A PROTEÇÃO INTEGRAL DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES VÍTIMAS
(COMENTÁRIOS AO ART. 143 DO ECA)
Luiz Antonio Miguel Ferreira
Cristina Teranise Dói
Sumário: 1. Introdução – O princípio da proteção integral no ECA. 2. As crianças e os adolescentes vítimas e a relação com o princípio da proteção integral. 4. Conclusões.
1 INTRODUÇÃO – O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL
O do Estatuto da Criança e do Adolescente significou uma total ruptura com a legislação anterior que tratava da questão menorista – Código de Menores – Lei nº 6697, de 10 de outubro de 1979 – posto que adotou como referencial doutrinário o Princípio da Proteção Integral em direção oposta ao princípio da situação irregular que vigorava na legislação revogada. De forma resumida, tais doutrinas estão assentadas nos seguintes princípios:
Doutrina da Situação Irregular: para essa doutrina, os menores [nota 1] apenas são sujeitos de direito ou merecem a consideração judicial quando se encontrarem em uma determinada situação, caracterizada como “irregular“, e assim definida em lei. Havia uma discriminação legal quanto à situação do menor, somente recebendo respaldo jurídico aquele que se encontrava em situação irregular; os demais, não eram sujeitos ao tratamento legal.
Doutrina da Proteção Integral: representa um avanço em termos de proteção aos direitos fundamentais, posto que calcada na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, tendo, ainda, como referência documentos internacionais, como Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, aos 20 de novembro de 1959, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing – Res. 40/33 de 29 de novembro de 1985, as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil – Diretrizes de Riad, de 1º de março de 1988 e a Convenção sobre o Direito da Criança, adotada pela Assemblwia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro em 14 de setembro de 1990.
Introduziu-se a Doutrina da Proteção Integral no ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 227 da Constituição Federal, que declarou ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Basicamente, a doutrina jurídica da proteção integral adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente assenta-se em três princípios, a saber:
Criança e adolescente como sujeitos de direito – deixam de ser objetos passivos para se tornarem titulares de direitos.Destinatários de absoluta prioridade.
Respeitando a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Com a nova doutrina as crianças e os adolescentes ganham um novo “status“, como sujeitos de direitos e não mais como menores objetos de compaixão e repressão, em situação irregular, abandonados ou delinquentes. Para essa doutrina, pontua Amaral e Silva (apud PEREIRA, T. da S. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 27), “o direito especializado não deve dirigir-se, apenas, a um tipo de jovem, mas sim, a toda a juventude e a toda a infância, e suas medidas de caráter geral devem ser aplicáveis a todos“.
No mesmo sentido afirma Martha de Toledo Machado que distinção anteriormente realizada não mais subsiste na Doutrina da proteção integral. Confira:
Em suma, o ordenamento jurídico cindia a coletividade de crianças e adolescentes em dois grupos distintos, os menores em situação regular e os menores em situação irregular, para usar a terminologia empregada no Código de Menores brasileiro de 1979. E ao fazê-lo não reconhecia a incidência do princípio da igualdade à esfera das relações jurídicas envolvendo crianças e adolescentes. Hoje não.
Se o Direito se funda num sistema de garantias dos direitos fundamentais das pessoas, e no tocante a crianças e adolescentes um sistema especial de proteção, as pessoas (entre elas crianças e adolescentes) necessariamente têm um mesmo status jurídico: aquele que decorre dos artigos 227, 228, e 226 da CF e se cristalizou, na lei ordinária, no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Não há mais uma dualidade no ordenamento jurídico envolvendo a coletividade crianças e adolescentes ou a categoria crianças e adolescentes: a categoria é uma e detentora do mesmo conjunto de direitos fundamentais; o que não impede, nem impediu, o ordenamento de reconhecer situações jurídicas especificas e criar instrumentos para o tratamento delas, como aliás, ocorre em qualquer ramo do direito (“A proteção constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos“, 1ªedição, Barueri – SP, Manole, 2003,. Pág. 146).
Em síntese, com a nova doutrina crianças e adolescentes vítimas, abandonados, autores de ato infracional ou não devem receber o mesmo tratamento legal, vedada qualquer discriminação.
2 AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES VÍTIMAS E A RELAÇÃO COM O PRÍNCIPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL
Em vários artigos do Estatuto a presença do princípio da proteção integral se mostra visível. Especificamente em relação ao tema em questão, merece análise o artigo 143 do ECA que dispõe:
Art. 143 – É vedada a disposição de atos judiciais, policiais e administrativos, que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.
Parágrafo único – Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.
Referido dispositivo, nas palavras do Desembargador Sidney Romano dos Reis, visa resguardar o adolescente, por meio do sigilo, evitando sua exposição à execração pública injusta e prejudicial, mormente em se considerando tratar-se de pessoa ainda em formação e cujo deslize de conduta praticado na juventude poderá maculá-lo por toda uma vida adulta (Apelação Cível nº 122.439-0/3-00). Também tem relação com o direito a dignidade e ao respeito, protegendo o direito de imagem, a identidade, intimidade e vida privada da criança e do adolescente envolvidos na prática de ato infracional, sendo que eventual desobediência a esta norma acarreta penalidades administrativa (art. 247 do ECA) e de natureza cível, com eventual condenação por dano moral (JTJ 218/94).
