PROVA TESTEMUNHAL NO AMBIENTE PENAL
Cleber Rogério Masson
A Constituição Federal adota, nos termos do art. 93, inciso IX, o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional. Não há hierarquia entre as provas, eis que ausente prévia tarifação dos meios de prova. Assim, são aceitos todos e quaisquer meios de provas, sendo respeitada a legalidade e a moralidade. O julgador deverá fundamentar concretamente o valor atribuído.
O testemunho é um dos meios de prova ou elementos de convicção para demonstração de fato juridicamente relevante. Trata-se da informação prestada por quem de direito acerca de tal fato ou qualquer de suas circunstâncias integrantes. Em diversos casos, a prova testemunhal é o único meio probatório que desponta no caso concreto.
Magalhães Noronha já advertia:
“Como quer que seja, máxime no processo penal, é ela a prova por excelência. O crime é um fato, é um trecho da vida e, consequentemente, é, em regra, percebido por outrem. ‘O depoimento – lembra VISHINSKI – é uma das provas mais antigas e generalizadas. Não há sistema probatório que lhe negue um lugar mais ou menos importante entre as demais classes de provas”.[1]
A testemunha que é chamada a depor de ciência própria e, maliciosamente, deforma ou nega a verdade, ou, ainda, cala o que sabe, não prejudica apenas interesses individuais postos em juízo, mas sacrifica a própria função do Estado de assegurar a realização prática do direito e da justiça.
Nicola Framarino Dei Malatesta,[2] em sua obra clássica A lógica das provas em matéria criminal, refere-se pejorativamente à testemunha como a “prostituta das provas”, que pela imperfeição inerente ao relato humano, quer pela falsidade tão fácil de verificar ou tão difícil de provar.
1. Conceito de testemunha
Testemunha é a pessoa desinteressada e capaz de depor que declara à autoridade judiciária o que tem ciência sobre fatos perceptíveis pelos sentidos. O objetivo é fornecer ao processo dados de conhecimento que foram obtidos sensorialmente pelo declarante
O art. 202 do Código de Processo Penal admite que qualquer pessoa seja testemunha, desde que seja dotada de capacidade física para depor. Assim, a incapacidade jurídica não impede o declarante de depor, admitindo-se o relato de menores de 18 (dezoito) anos, doentes e deficientes mentais.
A prova testemunhal tem natureza jurídica de meio de prova (instrumentos ou atividades pelos quais os elementos de prova são introduzidos no processo).
2. Características da prova testemunhal
A prova testemunhal tem por principais características a judicialidade, a oralidade, a objetividade, a retrospectividade e a individualidade.
A judicialidade significa que o testemunho deverá ser submetido ao crivo do contraditório e da ampla defesa. Destarte, o relato prestado perante a autoridade policial ou no curso de procedimento investigatório criminal deverá ser reproduzido em Juízo
A oralidade impõe a testemunha que reproduza os fatos oralmente, o que não impede, tal como preceitua o art. 204 do Código de Processo Penal, consulta a breves apontamentos.
Neste ponto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores não admite a mera ratificação abstrata do relato prestado em solo policial. No caso concreto, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 183.696/ES, não admitiu a conduta do magistrado que tão somente promoveu a leitura dos depoimentos prestados pelas testemunhas de acusação na fase do inquérito policial que, logo em seguida e ao seu turno, apenas apresentaram simples confirmação dos relatos anteriores. Tal conduta é comprometedora da análise da credibilidade dos testemunhos, impedindo o gozo do contraditório e da ampla defesa.
Todavia, registre-se que, em abstrato, nada obsta o relato dos milicianos em juízo para a narrativa de diligência policial que, por exemplo, resultou na prisão em flagrante.
