RKL Escritório de Advocacia

PRODIGALIDADE E O FIM DO PATRIMONIALISMO CIVIL NA PERSPECTIVA NEOCONSTITUCIONALISTA

PRODIGALIDADE E O FIM DO PATRIMONIALISMO CIVIL NA PERSPECTIVA NEOCONSTITUCIONALISTA

 

INTRODUÇÃO

As relações de poder sempre foram intrínsecas a todas as sociedades. O patrimonialismo sempre regeu todas as relações sociais, sempre fazendo com que o indivíduo que detivesse mais poder (fosse ele econômico ou político) sempre se sobrepusesse sobre o mais fraco. Com a evolução dos modelos patrimonialistas percebemos que necessariamente o mais poderoso fosse aquele que possuísse mais riquezas, terras, dinheiro. E assim, o poder econômico se confundiu com o poder político.

Posteriormente, com os pensamentos iluministas e liberais, surgiram as primeiras constituições, documentos que organizavam o Estado politicamente, inclusive distribuindo o poder. Só estariam legitimados a deter o poder aqueles que obedecessem a todos os requisitos impostos pela Constituição.

Para Antonio Carlos Wolkmer (2003, p. 83):

Tratava-se, na verdade, dos horizontes ideológicos do chamado Constitucionalismo, que em seu sentido clássico representava a concepção técnico-formal do liberalismo político na esfera do Direito. Esta noção, de origem burguesa e que se universalizava em diferentes experiências históricas, privilegiava a contenção das atividades dos órgãos estatais nos limites de um Estado de Direito. Naturalmente, o perfil ideológico do Constitucionalismo, enquanto sustentáculo teórico do Direito Público do período pós-independência, traduziu não só o jogo dos valores institucionais dominantes e as diversificações de um momento singular da organização político-social, como expressou a junção notória de algumas diretrizes, como o liberalismo econômico sem a intervenção do Estado, o dogma da livre iniciativa, a limitação do poder centralizador do governante e a supremacia dos direitos individuais.

A partir deste momento, o qual se chama de “a nova era do constitucionalismo”, foram sendo difundidos ideais que pregavam a isonomia, a igualdade, a justiça e a equidade. Com efeito, não mais foi se admitindo constitucionalmente que a classe mais abastada detivesse todo o poder. A exemplo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, vemos que as Constituições legitimam todo o poder ao povo, logo, não teria sentido que este “povo” vivesse em desigualdade com alguns componentes do todo.

O modelo patrimonialista então começa a decair. Tudo isso, somado ao modelo positivista proposto por Kelsen – a constituição é o topo da pirâmide do Ordenamento Jurídico de uma nação, devendo todas as demais normas a ela se curvarem. Não é diferente a situação do Código Civil, que antes regia todas as relações sociais privadas e até mesmo algumas públicas, dá lugar a todos os preceitos constitucionais, tendo que absorver todos os seus direitos fundamentais e a eles não podendo se contrapor, sob pena de nulidade de qualquer ato praticado senão em consonância com as normas maiores.

Assim, para Pedro Lenza (2011, p.52):

Sob essa perspectiva, especialmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e princípio matriz de todos os direitos fundamentais (art. 1º, III da CF/88), parece mais adequado, então, falar em um direito civil-constitucional, estudando o direito privado a luz das regras constitucionais e podendo, inclusive, em muitos casos, reconhecer a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas […].

Desfrutando do mesmo pensamento, que é quase unânime entre os doutrinadores de Direito Constitucional e de Direito Civil, nos assegura também Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 44):

A expressão direito civil-constitucional apenas realça a necessária releitura do Código Civil e das leis à luz da Constituição, redefinindo categorias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais, da nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º).

Porém ainda perduram casos interessantes em que as relações patrimonialistas de outrora ainda perduram. Estudamos aqui o caso dos pródigos. Pessoas que dissipam todo o seu patrimônio de maneira desordenada, fazendo com que isso traga consequências desastrosas a sua existência e a sobrevivência de sua família.