Em face das considerações lançadas a respeito do princípio doutrinário e do contido no artigo 143 do ECA, as questões que se apresentam são as seguintes: O artigo em questão contempla em sua integralidade o princípio da Proteção Integral? Como ficam as crianças e adolescentes vítimas de ato infracional (ou de delitos praticados por maior). Estão eles contemplados pela vedação da divulgação de seus nomes, apelidos, parentescos, residência e filiação?
Uma interpretação literal e apressada pode levar a conclusão de que referido dispositivo não está de acordo com o princípio da proteção integral, posto que exclui da vedação as crianças e os adolescentes vítimas de atos infracionais, com nítida discriminação, nos moldes do revogado Código de Menores. No entanto, há necessidade de se fazer uma distinção para melhor análise da questão, sendo que a resposta às indagações supra mencionadas deve contemplar duas situações distintas, a saber:
a) crianças e adolescentes vítimas de ato infracional no qual pela sua natureza, a divulgação dos nomes, apelidos, parentescos, residência e filiação, fatos e fotos dos menores poderia colocá-los em situação vexatória e constrangedora, como por exemplo, nos crimes contra os costumes;
b) crianças e adolescentes vítimas de ato infracional no qual pela sua natureza, a divulgação dos nomes, apelidos, parentescos, residência e filiação, fatos e fotos dos menores é indispensável para a sua efetiva proteção, como por exemplo nos delitos de sequestro ou em caso de desaparecimento.
No primeiro caso, ou seja, naquelas situações em que os menores foram vítimas de crimes contra os costumes (atentado violento ao pudor, estupro, entre outros) a divulgação do fato implicaria numa situação vexatória e constrangedora vedada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse caso, para a perfeita obediência ao Princípio da Proteção Integral seria imprescindível que no artigo 143 do ECA. estivesse contemplada esta situação, posto que da forma como está redigido o artigo, há uma distinção entre a criança e adolescente vítima ou autor de ato infracional. O autor de ato infracional tem a proteção legal enquanto as vítimas não estão contempladas de forma explícita no dispositivo.
Por outro lado, quando forem vítimas de sequestro, a própria situação envolvendo a criança e o adolescente implica na divulgação e publicidade do caso, principalmente, com fotos da vítima em cartazes, jornais e revistas, etc, para fins de sua localização. Neste caso, seria até uma contradição a não divulgação da foto da vítima e o artigo não proíbe esta divulgação, estando em harmonia com o princípio da proteção integral.
Diante deste contexto, como harmonizar estas situações com o artigo 143 do ECA? A solução para o caso implicaria na adequação da redação do citado artigo.
No Código de Menores de 1979 a situação era prevista da seguinte forma:
Artigo 3º ….
Parágrafo único. A notícia que se publique a respeito do menor em situação irregular não o poderá identificar, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência, salvo no caso de divulgação que vise à localização de menor desaparecido.
Esta redação limita a divulgação somente no caso do menor desaparecido. É importante, mas não atende todas as situações em que se deva divulgar o nome, filiação, apelido, parentesco ou residência da criança e do adolescente.
Para que o Princípio da Proteção Integral seja integralmente aplicado ao artigo 143 do ECA, melhor seria que a redação sofresse algumas adequações, como por exemplo:
Art. 143 – É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos, que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional, bem como nas situações em são vítimas de crimes e contravenções penais, desde que as coloquem em situação vexatória ou constrangedora;
Parágrafo único – Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência, salvo no caso de divulgação que vise a garantia dos direitos fundamentais de criança e do adolescente.
Esta redação atenderia ao princípio da proteção integral, dando a criança e ao adolescente infrator o mesmo tratamento da criança e do adolescente vítima. Por outro lado, estaria contemplado, de forma explicita no citado dispositivo uma situação que, para alguns doutrinadores [nota 2] existe de fato.
3 CONCLUSÕES
Em face do exposto, pode-se chegar às seguintes conclusões a respeito da aplicação do princípio da proteção integral em relação ao artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
A) Há necessidade de uma adequação da redação do artigo 143 do ECA para contemplar as crianças e os adolescentes vítimas de crimes e contravenções penais em face do princípio da proteção integral;
B) Esta adequação implica em alterar a redação do citado dispositivo que ficaria da seguinte forma:
Art. 143 – É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos, que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional, bem como nas situações em que são vítimas de crimes e contravenções penais, desde que os coloquem em situação vexatória ou constrangedora;
Parágrafo único – Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência, salvo no caso de divulgação que vise a garantia dos direitos fundamentais de criança e do adolescente.
[Fonte: Promotoria de Justiça de Presidente Prudente – Infância e Juventude – MP-SP]
Notas do texto:
Nota 1 Assim compreendida a pessoa menor de 18 anos de idade.
Nota 2 Nesse sentido aponta Jorge Arakem Faria da Silva (in CURY, Munir et al (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Malheiros, 1992, pág. 436) e Alírio Cavallieri (Falhas do ECA. Rio de Janeiro: Forense, 1995, pág. 85), Paulo Lúcio Nogueira (ECA comentado. São Paulo: Saraiva, 1991, pág.202) r Wilson Donizeti Liberati (Comentários ao ECA., São Paulo: Malheiros, 1999, pág. 119).