A propósito, Fernando da Costa Tourinho Filho, com propriedade já elucidava:
“Dispondo o artigo 202 do Código Penal que qualquer pessoa pode ser testemunha, obviamente não há nem pode haver nenhum impedimento de os Policiais servirem de testemunhas. Todavia, se depuserem sobre fatos que foram objeto de diligências que contaram com a sua participação, é natural que suas palavras devam ser recebidas com certa reserva, em face do manifesto interesse em demonstrar que o trabalho realizado surtiu efeito e que a ação por eles desenvolvida foi legítima. Essa reversa deve ser ainda maior se por acaso houver outras pessoas que possam servir de testemunhas”.[3]
E, de igual maneira, Julio Fabbrini Mirabete:
“É também discutido o depoimento de policiais, quando são os únicos apresentados pela acusação. Em regra, tem ele o mesmo valor de qualquer outro testemunho, só perdendo esse valor quando se demonstra ter o depoente interesse na investigação. Como testemunhas não se escolhem, mas são as pessoas que têm conhecimento do fato, não se exclui de valor o depoimento da meretriz. Saliente-se que não vigora no nosso direito o brocado ‘testis unus, tetis nullus’; uma única testemunha faz prova bastante para a decisão quando o seu depoimento se harmoniza com os elementos colhidos nos autos”.[4]
O art. 221, § 1º, do Código de Processo Penal excepciona a regra da oralidade, permitindo a determinadas autoridades o testemunho por escrito. De igual modo, a regra da oralidade é relativizada pelo testemunho dos mudos e surdos-mudos que poderão depor por escrito. O surdo será questionado por escrito, mas responderá oralmente. Na hipótese do depoente também não souber ler ou escrever, será nomeada como intérprete pessoa habilitada para tanto.
A objetividade determina que a testemunha se expresse sobre fatos, abstendo-se a valoração, a emissão de juízos de valor, salvo quando a sua opinião for inerente à própria narrativa do fato delituoso. Portanto, exemplificativamente, não cabe à testemunha apontar quem julga ser o autor do delito. O depoimento deverá, ao revés, contemplar o relato dos fatos que tem conhecimento a partir de percepções sensoriais.
A retrospectividade exprime que o relato da testemunha deverá versar sobre fatos passados e não sobre fatos futuros.
A individualidade ordena que a colheita da prova testemunhal seja isolada, de modo que as testemunhas sejam inqueridas de forma separada. O magistrado deverá evitar que as declarantes ainda não ouvidas tenham contato com aquelas que já tenham prestado o seu relato.
Pragmática a sensata observação registrada pelo ilustre doutrinador Marco Antonio Marques da Silva:
“Embora exista a separação física de compartimentos, a mera orientação para que se calem ou que não dialoguem sobre o processo é de nenhuma valia, pois o comparecimento ao fórum é algo raro na vida das pessoas, e, naturalmente, elas conversarão sobre o fato e o que cada um viu. De todo modo, uma vez prestado o testemunho, a separação persiste e comunicação alguma existirá. Como pretendeu o legislador com a audiência única, ideal seria que todas as testemunhas fossem ouvidas em uma só data. Utopia. Na falta de uma testemunha e insistência da parte, alternativa não resta senão a designação de nova data; indiscutível que, nesta hipótese, a troca de impressões sobre o caso sub judice seja inevitável, mormente se policial que trabalham juntos. Porém, nada a se fazer se ocorrer”.[5]
3. Deveres da testemunha
3.1. Dever de depor
Como visto, o diploma processual admite que toda pessoa figure no processo como testemunha, surgindo o correlato dever de depor, corroborando para o esclarecimento do fato perquirido (art. 206 do CPP).
No entanto, o Código de Ritos prevê que determinadas pessoas poderão se recusar a depor e, ainda, estabelece proibições ao testemunho de outros sujeitos. A faculdade de recusar-se ao depoimento é outorgada ao ascendente e descendente, ao afim em linha reta, ao cônjuge, ainda que separado ou divorciado, ao irmão e ao pai, à mãe, ou ao filho adotivo do acusado.
