RECUPERAÇÃO JUDICIAL: OS CRÉDITOS NÃO SUJEITOS, UM REEXAME NECESSÁRIO
Jader A. G. Lemos Neto
O tema do presente artigo continua a ser bastante debatido pela doutrina e pela jurisprudência pátria, confirmando uma tendência que confronta as finalidades da Lei n. 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.
O fato é que, apesar dos constantes alertas da doutrina mais autorizada e, inclusive, pela própria dinâmica do direito comparado[1] que inspira o nosso ordenamento, percebe-se uma indiferença legislativa e jurisprudencial sobre uma das principais funções estruturantes dos processos recuperacionais, qual seja, a reorganização das empresas em crise. Em outras palavras, a recuperação judicial foi concebida para maximizar a satisfação de todos os interesses atingidos pela insolvência da empresa, preservando os seus meios de produção.
Nessa seara, em vista dos seus fundamentos, a satisfação dos interesses dos credores passa necessariamente pela viabilização da empresa devedora, por meio de um processo de reorganização empresarial. E, para tanto, a recuperação judicial deve eleger o maior número possível de créditos sujeitos à sua reestruturação, a fim de permitir, efetivamente, uma real reorganização da empresa em crise.
A razão é óbvia: quanto mais global for à reestruturação, maior será a possibilidade de sucesso de sua reorganização. Inobstante, a realidade brasileira manifesta um movimento contrário à essa lógica e tendência estrangeira.
A Lei n. 11.101/05, ao ser instituído, excepcionou diversos créditos e obrigações sujeitos ao processo recuperacional, conforme o art. 49, §3º. E não parou apenas por aí. A sua recente reforma legislativa aprofundou ainda mais essa vertente, como se pode notar, por exemplo, a limitação de créditos sujeitos a recuperação judicial do produtor rural.
A jurisprudência, por sua vez, vem ampliando as exceções legais. Para ilustrar, citam-se os casos das cessões fiduciárias de créditos futuros, julgados, em agosto do corrente ano, por meio dos Recursos Especiais n. 2.032.341 e 2.004.946, no sentido de serem considerados, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), créditos não sujeitos à recuperação judicial.
Outro exemplo é a hipótese da relação contratual de trato sucessivo por longa duração, pela qual se compreende que, independentemente da data de assinatura do contrato, os créditos constituídos anteriormente ao ajuizamento da recuperação judicial seriam concursais, ao turno que os posteriores seriam não sujeitos, como se verifica, por exemplo, no Agravo de Instrumento n. 2152602-39.2023.8.26.0000 do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), julgado em setembro deste ano.
Dessa forma, como se pode notar, cada vez mais, a exceção tem virado a regra, de modo a prejudicar a reestruturação da empresa em crise, o que acaba por atingir a eficiência da Lei n. 11.101/05 e, em última análise, os próprios credores concursais. Em outros termos, essas exceções acabam por beneficiar e privilegiar alguns e poucos credores que, em tese, teriam relevantes posições de valor de crédito, em detrimento dos credores concursa, os quais, em regra, são a maioria.
De outro norte, quanto mais créditos forem retirados dos efeitos da recuperação judicial, a reestruturação será mais acentuada e invasiva aos credores concursais, já que o fluxo de caixa da empresa é único, fazendo frente aos credores concursais e aos extraconcursais. Depois da aludida reforma legislativa, os credores de créditos extraconcursais passaram a poder intervir diretamente nos processos recuperacionais, a exemplo da alienação de ativos, quando configurado o esvaziamento patrimonial por liquidação substancial.
Outro efeito da não sujeição de créditos nos processos de recuperação judicial, embora se deva reconhecer a melhoria proporcionada pelo DIP Financing neste ambiente, é que a extraconcursalidade seria um dos fatores de obstáculo ao acesso a financiamentos por empresas em crise, por embaraçar a precisão da precificação e do exame da viabilidade econômica global da recuperanda.
