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PROPRIEDADE E SUA POLISSEMIA NO DIREITO

Felipe Bizinoto Soares De Pádua

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em capítulo destinado a tratar sobre os fundamentos que originaram a ciência jurídica europeia, Franz Wieacker[1] aponta que o escorço a ser desenvolvido nas cinco partes de sua obra tratam do chamado direito continental, que tem raízes na família romano-germânica ou civil law. É a partir desse primeiro corte epistêmico que os estudos romanísticos dos modernos (por exemplo, Friedrich Carl Freiherr von Savigny, Rudolf von Ihering, Bernhard Windscheid) se desenvolveram e chegaram a considerações de tamanha sofisticação que elas ecoam na contemporaneidade – vide, porexemplo, as teorias do negócio jurídico e da personalidade em sentido jurídico, ambas muito bem desenvolvidas pelos pandectistas.

Apesar dos cortes jurídicos, uma constatação estudada a partir de algumas noções de segurança jurídica é de Fritz Schulz[2], que aponta que as estruturas da civil law contêm um problema carregado pelas diversas ciências sociais, e, na própria ciência jurídica, pela outra família, da commom law: a questão da polissemia. A partir do momento que algum instituto se torna turvo ou suas linhas não estão bem estabelecidas, a insegurança é uma das primeiras figuras associadas pelos operadores do Direito e pelos destinatários das normas jurídicas.

De acordo com os ensinamentos de Karl Larenz[3] e Karl Engisch[4], o sistema romano-germânico (= civil law) tem como enfoque o chamado direito legislado, emanações dotadas de certo grau de desapego às minúcias fácticas para abranger um quadro de fatos maior, enquanto o sistema anglo-saxão (= commom law) se debruça com maestria sobre o direito judicial, que cristaliza a tutela de certas posições jurídicas a partir de decisões (em conformidade com textos legais) baseadas em uma cultura judicial que tem como cerne o desenvolvimento de teses para casos similares futuros, os precedentes. Apesar das diferenças quanto aos centros, ambas às famílias ou sistemas trabalham com signos – advindos do legislador ou do magistrado – com certa zona duvidosa e cuja definição é feita para o caso concreto.

Das considerações supra é possível aplicar a insegurança tratada por Fritz Schulz[5] em um aspecto abrangente e em um aspecto específico. O primeiro aspecto diz respeito ao fato da dúvida causada pela polissemia resulta em uma insegurança do Direito como um todo, independente do sistema ao qual se refere; o segundo aspecto tem relevância diante do fato de que o sistema jurídico é dotado de diversos regimes, que são aplicados em razão da identificação das figuras basilares no caso concreto, sendo que a dúvida na identificação de certo fato a certa palavra ou conjunto de palavras legisladas ou judicadas pode resultar em divergências na resposta ao caso, que ora pode ter o regime X aplicado, mas noutro momento pode ter o regime Y aplicado, resultando em consequências jurídicas distintas.

A incerteza ou insegurança polissêmica fica evidente no ponto-chave deste artigo, qual seja, a propriedade. Com raízes romanísticas, baseadas nas lições de Fritz Schulz[6], Thomas Marky[7], José Cretella Júnior[8] e Ebert Chamoun[9], a noção de propriedade romano-germânica é ligada ao chamado regime de direito real e envolve um poder sobre bens corpóreos, dotados de expressão física no plano fáctico. Todavia, tal acepção corporificada da propriedade foge de certos textos legais, conforme segue.

A fuga mais expressiva é com a chamada propriedade intelectual, que se divide no Brasil em direitos autorais e propriedade industrial. A primeira espécie é disciplinada pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que utiliza signos propriamente dos direitos reais: enuncia que “não serão de domínio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios as obras por eles simplesmente subvencionadas” (art. 6º, grifo feito), bem como “no domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial” (art. 7º, § 3º, grifo feito).

Com relação à propriedade industrial, esta é regida pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que se aplica à invenção, ao modelo de utilidade, ao desenho industrial e à marca, todas as expressões do intelecto humano e, portanto, manifestações incorpóreas que são consideradas bens móveis, mas que estão dentro da chamada propriedade intelectuais, conforme leitura do art. 241.