O próprio diploma processual prevê que na impossibilidade de obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias, por outro modo, tais indivíduos serão obrigados a testemunhar, mas desincumbidos de honrar o compromisso de dizer a verdade, previsto pelo art. 203 do CPP. Por imperativo constitucional, a releitura do dispositivo também deve prestigiar idêntica prerrogativa aos companheiros, nos termos do art. 226, §3º, da Constituição Federal.
A finalidade do permissivo legal é assegurar a harmonia familiar, impedindo que determinadas pessoas que possuam vínculo familiar entre si sejam obrigadas a depor em prejuízo mútuo.
A proibição de depor está prevista para as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo. No entanto, a pessoa interessada poderá desobrigar o sigilo, facultando à testemunha a possibilidade de depor em juízo. Com a liberação do interessado, surge o direito e não o dever de depor. Se várias as partes interessadas, será necessário o consentimento de cada uma delas. O padre quanto ao conteúdo da confissão e o psicológico em relação ao teor da terapia são os exemplos típicos.
A função é o encargo recebido em face da lei, do contrato ou de decisão judicial. Ministério é o encargo em atividade religiosa ou social. Ofício, por sua vez, é a atividade eminentemente mecânica e manual. Profissão é a atividade de natureza intelectual ou, ainda, aquela inerente à conduta habitual com finalidade lucrativa.
Neste ponto, o Código Penal tipifica, no art. 154, a conduta de violação do segredo profissional para os sujeitos acima referidos, desde que a revelação possa produzir dano a outrem. A doutrina denomina tais indivíduos como confidentes necessários.
O segredo profissional desponta como consectário lógico do direto à intimidade, previsto no art. 5°, X, da Constituição Federal, e “obriga a quem exerce uma profissão regulamentada, em razão da qual há de tomar conhecimento do segredo de outra pessoa, a guardá-lo com fidelidade”. Exemplificativamente, o advogado a quem o cliente confidencia a prática de um crime não pode inadvertidamente transmitir essa informação a outras pessoas. O titular do segredo é protegido pelo direito à intimidade, uma vez que o profissional não pode sem justa causa invadir sua esfera privada e revelar a outrem o segredo de que teve conhecimento, sob pena de violar aquele direito e incidir na figura típica prevista no art. 154 do Código Penal.
O núcleo do tipo é “revelar”, que equivale a contar algo a alguém, delatar, denunciar, manifestar. Segredo é toda informação secreta, isto é, o assunto ou fato que não pode ser tomado público ou conhecido de pessoas não autorizadas, pois sua revelação pode produzir dano a outrem. Esse dano pode atingir um interesse público ou privado, bem como pode ser material (exemplo: vítima é prejudicada em suas relações comerciais) ou simplesmente moral (exemplo: vítima é considerada “louca” por outras pessoas). É necessário, porém, que seja injusto. Nesse crime, ao contrário do que se verifica no art. 153 do Código Penal, o responsável pela conduta criminosa pode ter recebido o segredo oralmente ou por escrito, ou ainda por outro modo qualquer, por exemplo, analisando um documento que lhe foi submetido.
A Constituição Federal estabelece no art. 53, § 6º, que os parlamentares não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato de Deputados e de Senadores, nem sobre as pessoas que lhes confiaram informações ou deles as receberam.
Juízes e promotores, quando prestarem testemunho, estão impedidos de atuar nos processos, tal como proíbe o art. 252, inciso II, e art. 258, todos do Estatuto de Ritos.
A lei específica pode tornar ineficaz a dispensa do sigilo pela parte interessada, tal como ocorre na hipótese dos advogados, regidos pelo Estatuto da Advocacia. Deste modo, dispõe o art. 7º, inciso XIX, da Lei 8.906/94 prescreve como direito do advogado:
“Recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional”.
E, ao seu turno, o art. 38 do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil impõe que:
“O advogado não é obrigado a depor, em processo ou procedimento judicial, administrativo ou arbitral, sobre fatos a cujo respeito deva guardar sigilo profissional”. No entanto, o mesmo código prevê exceções, em que o sigilo poderá ser relativizado: “O sigilo profissional cederá em face de circunstâncias excepcionais que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria” – art. 37.