O Estado, por provocação e depois de realmente comprovada esta “patologia”, pode interditá-lo como relativamente incapaz, não podendo o mesmo dispor de quaisquer de seus bens ou patrimônio sem que haja a intervenção de um curador nomeado pela Justiça. Até que ponto isto viria a afetar os direitos fundamentais deste indivíduo? Que consequências jurídicas isto poderia posteriormente acarretar à vida desta pessoa e qual seria a sua reação em saber que possui bens e fortuna, mas que não pode gastar?

Na época clássica, a noção de prodigalidade foi aprofundada. Sendo elucidada por Amaral Gurgel (1939, p. 128):

(…) a incapacidade do pródigo tem por causa, não mais o princípio da conservação dos bens patrimoniais na família, mas razões de interesse público e privado. Há interesse público em que o indivíduo não faça mau uso de sua fortuna, pois é de temer que, uma vez arruinado, torne-se um perturbador da ordem social. Há interesse de família, que impõem o amparo ao pródigo, que se conduz como um insensato, quanto à administração de seus bens.

Temos realmente um caso muito polêmico a ser estudado, pois, ao passo que isto poderia ferir a sua dignidade como pessoa humana, também poderia ferir a dignidade e o direito de outros, inclusive dele mesmo, se não fosse devidamente interditado. Como ficaria a família desta pessoa se ela viesse a dilapidar todo o seu patrimônio? E o próprio pródigo, como se encontraria após a perda de tudo o que possuía por erro seu? Por fim, como seria também a situação do Estado, pois este tem por obrigação dar sustento a todos as pessoas indigentes, assim, seria mais um no enorme contingente.

São inúmeras as polêmicas travadas no tocante à prodigalidade, inclusive nas mais variadas áreas do conhecimento. Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento (1981, p. 26 e 27) explicita o pensamento de economistas a respeito da prodigalidade:

A prodigalidade é, a um só tempo, problema econômico, psiquiátrico e jurídico, apresentando muitas controvérsias; os economistas dividem-se quanto à conveniência de interditá-los; uns julgam-nos inofensivos e mesmo úteis, tendo em vista a acelerada circulação de riquezas; outros, creem serem eles perniciosos ao bem-estar social, por lhes faltar suporte para acumular a riqueza em suas mãos, fixando o pressuposto de que uma sociedade só é rica quando o são seus integrantes.

O Ordenamento Jurídico após a Constituição de 1988 atribuiu ao instituto da prodigalidade uma justificativa mais ligada à família do possível interditado. Sendo assim, enfatiza Júlio Aguiar de Oliveira (2010):

Manifestação de prodigalidade em sentido comum, ou seja, a conduta perdulária de indivíduo não vinculado a uma família, não é causa de processo de interdição por prodigalidade. O pródigo, em sentido jurídico, não existe senão como membro integrante de uma família, responsável ou corresponsável pela sua manutenção. Família, por outro lado, não se define pela comunidade de hipotéticos herdeiros de hipotética herança comum. Família, no contexto da Constituição da República de 1988, é a comunidade formada pelos cônjuges ou por qualquer dos pais e seus descendentes.

É uma situação bastante complicada e contraditória. Vivenciamos o fim de uma sociedade patrimonialista (pelo menos juridicamente falando), porém ainda contemplamos algumas controvérsias legais. Neste trabalho tentaremos esclarecer alguns destes assuntos, abordando a maneira como se deu o fim do patrimonialismo civil e também toda a polêmica que paira sobre o instituto da prodigalidade.