Uma segunda relação da noção não romanística de propriedade está na Constituição do Brasil (CRFB), mas antes cabe expor que a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, trata da relação entre as diversas partes de um fragmento legal: segundo citada lei, a unidade básica dos diplomas legais brasileiros é o artigo, que se desdobra “em parágrafos ou em incisos; os parágrafos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens” (art. 10, II), sendo que os parágrafos têm função de trazer “os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida” (art. 11, III, c). Em suma, o ponto preliminar é de que os incisos e parágrafos de um fragmento legal devem ser lidos de acordo com o chamado caput, que enuncia o quadro-fáctico mais amplo.

Volvendo à lei fundamental brasileira, esta enuncia no caput do art. 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (grifo feito). Seguindo a leitura, o mesmo art. 5º estabelece alguns incisos que merecem destaque: no inciso

XXII consta que “é garantido o direito de propriedade” (grifo feito), no inciso XXIX enuncia que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas […]” (grifo feito).

A mesma Carta Constitucional determina que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, § 2º, grifo feito), bem como estabelece “a função social é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos” (art. 186, grifo feito).

Como uma última possível divergência, mas em conformidade com a acepção romanista, o Código Civil brasileiro (CCB/2002) reconhece que “são direitos reais: I – a propriedade” (art. 1.225, grifo feito) e, posteriormente, que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem querem que injustamente a possua ou detenha” (art. 1.228, grifo feito).

A dúvida que surge e que será debatida neste artigo é a seguinte: Propriedade é um instituto que tem um ou muitos sentidos?

Duas colocações metodológicas devem ser feitas. A primeira é de cunho referencial, sendo que os textos legais citados, por força do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), estabelece um conhecimento – mesmo que fictício – dos diplomas legais, ou seja, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (art. 3º). Se ninguém desconhece a lei, então as referências no desenvolvimento do texto serão suprimidas; no entanto, tais fontes legislativas serão mencionadas ao final, na parte pertinente.

A segunda colocação metodológica é também de cunho referencial: o item pertinente às referências será dividido de acordo com a fonte consultada, que terá livros de base física, artigos tanto em bases físicas quanto digitais, bem como fontes legislativas digitais.

 

A PROPRIEDADE: INSTITUTO OU INSTITUTOS?

Uma frase muito atribuída a François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, é de que “o espírito de propriedade duplica a força do homem”. Com as dúvidas geradas nas considerações introdutórias, sob o viés jurídico, a acepção de propriedade trazida pelo filósofo dos tempos da Iluminação é duvidosa e, conforme se verá, contemplam diversos conceitos que não são, necessariamente, contraditórios entre si, e, sim, dentro da missão dos operadores do Direito, complementares.

É considerando essa plurissignificação sistematizada que se envereda sobre o também múltiplo conceito da propriedade. Conforme F. C. Pontes de Miranda[10], Alcides Tomasetti Jr.[11] e Luciano de Camargo Penteado[12], o signo propriedade pode se dividir em quatro acepções, que se dividem de acordo com sua abrangência.

Como disposição geral ao que seguirá, a propriedade passou por umfenômeno de juridicização desmaterializadora, no sentido de que o objeto não se confunde com o direito: direito de propriedade recai sobre objeto de direito. Sempre que se fala em propriedade como a coisa em si, há uso equivocado da terminologia jurídica, pois há diversos poderes jurídicos (direitos, pretensões, faculdades, imunidades, poderes formativos) sobre um objeto, que pode ou não ser uma coisa[13]. Ao enunciar que “as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra” (art. 176), a Constituição do Brasil comete um deslize na primeira parte, pois confunde a coisa (= jazidas, recursos minerais e potenciais hidráulicos) com a posição jurídica (= domínio).

Será considerando essa divisão entre objeto sobre o qual incidem posições jurídicas e as próprias posições jurídicas que as linhas a seguir serão desenvolvidas. É dizer em linhas gerais: propriedade, no seu sentido mais precisa (restritíssimo), é uma posição jurídica com contornos específicos e que com a coisa sobre a qual incide não se confunde[14].

O primeiro significado é amplíssimo e corresponde ao que consta, por exemplo, no art. 5º, caput, da CRFB. Trata-se de sinônimo de titularidade de posições jurídicas subjetivas, isto é, de que determinado poder ou dever jurídico é próprio de um sujeito, a este pertencem certas categorias eficácias ativas ou passivas, elementares ou complexas, patrimoniais ou extrapatrimoniais[15].