3.2. Dever de comparecimento
Com a regular intimação da testemunha, surge o dever de comparecer em juízo. Diante da ausência injustificada, o magistrado poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou, ainda, determinar a condução por oficial de justiça, com o auxílio da força pública. Além disso, é possível a aplicação de sanção pecuniária de 01 até 10 salários mínimos, como também penalização pelo crime de desobediência e condenação ao pagamento das custas da condução coercitiva.
As pessoas impossibilitadas de comparecer, seja por enfermidade ou velhice, serão inquiridas no local onde estiverem – art. 220 do CPP.
Ademais, o Presidente e o Vice-Presidente da República, os senadores e deputados federais, os ministros de Estado, os governadores de Estados e Territórios, os secretários de Estado, os prefeitos do Distrito Federal e dos Municípios, os deputados às Assembleias Legislativas Estaduais, os membros do Poder Judiciário, os ministros e juízes dos Tribunais de Contas da União, dos Estados, do Distrito Federal, bem como os do Tribunal Marítimo serão inquiridos em local, dia e hora previamente ajustados entre eles e o juiz (art. 221 do CPP).
A legislação estadual não pode aumentar o rol de autoridades previstas pelo precitado artigo, sob o risco de usurpar a competência privativa da União para legislar sobre a matéria. Assim, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da lei sergipana que estendia a prerrogativa para o delegado de polícia (ADI 3.896).
A prerrogativa de ser ouvido em data aprazada tem como finalidade preservar as funções públicas das autoridades supracitadas. Não pode existir abuso de direito, com a postergação infundada da oitiva, com nítido propósito protelatório. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal já afastou o benefício para Deputado Federal que deixou de comparecer a cinco atos designados para a sua oitiva (AP 421 QO/SP, 22/10/2009).
Além disso, a benesse é exclusiva para o depoimento judicial na condição de testemunha. Não se aplica aos investigados, nem tampouco aos acusados (STJ, HC 250.970/SP, 23/09/2014).
A testemunha que residir fora da comarca será intimada por carta precatória, sendo outorgado prazo razoável para seu cumprimento. A falta de intimação das partes sobre a expedição da deprecata acarreta tão somente nulidade relativa, conforme sedimentado pela Súmula nº 155 do Superior Tribunal de Justiça: “é relativa à nulidade do processo criminal por falta de intimação da expedição de precatória para inquirição de testemunha”.
Após a intimação sobre a expedição, compete às partes serem zelosas, acompanhando a tramitação do feito no juízo deprecado, de modo que é desnecessária a intimação da data designada para oitiva da testemunha, nos termos da Súmula 273 do Superior Tribunal de Justiça: “Intimada a defesa da expedição da carta precatória, torna-se desnecessária intimação da data da audiência no juízo deprecado”.
Porém, na ausência do defensor constituído à oitiva, compete ao magistrado nomear advogado para o ato, vez que é indispensável a existência de defesa técnica para assistir a colheita do testemunho.
Parcela minoritária sustenta que o acusado preso tem direito de ser apresentado para a colheita do testemunho no juízo deprecado, desde que manifestado o interesse em momento oportuno (STF, RE 602.543/RG-QO, 25/02/2010).
Por outro lado, Norberto Avena aponta que a corrente majoritária entende:
“Absolutamente prescindível a presença do acusado, esteja ele solto ou preso, perante os atos instrutórios praticados no juízo deprecado. Esta posição do STJ, entendendo que, ‘na inquirição de testemunha realizada em foro diverso da tramitação do processo, não se exige que o réu preso acompanhe a audiência, bastando tão somente que as partes sejam intimadas da inquirição, nos termos do art. 222 do Código de Processo Penal’; em também, a orientação do STF, já decidindo que ‘é prescindível a requisição do preso para acompanhar inquirição de testemunha em juízo deprecado, bastando que o defensor, como no caso o foi, tenha sido intimado da expedição da carta precatória, bem como de que não há necessidade de intimação do advogado do réu da data da inquirição de testemunha em outra comarca se ele foi intimado da expedição da carta precatória”.[6]
A expedição da carta precatória não suspenderá a instrução criminal, nos termos do art. 222, § 1º, do CPP. Com o decurso do prazo assinalado para cumprimento do ato, o feito poderá ser sentenciado, sem prejuízo da posterior juntada da carta realizada nos autos.