Para, além disso, embora essa realidade tenha mudado gradativamente, há uma notória dificuldade de empresas em crise conseguirem negociar com credores fora do âmbito da recuperação judicial, de maneira que a visão racional de uma reorganização coletiva pelo sistema de insolvência pode se tornar infrutífera.
Enfim, sem ter o intuito de esgotar o exame dos efeitos deletérios, o fato é que, sob a perspectiva do desenvolvimento nacional, não há qualquer estudo científico de impacto econômico-social, robusto e concreto, que demonstre que tal dinâmica se traduz numa maximização da eficiência do instituto da recuperação judicial. Inclusive, tais efeitos podem produzir estímulos de condutas pelos credores, trazendo graves prejuízos ao sistema recuperacional.
O professor Cássio Cavalli[2] chegou a mencionar tal problema em um de seus artigos publicado neste ano, pelo qual as assimetrias de tratamento entre as classes de credores dos processos falimentares e recuperacional podem vir a produzir incoerências. Induzindo determinados comportamentos de algumas classes de credores em detrimento de outras e gerando uma instabilidade na construção do plano de recuperação judicial e na eficiência do processo de insolvência.
Por exemplo, os créditos da fazenda pública são de natureza extraconcursal na recuperação judicial, ao passo que na falência são créditos concursais. Por sua vez, os credores trabalhistas são credores concursais na recuperação judicial, porém são credores preferenciais em relação aos da Fazenda Pública na falência. Este regime legal, a depender da situação concreta, pode vir a induzir, por exemplo, os credores trabalhistas tenderem a convolar a recuperação judicial em falência da devedora, para garantir o recebimento de seus créditos antes daqueles de titularidade da Fazenda Pública, que seriam não sujeitos no processo recuperacional e que, por isso, receberiam, a priori, antes que os próprios credores trabalhistas.
Igualmente, outro ponto que merece reflexão acerca do presente tema, seria a inversão lógica da racionalidade prioritária dos próprios créditos não sujeitos ante os concursais, já que existem casos na jurisprudência em que o próprio órgão julgador do processo de insolvência impediu o exercício de direitos de credores extraconcursais, como, por exemplo, condicionar e postergar a sua respectiva realização após o adimplemento integral de todos os credores concursais [3].
Ademais, a depender do tipo de garantia que esteja vinculado a determinado crédito, o tratamento pelo sistema de insolvência será distinto para o seu respectivo titular, podendo ser extraconcursal ou concursal, como, por exemplo, os credores com garantia hipotecária e aqueles detentores de propriedade fiduciária.
Tal situação jurídica, não parece ser razoável e condizente com os fins e objetivos do sistema de insolvência, notadamente com o princípio da ampla sujeição de créditos a recuperação judicial, que deveria reger o nosso sistema de insolvência, como norma imperativa de ordem pública. Assim sendo, sem a intenção de exaurir o assunto em tela, essas são as singelas considerações que têm por único objetivo o de provocar uma releitura e reflexões ao leitor no que diz respeito a este tema, o qual é pressuposto fundamental para prover a eficiência do sistema de insolvência pátrio.
[1] Por exemplo, a UNCITRAL recomenda que as legislações europeias tenham a mais ampla sujeição de créditos possíveis nos processos de reestruturação. Por sua vez, o sistema jurídico norte-americano, a partir de 2000, inspirado pelo famoso caso do amianto nos anos 80, subordinara o seu mero potencial de dano ao julgo dos processos recuperacionais. Nesse sentido: OLIVEIRA, Adriana Maria Cruz Dias de. Créditos Sujeitos à Recuperação Judicial. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 19-28.
[2] CAVALLI, Cássio. A prioridade do crédito garantido na lei 11.101/2005 e os limites da mens
legislatoris. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 3, p. 1-8, mar./2023. Disponível em:
www.agendarecuperacional.com.br. Acesso em: 05/09/2023.