Em um grau de abstração mais intenso, a propriedade em sua acepção amplíssima é figura muito íntima à noção de esfera jurídica, que é, de acordo com Marcos Bernardes de Mello[16], o conjunto de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas, patrimoniais e não patrimoniais que gravitam em torno de um sujeito de direitos (= entidade personificada ou não personificada). A esfera jurídica é a abstração última da noção de titularidade jurídica, a qual remete à ideia de propriedade em sentido larguíssimo.

Todos os poderes e deveres jurídicos que são de titularidade de alguém (= sua esfera jurídica) correspondem a uma grande universalidade que, em última análise, se adequa à acepção de propriedade em sentido amplíssimo e que consta no art. 5º, caput, da Lei Fundamental do Brasil: remetendo à relação que os diversos trechos de um fragmento legal têm, basta ver que a categoria propriedade constante no caput remete à intimidade, à vida privada e honra (inciso X), à propriedade intelectual (inciso XXIX) e, também, à propriedade sobre bens ao tratar da desapropriação (incisos XXIV e XXV).

Por tratar de posições jurídicas incorpóreas extrapatrimoniais, a compreensão de direitos autorais ingressa nesse sentido amplíssimo de propriedade, eis que se localiza como prenunciado, no setor extrapatrimonial da esfera jurídica de alguém, o que, todavia, não significa que haja interlocução de certa feição dos bens extrapatrimoniais autorais com o setor patrimonial, o que a própria Lei nº 9.610 permite em seus arts. 30, 50, 78, 90 e 93, por exemplo.

A mesma ideia dos direitos autorais consta na chamada propriedade intelectual de programa de computador, cujo diploma central é a Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, que estabelece que “o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigente no País, observado o disposto nesta Lei” (art. 2º). Pelo teor legal fica claro que o caráter dos programas computacionais está mais próximo dos direitos autorais (de caráter civil) do que da propriedade industrial (com caráter comercial).

A segunda acepção de propriedade é em seu sentido amplo e é sinônimo ao setor patrimonial da esfera jurídica, ao conjunto de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas dotadas de imediata valoração econômica e consequente expressão pecuniária[17]. Dentro desse conceito menos amplo constam posições jurídicas que dizem respeito tanto a bens corpóreos quanto a bens incorpóreos.

A compreensão da propriedade em sentido amplo recebeu influência da commom law, que tem um regime jurídico mais amplo ao que concebido pela civil law, a property law, que, de acordo com Maria Tereza Leopardi Mello[18], tem maior amplitude e reconhece a chamada propriedade tanto sobre bens corpóreos quanto incorpóreos. É essa inspiração que trouxe, por exemplo, a propriedade sobre títulos de créditos e sobre a propriedade intelectual, o que resultou na definição adotada em seu espectro largo. É dentro dessa delimitação conceitual que ingressam figuras como o “domínio” digital, cuja terminação utilizada se desvencilha, como será visto, do domínio oriundo da tradição romano-germânica.

A definição ampla de propriedade consta, por exemplo, no art. 1.011, § 1º, do CCB/2002, que determina que “não podem ser administradores, além das pessoas impedidas por lei especial, os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos […] por crime […] contra as relações de consumo, a fé pública ou a propriedade, enquanto perdurarem os efeitos da condenação” (grifo feito). A locução propriedade constante no teor legal citado diz respeito a todo e qualquer direito patrimonial, ao patrimônio em última instância.

Um segundo exemplo que também consta no CCB/2002 está na disciplina dos títulos de créditos, que são direitos patrimoniais incorpóreos:

Ressalvada proibição legal, pode o título nominativo ser transformado em à ordem ou ao portador, a pedido do proprietário e à sua custa” (art. 924, grifo feito). O signo proprietário remete a quem titulariza o crédito constante no título nominativo, o que, por sua vez, remete à noção ampla de propriedade como algo dotado de valoração econômica que pertine a certo sujeito.

Em sentido restrito, a propriedade se aproxima das raízes romanistas de um regime jurídico real. Aqui, propriedade em sentido restrito diz respeito a todo e qualquer direito real, o que corresponderia à totalidade de posições jusreais constantes no art. 1.225 do CCB/2002[19]. No mesmo sentido de todo direito real, o diploma civil enuncia que “a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício […]” (art. 1.229, grifo feito).