A Lei 11.900/2009 estabeleceu a possibilidade de tomar o depoimento da testemunha de fora da terra (residente em outra comarca) por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, permitida a presença do defensor e podendo ser realizada, inclusive, durante a realização da audiência de instrução e julgamento (art. 222, §3º, do CPP).
A testemunha residente no exterior deverá ser ouvida por meio de carta rogatória. Neste ponto, a precitada inovação legislativa também passou a exigir a prévia demonstração da imprescindibilidade da oitiva, com o intuito de evitar a mera protelação da instrução criminal. Além disso, a parte requerente deverá arcar com os custos da expedição.
De toda sorte, a necessidade de justificar a pertinência é comum a todos os meios probatórios. Vicente Greco Filho leciona que:
“Cabe observar que a prova testemunhal, como qualquer outra, passa pelo exame de pertinência e relevância do juiz. Isto quer dizer que, regularmente arroladas, há presunção de necessidade e interesse em sua audiência, mas isto não quer dizer que, se ficar demonstrada a impertinência da indicação, o juiz não possa e não deva mandar excluí-las do rol, sem que isso constitua cerceamento de defesa”.[7]
A disposição já foi criticada por restringir o direito à prova. Porém, a constitucionalidade da previsão que prestigia a duração razoável do processo foi albergada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (AP 470 QO/MG, 01/10/2009).
A utilização da videoconferência e de outros meios tecnológicos não foi idealizada expressamente pela Lei 11.900/2009 para a inquirição de testemunhas no exterior. Contudo, a possibilidade de Assistência Jurídica entre os Estados com a utilização de videoconferência foi prevista pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organização, Convenção de Palermo, ratificada pelo Decreto 5.015/2004. Logo, nos crimes agasalhados pela Convenção de Palermo é possível a realização da videoconferência, prestigiando-se a regra de interpretação disposta no inciso I, do art. 1º, do próprio CPP.
3.3. Do dever de prestar o compromisso de dizer a verdade
O art. 203 do Código de Processo Penal dispõe que: “a testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado”. Frise-se que a testemunha faz promessa de dizer a verdade, mas não o juramento de dizer a verdade. A diferença é essencial para distinção do crime de perjúrio.
Heleno Claudio Fragoso ensina:
“A exigência de juramento por parte das testemunhas é costume muito antigo, afirmando Carrara que ela constituía prescrição universal de todos os povos. Variavam as formas de juramento e a invocação que nele se fazia, mas a ideia fundamental era a de impor, pelo juramento, um dever religioso de dizer a verdade. Considerava-se, assim, como condição essencial ao testemunho o juramento e a falsidade nele praticada (perjúrio) era punida como sacrilégio, aplicando-se frequentemente penas corporais, como a perda da mão, amputação da língua e a morte, em casos mais graves”.[8]
Segundo o entendimento jurisprudencial majoritário, o compromisso representa mera formalidade relacionada ao procedimento para a oitiva da testemunha pelo magistrado. Portanto, o ato é prescindível para a caracterização do crime de falso testemunho. Logo, ainda que o julgador tenha olvidado o compromisso ou mesmo que o depoente tenha se negado a presta-lo, o agente poderá incorrer no tipo previsto pelo art. 342 do Código Penal. Destarte, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “a formalidade do compromisso não mais integra o tipo do crime de falso testemunho, diversamente do que ocorria no primeiro Código Penal da República” (HC 69.358/RS, 30.03.1993).
