a fim de que um perito nomeado judicialmente analise a completude e a regularidade da documentação apresentada. Além disso, deverá o perito constatar in loco as reais condições de funcionamento da empresa e fazer uma verificação de correspondência entre a documentação apresentada e a realidade da empresa.

Caso seja constatado que os documentos estão incompletos ou irregulares, o juiz deve determinar que a empresa emende a petição inicial no prazo de 15 dias, por aplicação do art. 321 do NCPC.

Caso seja constatado que a empresa não tem viabilidade de gerar os benefícios que a lei busca preservar (não tem atividade, não gera empregos, não tem clientes ou pedidos, não recolhe tributos), deverá o juiz indeferir a petição inicial por falta de interesse processual, tendo em vista que a viabilidade (no sentido acima explicado) é pressuposto lógico para o processo de recuperação.

Caso seja constatado que o principal estabelecimento da empresa fica em outro local, o juiz deverá declinar de sua competência e encaminhar os autos ao juízo do principal estabelecimento da devedora.

Entretanto, estando em termos a petição inicial e os documentos, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial, iniciando-se o processo nos termos do art. 52 da Lei 11.101/2005.

Na decisão que defere o processamento da recuperação, o juiz: I – nomeará o administrador judicial, observado o disposto no art. 21 desta Lei;  II – determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, observando o disposto no art. 69 desta Lei; III – ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor, na forma do art. 6º desta Lei, permanecendo os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações previstas nos §§ 1º, 2º e 7º do art. 6º desta Lei e as relativas a créditos excetuados na forma dos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei; IV – determinará ao devedor a apresentação de contas demonstrativas mensais enquanto perdurar a recuperação judicial, sob pena de destituição de seus administradores;  V – ordenará a intimação do Ministério Público e a comunicação por carta às Fazendas Públicas Federal e de todos os Estados e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento. § 1º O juiz ordenará a expedição de edital, para publicação no órgão oficial, que conterá: (a) o resumo do pedido do devedor e da decisão que defere o processamento da recuperação judicial; (b) a relação nominal de credores, em que se discrimine o valor atualizado e a classificação de cada crédito; (c) a advertência acerca dos prazos para habilitação dos créditos, na forma do art. 7º, § 1º, desta Lei, e para que os credores apresentem objeção ao plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor nos termos do art. 55 desta Lei.

A decisão que defere o processamento da recuperação judicial traz como consequência a suspensão de todas as ações e execuções movidas contra a recuperanda pelos credores sujeitos ao plano, nos termos do art. 6º, da Lei 11.101/2005. Esse é o chamado stay period, que não deve durar mais de 180 dias.

Muito embora a lei seja expressa ao dizer que o prazo de 180 dias de stay é improrrogável, a jurisprudência do STJ já se consolidou no sentido de permitir a prorrogação do prazo, excepcionalmente, sempre que o atraso na realização da AGC e na definição do plano não seja atribuído à conduta da devedora, mas à burocracia judiciaria.

No momento em que o juiz defere o processamento da recuperação judicial, o procedimento se desdobra em duas linhas paralelas e simultâneas de trabalho. Haverá a linha de definição de credores, que resultará na formação do quadro geral de credores. Haverá, também, a linha de apresentação do plano, votação do plano em AGC e fiscalização de seu cumprimento, o que culminará (caso cumprido) com o encerramento do processo de recuperação judicial ou com a convolação em falência, caso não aprovado o plano ou descumprido durante o período de fiscalização judicial.

A linha de trabalho da formação das listas de credores tem início com a publicação da lista de credores apresentada pela devedora junto com a petição inicial através do edital do art. 52, § 1º, da Lei 11.101/2005. Nesse momento, os credores que discordarem da lista ou que não constem da lista, poderão apresentar divergências administrativas ou habilitações administrativas diretamente ao administrador judicial, no prazo de 15 dias.