 

METODOLOGIA

À metodologia enfocada, assinalamos a pesquisa documental, através de um estudo descritivo-analítico, ao que consignamos ao material pesquisado: dicionários, legislações, doutrinas jurídicas e jurisprudências. Neste sentido, enveredamos com Aguillar (1996, p.154), dispondo como atitude fechada nas ciências um tipo de pretensão epistemológica que mais se adequada ao objeto do estudo, a saber: a redução do campo de investigação à ciência do Direito e seus dados atômicos, cujo mister é a impossibilidade de se explicar o fenômeno global, uma vez que se quer explicar tão-somente o ordenamento local, em dado tempo e lugar, com efeito, renunciando ainda ao ensejo de transformação da sociedade, tem-se, veementemente, a pesquisa, base na doutrina positiva do Direito

Quanto à abordagem, é livre e exploratória, porquanto o mister exegético é humanístico, voltado, nomeadamente, aos profissionais do Direito, e por último, quanto aos objetivos, temos a livre metodologia descritiva e exploratória, sob o escopo de identificar, analisar e reger os institutos no ordenamento jurídico.

 

1  O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO

Ao domínio do regime absolutista moderno, com a difusão dos ideais iluministas e liberais da escola clássica e ainda com a ascensão burguesa, surge o constitucionalismo. Com intuito de concretizar judicialmente o liberalismo político-econômico e baseado na teoria de divisão de poderes proposta por Montesquieu, o movimento pretendia conter o poder do Estado, repartindo suas atribuições em três esferas independentes; ter a segurança jurídica a qual o absolutismo insistentemente negava; estabelecer formas e tipos de governo regulamentadas e estabelecer todas as liberdades individuais e coletivas, tudo em um documento denominado Constituição.

Com a implantação do constitucionalismo, o Estado vem a adquirir personalidade jurídica e a ser considerado, portanto, um sujeito de direito, fazendo com que o monarca se tornasse apenas mais um órgão pertencente à pessoa jurídica do Estado. A princípio, cobrava-se uma abstenção total do Estado nas relações comerciais privadas. Queria-se que o liberalismo econômico pairasse sobre a sociedade e que não houvesse a mínima intervenção por parte do mesmo, cabendo a ele apenas dar as liberdades individuais e coletivas das pessoas. Tinha-se, portanto, uma separação do Estado e da sociedade. Porém, esta separação começou a ser duramente questionada. Nas palavras de Mendes, Coelho e Branco (2002, p10):

A ideia, insta ao Estado liberal, da separação Estado-sociedade é reavaliada, dando surgimento à compreensão de que o Estado deve prover para que a sociedade logre superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados – de acidentes de trabalho e de saúde, por exemplo. As necessidades das Grandes Guerras e os esforços de reconstrução impeliram o Estado a intervir decisivamente na vida econômica.

Nesta fase foram introduzidas as garantias fundamentais que o Estado deveria prestar aos cidadãos, denominadas por muitos autores “direitos de segunda geração”, que englobavam não somente a prestação de serviços por parte do Estado, mas também liberdades sociais tais quais a liberdade de sindicalização, direito de salário mínimo, repouso semanal remunerado, entre outros. Reivindicava-se que o Estado não somente desse as liberdades, mas também que ele garantisse que elas fossem respeitadas.

Posteriormente, com o desenvolvimento da vida em sociedade, vieram também a ser introduzidos os chamados “direitos de terceira geração”, que implicariam aos direitos das coletividades como, por exemplo, o direito à autodeterminação dos povos, direito à paz, à qualidade do meio ambiente, enfim, direitos de titularidade difusa que abrangessem as massas populacionais.

Introduzidos todos estes direitos ao rol das garantias teve-se uma eminente evolução de um Estado liberal individualista e patrimonialista para um Estado social, respeitador da dignidade da pessoa humana e dos interesses coletivos. Somando isso a um período de renovação dos pilares da sociedade após as grandes guerras, as constituições, até então quase inativas em aspectos práticos, ganham muita força. Neste contexto vivenciamos então a emergência do constitucionalismo contemporâneo ou novo constitucionalismo. Por englobar todos estes direitos e garantias do homem e da sociedade, bem como as obrigações as quais está sujeito o Estado, a Constituição tornou-se efetivamente a norma fundamental, norteadora de todas as esferas sociais. Nesse sentido, Paulo Nader, sintetizando a teoria de Kelsen, assinala: “as normas jurídicas formam uma pirâmide apoiada em seu vértice. A graduação é a seguinte: constituição, lei (…)” (2010, p.388).