Em igual teor, interessante o questionamento de Eugênio Pacelli e Douglas Fischer:
“Imagine-se a hipótese de o juiz se esquecer de tomar o compromisso da testemunha; imagine-se, ainda, que exortada ao compromisso de dizer a verdade, a testemunha afirmar ao juiz, por quaisquer razões pessoais, não admitidas em Lei, que não irá dizer a verdade. O que fazer? Ora, pouco importa estar ela compromissada – formalmente, isto é, pela tomada de compromisso – ou não. Se a Lei obriga a depor, e é essa a distinção do art. 206, Código de Processo Penal, obriga também ao depoimento verdadeiro, parecendo-nos impensável a hipótese de se obrigar alguém a comparecer em juízo apenas para se entrevistar com o magistrado e com as partes. Deve-se dizer a verdade porque, igualmente, deve-se depor”.[9]
Há, entretanto, pensamento em sentido contrário, tal como preceitua Guilherme de Souza Nucci, sem o compromisso “a testemunha é mero informante, permitindo ao juiz livre valoração de seu depoimento”.[10]
O crime de falso testemunho também alcança as pessoas que, mesmo dispensadas de prestar o testemunho, insistem em prestar depoimento. O pressuposto é que o compromisso não é elemento integrante do tipo penal, mas mera formalidade. “[q]uem não é obrigado pela lei a depor como testemunha, mas que se dispõe a fazê-lo e é advertido pelo Juiz, mesmo sem ter prestado compromisso pode ficar sujeito às penas do crime de falso testemunho” (STF, HC 83.254/PE, 23.09.2003).
Denilson Feitoza disserta a respeito da responsabilidade de crianças e de adolescentes:
“Com a evolução da sociedade, as crianças e adolescentes da atualidade são mais bem instruídos e informados, razão pela qual a posterior Lei 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) possibilitou a sujeição das crianças e dos adolescentes às respectivas medidas do ECA, diante da prática de ato infracional (art. 103, ECA), o que inclui a hipótese de ato infracional de falso testemunho (art. 103 do ECA c/c art. 342 do Código Penal), derrogando o artigo 208 do Código de Processo Penal quanto às pessoas menores de catorze anos. Assim, se um adolescente prestar falso testemunho, poderá estar sujeito, após o devido processo socioeducativo, a uma medida socioeducativa e/ou medida específica de proteção aplicada por juiz da infância e da juventude, enquanto uma criança poderá estar sujeita a uma medida específica de proteção, aplicada por conselho tutelar ou, se não houver este, por juiz da infância e juventude”.[11]
Há precedentes do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, embora não se exija o compromisso de dizer a verdade para a caracterização do crime de falso testemunho, a existência de fortes laços afetivos ou de parentesco entre a testemunha e o réu pode configurar a inexigibilidade de fornecimento da informação verdadeira, sob o risco de colocar em perigo a unidade familiar e a relação humana de fraternidade (STJ, HC 92.836/SP, 27.04.2010).
3.4. Dever de comunicar mudança de residência
As testemunhas devem comunicar a alteração de residência pelo prazo de um ano, contado do depoimento prestado, nos termos do art. 224 do CPP. Se não o fizerem e caso não sejam encontradas, estarão sujeitas às penas do não comparecimento.
4. Espécies de testemunhas
4.1. Testemunhas numeráveis
São as testemunhas computadas para contagem do número máximo permitido, são arroladas pelas partes e prestam compromisso.
4.2. Testemunhas extranumeráveis
São testemunhas que não são computadas para determinação do limite legal. Logo, não há limitação para oitiva de testemunhas extranumerárias, quais sejam: (i) aquelas ouvidas por iniciativa do juiz (art. 209, caput, do CPP), (ii) aquelas que não prestam compromisso, muito embora tenham sido arroladas pelas partes e (iii) aquelas que nada sabem para deslinde da causa (art. 209, §2º, do CPP).
4.3. Testemunhas diretas
As testemunhas indiretas depõem sobre fatos que não presenciaram, mas que apenas ouviram falar, daí porque também são chamadas de testemunhas auriculares.