É importante ressaltar que essa fase inicial é puramente administrativa e deve ser feita perante o administrador judicial, sem intervenção judicial e fora dos autos do processo. Os credores poderão requerer mudanças na lista (no valor do crédito ou na sua natureza ou mesmo para ser excluído da lista) através de divergência administrativa, que consiste numa petição informal que deve ser apresentada diretamente ao administrador judicial, por e-mail ou por qualquer outro meio de comunicação. Caso o credor não conste na lista, mas deseja constar, deverá apresentar um pedido chamado de habilitação administrativa, também por petição informal.

Nesse mesmo prazo, o administrador judicial deve fazer uma verificação da lista apresentada pela devedora, conferindo se os créditos listados possuem origem documental comprovada. Além disso, o administrador judicial vai analisar os pedidos de divergência e também os pedidos de habilitação administrativas.

O resultado desse trabalho administrativo a ser feito pelo administrador judicial (divergências, habilitações administrativas e análise da base documental da lista da devedora) é a apresentação de uma segunda lista de credores, qual seja, a lista de credores do administrador judicial, conforme art. 7º, § 2º, da Lei 11.101/2005.

Perceba-se que essa segunda lista já é o resultado de uma depuração administrativa que deve ser feita pelo administrador judicial como resultado de suas análises, tanto dos documentos apresentados pela devedora, como das divergências e habilitações administrativas.

Essa segunda lista, do administrador judicial, será publicada através do edital do art. 7º, § 2º, da Lei 11.101/2005 e aqueles que não concordarem com essa lista poderão apresentar impugnação judicial, dirigida e a ser julgada pelo juiz da recuperação judicial.  Poderão apresentar impugnação judicial qualquer credor, a devedora ou seus sócios, o Ministério Público ou o Comitê de Credores.

As impugnações judiciais serão distribuídas em incidentes próprios ao juiz da recuperação judicial. Cada impugnação judicial formará um processo próprio, ou seja, uma autuação autônoma. Isso significa que as impugnações judiciais não devem ser autuadas como petições nos autos principais da recuperação judicial.

O prazo para apresentação das impugnações judicias é de 10 dias a contar da publicação do edital de publicação da lista do administrador judicial.

O procedimento das impugnações judiciais está regulado pelos artigos 8 a 15 da Lei 11.101/2005.

Paralelamente, o procedimento também se desenvolverá na linha de trabalho de apresentação do plano de recuperação judicial.

Nessa segunda linha simultânea e paralela de trabalho, haverá a apresentação do plano de recuperação judicial da devedora, no prazo de 60 dias, nos termos do art. 53 da Lei 11.101/2005.

A devedora deverá cumprir o prazo de apresentação do plano sob pena de haver a convolação da recuperação judicial em falência, nos termos do art. 73, II, da Lei 11.101/2005.

Apresentado o plano de recuperação judicial, haverá a publicação do edital com aviso de entrega do plano, a fim de que qualquer credor possa apresentar, em 30 dias, suas objeções ou discordâncias em relação ao plano, nos termos do art. 55 da Lei 11.101/2005.

Se não houver objeção ao plano, presume-se a concordância dos credores com teor do plano apresentado pela devedora, dispensando-se a realização de assembleia geral de credores para votação do plano. Assim, o plano é considerado fictamente aprovado e segue para homologação judicial.

Mas caso seja apresentada objeção, haverá a necessidade de convocação de assembleia geral de credores para votação do plano pelos credores, nos termos do art. 56 da Lei 11.101/2005.

O prazo para realização da AGC não deve ser superior a 150 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial.

 

Os credores deverão votar o plano apresentado pela devedora em AGC da seguinte forma: os credores são separados em 4 classes (classe 1 – trabalhistas e acidente de trabalho; classe 2 – garantia real; classe 3 – quirografários; classe 4 – credores ME e EPP). O plano deve ser aprovado em todas as classes para ser considerado aprovado em AGC. O quórum de aprovação varia conforme a classe. Nas classes 1 e 4, os credores votam por cabeça, independentemente do valor do crédito. Assim, o plano será aprovado nessas classes se contar com o voto de mais de 50{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos credores presentes na AGC. Nas classes 2 e 3 há um critério combinado de cabeça e crédito. Assim, o plano será considerado aprovado nessas classes se contar com o voto favorável de mais de 50{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} dos credores presentes na AGC e que representem mais de 50{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} do crédito representado na AGC.