É com o sentido restrito que o art. 15, § 4º, da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, enuncia que, “nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as condições para pesquisa e visitação pelas públicas observadas as exigências e restrições legais” (grifo feito). Ao caso, esse dever de propiciar meios para pesquisa e visitação recaem tanto ao titular do domínio quanto ao usufrutuário e ao superficiário do imóvel sujeito ao regime do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).

A mesma definição circunscrita a qualquer posição jusreal que pode ser compreendida a enunciação da Constituição do Brasil de que “a propriedade atenderá a sua função social” (art. 5º, XXIII). Não é apenas o titular de todos os poderes jurídicos dominiais (do domínio real) que deve exercer tais posições em conformidade (ou com certa indiferença) a certos interesses coletivos, mas também ao usufrutuário, ao superficiário, ao titular de prédio dominante (servidão) e ao usuário. Todas essas figuras subjetivas se submetem à conformação legislativa do CCB/2002 de que “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (art. 1.228, § 2º, grifo feito).

Como última definição está à propriedade em sentido restritíssimo, que, tal qual a acepção restrita, está inclusa no quadro de direitos reais, mas recebe maior delimitação terminológica. Tal acepção restritíssima é sinônima de domínio, que é o direito de propriedade em sua plenitude, o assenhoramento pleno e exclusivo sobre determinada coisa e que confere a quem ostenta o título jurídico dominial os poderes de usar, gozar, dispor e reaver, tudo dentro de certos contornos jurídicos[20].

A definição de domínio, ou propriedade em sentido restritíssimo, consta no CCB/2002, no citado art. 1.225, I, bem como no art. 64, que enuncia que, “constituída a fundação por negócio jurídico entre vivos, o instituidor é obrigado a transferir-lhe a propriedade, ou outro direito real, sobre os bens dotados, e, se não o fizer, serão registrados, em nome dela, por mandado judicial” (grifo feito). Com relação ao domínio, este consta no teor das diversas disposições civis (arts. 1.238, 1.239, por exemplo) e constitucionais (arts. 183 e 191) relativas à usucapião imobiliária.

Com relação ao condomínio edilício, o codex civil permite que as áreas exclusivas sejam alienadas e gravadas, poderes esses que apenas o titular do domínio tem: “As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários […]” (art. 1.331, § 1º, grifo feito).

Caracterizada pela exclusividade, isto é, o direito de exercer os poderes sobre certa coisa com exclusão de outros, a acepção mais precisa de propriedade (= domínio) é influenciada fortemente por cinco conceitos suscitados por Nelson Rosenvald[21]. O primeiro conceito é acesso, ou seja, a propriedade (e não apenas o domínio, mas os outros graus conceituais) é um direito individual (art. 5º da CRFB) que o ordenamento jurídico brasileiro, com fortes raízes no Estado Social, tem de promover, para que todos tenham o mínimo de propriedade para que vivam dignamente.

Do conceito de acesso desdobram-se dois direitos: (i) com fulcro no art. 5º, caput, da CRFB, o direito à propriedade, como resultado da necessidade de concretizar a igualdade substancial no sentido de tornar a propriedade (em todos seus sentidos, mas com ênfase no domínio) acessível a todos; e (ii) fundado no art. 5º, XXII, da Lei Fundamental brasileira, o direito de propriedade, que é o domínio, exercido de forma a excluir os outros.

Essa dualidade resulta em uma tensão evidente e que remete à ciência econômica, que tem o seguinte dilema: Como distribuir bens finitos para atender necessidades maiores, quase infinitas? O conflito remete à clássica obra rousseauniana sobre a origem das desigualdades (e por que não dos grandes conflitos que persistem até os dias atuais?).

O segundo conceito é pertencimento, que remete às diversas noções da palavra propriedade para o Direito – com ênfase à civil law – e como essa ideia sofre paulatina diminuição de importância se relacionada à solidariedade. É dizer: para Nelson Rosenvald[22], o século XXI mostra que pouco importa se algo pertence a alguém, e sim que esses bens essenciais sejam geridos para garantir o acesso ao bem e a participação dos interessados na administração fundada na solidariedade.