4.4. Testemunhas indiretas
As testemunhas indiretas depõem sobre fatos que não presenciaram, mas que apenas ouviram falar, daí porque também são chamadas de testemunhas auriculares.
4.5. Testemunha própria
As testemunhas próprias depõem sobre o mérito da imputação penal.
4.6. Testemunha imprópria, instrumentatória ou fedatária
As testemunhas impróprias se limitam a depor sobre a regularidade de um ato ou fato processual. Como exemplo, a falta de testemunhas da infração penal não impede a realização do auto de prisão em flagrante, desde que seja assinado por duas testemunhas que tenham presenciado a apresentação do preso à autoridade policial.
4.7. Informantes
Os informantes são ouvidos em juízo, mas não prestam o compromisso de dizer a verdade, como o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, além dos menores de catorze anos, dos doentes e dos deficientes mentais.
4.8. Testemunha referida
A testemunha referida é aquela mencionada por outra pessoa e que é ouvida a pedido das partes ou até mesmo de ofício pelo magistrado (art. 209, § 1º, do CPP).
4.9. Depoimento ad perpetuam rei memoriam
A expressão significa “para a lembrança perpétua da coisa”. Trata-se da antecipação da colheita do depoimento da testemunha que houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal não subsista. A tomada antecipada poderá ser requerida pelas partes ou deferida de ofício pelo juiz, seguindo-se o procedimento previsto pelo Código de Processo Civil por aplicação subsidiária
4.10. Testemunha anônima
A testemunha anônima tem todos os seus dados preservados nos autos do processo. No Estado de São Paulo, a matéria é regulamentada pelo Provimento 32/2000 da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça Bandeirante. Assim, as vítimas ou testemunhas coagidas ou submetidas a grave ameaça, em assim desejando, não terão quaisquer de seus endereços e dados de qualificação lançados nos termos de seus depoimentos. Aqueles ficarão anotados em impresso distinto, remetido pela Autoridade Policial ao Juiz competente juntamente com os autos do inquérito após edição do relatório. No Ofício de Justiça, será arquivada a comunicação em pasta própria, autuada com, no máximo, duzentas folhas, numeradas, sob responsabilidade do Escrivão.
5. Depoimento sem dano
As testemunhas podem apresentar condições especiais de vulnerabilidade, em face de condições pessoais específicas ou, ainda, em virtude da natureza da infração penal, o que aumenta a potencial intimidação com a presença do réu e reduz a liberdade de depor em juízo. Como exemplo, podem ser arroladas as vítimas do crime de estupro de vulnerável, menores de catorze anos, enfermos e deficientes mentais sem o discernimento necessário para a prática de atos sexuais, mas também idosos e vítimas de violência doméstica familiar.
Renato Brasileiro elucida que:
“Devido às peculiaridades destas testemunhas, alguns ordenamentos estabelecem mecanismos que dispensam o comparecimento delas na sessão de julgamento, admitindo em juízo gravações de suas declarações extrajudiciais, ou instituindo procedimentos especiais, cujo propósito é evitar que o encontro delas com o acusado, na sala de audiências, afete sua intimidade ou liberdade de declarar. Diferencia-se da testemunha anônima, pois, em relação a esta, impede-se o acusado e seu defensor técnico de verem a testemunha, para preservar a verdadeira identidade dela. Com relação à testemunha vulnerável, o acusado e seu defensor conhecem a verdadeira identidade da testemunha, podendo observar seu comportamento e linguagem corporal ao prestar depoimento; a testemunha é que não vê o acusado”.[12]
O Código de Processo Penal não disciplina a matéria, permitindo apenas a retirada do acusado da sala de audiências, quando o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor (art. 217, caput).