É possível, ainda, que o juiz conceda a recuperação judicial, mesmo sem a aprovação do plano conforme o quórum acima analisado. Trata-se da hipótese de cram-down regulada pelo art. 58 da Lei 11.101/2005. Assim, o juiz poderá conceder a recuperação judicial à devedora se o plano foi aprovado por apenas 2 classes de credores, mas tenha o voto favorável de credores que representem mais da metade do crédito presente na AGC e nas classes em que o plano tenha sido rejeitado, tenha havido o voto favorável de mais de 1/3 dos credores (por cabeça e por crédito).

Se o plano for rejeitado, o juiz deverá convolar a recuperação judicial em falência, nos termos do art. 56, § 4º, e do art. 73, III, ambos da Lei 11.101/2005.

Caso o plano seja aprovado (pelo voto ou por cram-down) o juiz vai conceder a recuperação judicial da devedora por sentença. Nesse momento, o juiz poderá fazer um controle de legalidade das cláusulas do plano de recuperação aprovado pelos credores. Não deve o juiz homologar cláusulas ilegais, ainda que aprovadas pelos credores. Entretanto, o mérito do plano (que diz respeito às condições de pagamento dos créditos, como prazo, deságio, carência etc.) está inserido na soberania dos credores em AGC, não podendo haver interferência judicial nesse aspecto.

Concedida a recuperação judicial, a devedora/recuperanda ficará sob fiscalização judicial durante o prazo de 2 anos. Nesse período, o juiz verificará se a recuperanda vem cumprindo as obrigações assumidas no plano e com vencimento dentro desse biênio.

Havendo o descumprimento de qualquer das obrigações assumidas no plano e com vencimento dentro do prazo de dois anos de fiscalização, o juiz convolará a recuperação judicial em falência, nos termos do art. 62 da Lei 11.101/2005.

Por outro lado, havendo o cumprimento das obrigações vencidas dentro do biênio de fiscalização, o processo de recuperação judicial deve ser encerrado por sentença, conforme art. 63 da Lei 11.101/2005.

 

Referências

COSTA, Daniel Carnio. Novas teorias sobre processos de insolvência e gestão democrática de processos. Comentários completos à lei de recuperação de empresas e falências. Daniel Carnio Costa (coord). Curitiba: Juruá. 2015. Volume 1.

SANTOS, Theophilo de Azeredo. Parecer apresentado pelo IASP sobre o projeto de Lei 4.376/1993. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9567-9566-1-PB.pdf> Acesso em: 18.08.2015.

 

Citação

COSTA, Daniel Carnio. Recuperação judicial – procedimento. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/214/edicao-1/recuperacao-judicial—procedimento

 

[1] COSTA, Daniel Carnio. Novas teorias sobre processos de insolvência e gestão democrática de processos. Comentários completos à lei de recuperação de empresas e falências, pp. 18-19.

[2] Conforme relatado por Theophilo de Azeredo Santos, em parecer apresentado pelo IASP sobre o projeto de Lei 4.376/1993, “o nosso Direito Falimentar sempre se caracterizou pelo que o Professor FÁBIO KONDER COMPARATO denominou de ‘dualismo pendular’: as leis ora destacam a proteção dos credores, ora os interesses do devedor, sem que houvesse qualquer preocupação com eventual interesse social da empresa a ser preservado”.

[3] COSTA, Daniel Carnio. Op. cit., pp. 33-35.

[4] COSTA. Daniel Carnio. Novas teorias sobre processos de insolvência e gestão democrática de processos. Comentários completos à lei de recuperação de empresas e falências, p. 26.

[5] Lei 11.101/2005, art. 51.

[6] COSTA, Daniel Carnio. Novas teorias sobre processos de insolvência e gestão democrática de processos. Comentários completos à lei de recuperação de empresas e falências, pp. 35-39.

[7] COSTA. Daniel Carnio. Novas teorias sobre processos de insolvência e gestão democrática de processos. Comentários completos à lei de recuperação de empresas e falências, pp. 59-62.