O terceiro conceito é multipropriedade, uma categoria que é tratada no CCB/2002, nos arts. 1.358 e seguintes, e que remete à desmaterialização da pertinência: em vez de titularizar a coisa em si, o sujeito ostenta título sobre o tempo em relação a determinado espaço. A chamada propriedade clássica (ou domínio clássico) ganha um novo olhar e traz um novo desafio à pertinência entre sujeito e coisa no que trata do tempo[23]. Apesar das críticas ao texto, o CCB/2002 deixa algumas balizas sobre a multipropriedade ao enunciá-la como um regime condominial no qual “cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde à faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada” (art. 1.358-C).

Como quarta classe conceitual, Nelson Rosenvald[24] cita a economia do compartilhamento, que é um padrão que não pertence ao direito das coisas, mas afeta tal regime de maneira peculiar. O modelo negocial da sharing economy diz respeito à eficiência na circulação e acumulação de riquezas, reformulando o olhar de que a economia se baseia puramente no ter algo e colaborando com uma visão de que muitos segmentos mercado lógicos são aquecidos pelo uso de algo de outrem, por exemplo, os serviços de transporte Uber, 99Taxi, a locação de imóveis por meio de Airbnb, todas plataformas que geram fluxo patrimonial com base na ideia de pertencimento temporário, pois aquilo que é utilizado pelo consumidor não lhe pertence como domínio, mas lhe é prestado como se fosse.

A última categoria que gera a reflexão sobre o conceito de propriedade em sentido restritíssimo – mas também das demais acepções – é multitularidade, que, para Nelson Rosenvald[25], significa que uma posição jusreal tem dois ou mais sujeitos como titulares, o que permite o atendimento da função social do bem sobre o qual recai o poder jurídico, mas também viabiliza a busca por tutela por um titular na omissão dos demais.

O que se vê é que as bases novecentistas sobre as quais foram construídas as definições de propriedade não sofrem um processo de ruptura, mas de reformulação. Não se trata do abandono de um paradigma jurídico na busca de outro, e sim na possibilidade de se valer do modelo juscientífico em voga mediante adequações técnicas e práticas que conformem a teoria à realidade que exige acesso, compartilhamento e pertencimento inclusivo[26].

Como última colocação a ser feita, mas agora com um olhar retrospectivo, das inúmeras formas que as acepções tratadas podem ser tratadas se extrai uma, qual seja, quanto ao objeto, a partir da diferenciação trazida por F. C. Pontes de Miranda[27] entre objeto de direito e coisa: o primeiro é gênero e diz respeito a tudo sobre o que gravitam as posições jurídicas subjetivas, aos bens jurídicos corpóreos e incorpóreos, enquanto a coisa é espécie de objeto de direito, um bem que, pela tradição romano-germânica, é corpóreo, passível de apropriação e que pode ser valorado economicamente.

Aplicando a distinção supra, as acepções amplíssima e ampla tratam do gênero objeto de direito, remetendo à titularidade de posições jurídicas que digam respeito tanto a bens corpóreos quanto incorpóreos. Já as acepções restrita e restritíssima de propriedade, por estarem no plano dos direitos reais, tratam da espécie objetiva tratada, a coisa.

 

CONCLUSÕES

É ínsito ao Direito, tanto a commom law quanto a civil law, que sua base de trabalho, os signos linguísticos, seja dotada de larga vagueza e de múltiplos significados, o que atrai certa insegurança em razão do regime jurídico a ser aplicado. Tal dúvida recai sobre a propriedade, uma categoria jurídica polissêmica que tem quatro acepções.

O primeiro sentido é a propriedade em sentido larguíssimo, que significa a relação de pertinência entre um poder ou dever jurídico e determinado sujeito de direitos. É dizer: a acepção amplíssima é sinônima de titularidade de posições jurídicas subjetivas, pois parte da ideia de que certa posição é própria de alguém.

A segunda acepção é a propriedade em sentido amplo, que corresponde ao setor patrimonial da esfera jurídica, ao conjunto de posições jurídicas subjetivas ativas e passivas, elementares e complexas dotadas de imediata valoração econômica e consequente expressão pecuniária, poderes e deveres que recaem sobre bens corpóreos e incorpóreos.