Damásio de Jesus, ao comentar a vigência da Lei 11.690/2008 pontuou:
“A colheita da prova pelo sistema de videoconferência foi adotada pela Lei 11.690/08 como forma excepcional de produção do depoimento testemunhal, sempre que a presença do acusado puder, de alguma forma, constranger a testemunha e comprometer a veracidade e fidedignidade de seu relato. Não havendo meios técnicos para a colheita do depoimento pelo sistema de videoconferência, o réu será retirado do recinto, mas seu defensor, por óbvio, permanecerá acompanhando a realização do ato”.[13]
O depoimento sem danos foi inicialmente instituído pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, permitindo a colheita de declarações de crianças de forma diferenciada, com vistas à proteção psicológica. O objetivo é evitar a vitimização secundária causada pelos efeitos deletérios do processo penal. A audiência é realizada de forma simultânea, em duas salas interligadas por sistema audiovisual. A criança ofendida é assistida por psicólogos e assistentes sociais que, na medida do possível, relativizam o constrangimento do depoimento, formulando para a criança as perguntas formuladas pelos atores do sistema de justiça.
A prática que prima pela tutela da integridade moral e psicológica das crianças já foi referendada pelos Tribunais Superiores:
“Este Superior Tribunal, na linha do entendimento externado pelo Tribunal a quo, tem reiteradamente decidido que, nos crimes sexuais praticados, em tese, contra crianças e adolescentes, a inquirição da vítima por meio de profissional preparado e em ambiente diferenciado, denominado “depoimento sem dano“, não configura nulidade ou constrangimento ilegal à liberdade de locomoção do acusado. Precedentes. Trata-se de medida excepcional, destinada a evitar que as vítimas sejam submetidas aos traumas da violência sexual, em tese, perpetrada pelo agressor, devendo prevalecer sobre a publicidade do ato processual, considerando-se, sobretudo, a condição peculiar das vítimas, de pessoas em desenvolvimento, nos termos do art. 227 da Constituição da República, c/c o art. 3º, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente” (STJ, HC 244559/DF, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 20.04.2016).
Nada obstante, há tempos a doutrina especializada já advertia a necessidade de maior sensibilidade para a tomada do depoimento de crianças, sobretudo na seara dos crimes contra a dignidade sexual, em que é escasso o volume de meios probatórios. Confira-se os ensinamentos de Paulo Heber de Morais e João Batista Lopes:
“Também é preciso considerar que, muitas vezes, à falta de outras testemunhas, notadamente nos delitos sexuais, o testemunho infantil se mostra absolutamente indispensável. Em suma, não é possível repelir, a priori, a palavra da criança. Mas o julgador, ao avaliar o depoimento prestado por ela (apenas como informante) agirá com cautela, perquirindo se outros elementos ou circunstâncias dos autos o corroboram. Além disso, como adverte DOHRING, o depoimento infantil deve ser colhido informalmente, após manter-se conversação com a criança sobre outros temas, deixando à vontade”.[14]
De lege ferenda, a medida é objeto do Projeto de Lei 7.524/2006 e, de toda sorte, integra a Recomendação 33/2010 do Conselho Nacional de Justiça.
Referências
AVENA, Norberto. Processo Penal: esquematizado. 8. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2016
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Citação
MASSON, Cleber Rogerio. Prova testemunhal. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Penal. Marco Antonio Marques da Silva (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/446/edicao-1/prova-testemunhal
[1] NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual penal, p. 113.
[2] MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal, p.352.
[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, p. 548.
[4] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado: referências doutrinárias, indicações legais, resenha jurisprudencial: atualizado até setembro de 1999, p. 480.
[5] SILVA, Marco Antonio Marques da. Código de Processo Penal Comentado, p. 349.
[6] AVENA, Norberto. Processo Penal: esquematizado, p. 606.
[7] GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, p. 233.
[8] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, p. 1016
[9] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentário ao Código de Processo Penal, p. 402.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, pp. 191-194.
[11] FEITOZA, Denilson. Direto Processual Penal: teoria, crítica e práxis, p. 786.
[12] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único, p. 689.
[13] JESUS, Damásio de. Código de Processo Penal anotado, p. 193.
[14] MORAIS, Paulo Heber de, e LOPES, João Batista. Da Prova Penal, p. 139.