Uma digressão importante a ser feita neste momento é que as duas próximas definições se fincam, respectivamente, em menor e maior grau, nas raízes romano-germânicas, que partem da noção de coisa como uma espécie de objeto de direito caracterizada por sua corporeidade, a possibilidade de ser apropriada e, também, a sua valoração econômica.

A terceira acepção é a propriedade em sentido restrito, que diz respeito a todo e qualquer direito real, o que corresponderia à totalidade de posições jusreais de gozo sobre coisa própria, sobre coisa alheia e com função de garantia.

Como último sentido está à propriedade em sua acepção restritíssima, que é sinônimo de domínio, o qual, por sua vez, significa o assenhoramento pleno e exclusivo sobre determinada coisa e que confere a quem ostenta o título jurídico dominial os poderes de usar, gozar, dispor e reaver, tudo dentro de certos contornos jurídicos.

 

REFERÊNCIAS

Livros

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ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos.

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SCHULZ, Fritz. Princípios do Direito romano: aulas de Fritz Schulz. Trad. Josué Modesto Passos. São João da Boa Vista: Filomática Sorocabana, 2020.

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 5. ed. Trad. António Manuel Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.

 

[1] História do direito privado moderno. 5. ed. Trad. António Manuel Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015. p. 38 e ss.

[2] Princípios do Direito romano: aulas de Fritz Schulz. Trad. Josué Modesto Passos. São João da Boa Vista: Filomática Sorocabana, 2020. p. 174-184.

[3] Metodologia da ciência do Direito. 8. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2019. p. 610 e ss.

[4] Introdução ao pensamento jurídico. 11. ed. Trad. João Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. p. 363-387.

[5] Princípios do Direito romano: aulas de Fritz Schulz… cit., p. 174-184.

[6] Ibidem, p. 108-109.

[7] Curso elementar de Direito romano. 9. ed. São Paulo: YK, 2019. p. 95.

[8] Curso de Direito romano: o Direito romano e o direito civil brasileiro. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 118.

[9] Instituições de Direito romano. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 233-234.

[10] Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. V, 2012. p. 439-440; Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. XI, 2012. p. 66-67.

[11] Perecimento do direito de domínio e improcedência da ação reivindicatória. Favela consolidada sobre terreno urbano loteado. Função social da propriedade. Prevalência da Constituição federal sobre o direito comum. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 85, n. , p. 204-23, jan. 1996.

[12] Direito das coisas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 152-172.

[13]PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, t. II, 2012. p. 63 e ss.

[14] PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas… cit., p. 170-171.

[15] PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas… cit., p. 159; TOMASETTI JÚNIOR, Alcides. Perecimento do direito de domínio e improcedência da ação reivindicatória. Favela consolidada sobre terreno urbano loteado. Função social da propriedade. Prevalência da Constituição federal sobre o direito comum… cit.

[16] Teoria do fato jurídico: plano da eficácia. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 96.

[17] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado… cit., t. V, p. 439; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia… cit., p. 97; TOMASETTI JÚNIOR, Alcides. Perecimento do direito de domínio e improcedência da ação reivindicatória. Favela consolidada sobre terreno urbano loteado. Função social da propriedade. Prevalência da Constituição federal sobre o direito comum… cit.

[18]Propriedade e outras formas de proteção de direitos – Uma abordagem interdisciplinar. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 430-457, set./dez. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S141598482016000700430&lng=en&nrm=i o&tlng=pt. Acesso em: 28 dez. 2020.

[19] PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas… cit., p. 164-165.

[20] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado… cit., t. XI, p. 67 e ss.; PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas… cit., p. 167-169; PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Elementos gerais da usucapião. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 104, ano 21, p. 151-152, abr./jun. 2020; SCHULZ, Fritz. Princípios do Direito romano: aulas de Fritz Schulz… cit., p. 108-109; MARKY, Thomas. Curso elementar de Direito romano… cit., p. 95; CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito romano: o Direito romano e o direito civil brasileiro… cit., p. 118; CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito romano… cit., p. 233.

[21] O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 276 278.

[22] Ibidem, p. 276-277.

[23] Ibidem, p. 277.

[24] Idem.

[25] Ibidem, p. 277-278.

[26] Ibidem, p. 278.

[27] Tratado de direito privado… cit., t. II, p. 58-59; PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Elementos gerais da usucapião… cit., p. 162-163.

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