 

2 A INSERÇÃO CONSTITUCIONAL NA ESFERA PRIVADA

A partir deste conceito, temos que a Constituição é a lei maior do Estado e que todas as outras devem estar intrinsecamente dispostas de acordo com os seus preceitos. Não seria diferente, pois, com a legislação referente ao Direito Civil, que embora fosse à época a grande norteadora de todas as relações particulares e tivesse considerável suficiência normativa, teria obrigatoriamente que seguir o norte dos princípios constitucionais. Na lição de Raiser (1990, p.174):

O direito civil tem seguramente uma função política, que vai definida em todas as diversas épocas constitucionais. E assim, pela mesma razão, os princípios ético-políticos, postos como fundamentos da constituição do Estado, exercem uma forte influência sobre a estrutura do direito privado.

No contexto brasileiro, quando promulgada a Carta Magna de 1988, encontrava-se vigente o Código Civil de 1916, um típico exemplo das codificações oitocentistas, de caráter extremamente patrimonialista e individualista. Em contrapartida, a nova Constituição contava com dispositivos que garantiam os direitos fundamentais das pessoas e das coletividades, como a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a função social da propriedade, entre outros, os quais se chocavam bruscamente com a essência do código.

Foi promulgado então, em 2002, um novo Código Civil, com um texto voltado à proteção da pessoa humana em detrimento do patrimônio no âmbito das relações privadas e baseando-se nos valores constitucionais de socialidade, deixando de lado o individualismo. Um código totalmente adequado aos princípios dispostos na Constituição, baseado em conceitos jurídicos indeterminados e em clausulas gerais, que o fariam acompanhar todo o dinamismo da sociedade e integrar todo o ordenamento jurídico observando a hierarquia.

Todavia, mesmo à luz do constitucionalismo contemporâneo e com a adequação dos ramos diversos do direito ao mesmo, tão forte era a influência do direito privado na esfera jurídica que os civilistas não deixaram de ver o Direito Civil como regra fundamental da sociedade. Cabe citar aqui a crítica de um dos próprios redatores do código, Miguel Reale (2011, p.358):

Costumamos dizer que o Código Civil é a constituição do homem comum, isto é, do que há de comum entre todos os homens. Na verdade, a Lei Civil não considera os seres humanos enquanto se diversificam por seus títulos de cultura, ou por sua categoria social, mas enquanto são pessoas garantidamente situadas, com direitos e deveres, na sua qualidade de esposo ou esposa, pai ou filho, credor ou devedor, alienante ou adquirente, proprietário ou possuidor, condômino ou vizinho, testador ou herdeiro etc. Sob o prisma da teoria culturalista do Direito, o Código Civil é, a bem ver, a Constituição fundamental. Se, do ponto de vista formal ou técnico-jurídico, isto é, segundo a ordem hierárquica das competências, uma Constituição é a lei maior ou primordial, o mesmo não se pode dizer do ponto de vista histórico-cultural, pois, a essa luz, a Lei Civil surge como o ordenamento mais estável, o menos sujeito a transformações bruscas. Basta confrontar a duração das Constituições com a dos códigos para se dar razão a Radbruch quanto à maior estabilidade do Direito Civil e à mutabilidade incessante do Direito Constitucional ou do Administrativo.

Entretanto, tem-se notado que o Direito Civil vem sendo descodificado. Prova disto são as inúmeras leis extravagantes que hodiernamente encontram-se vigentes no nosso sistema judicial. Estes microssistemas legislativos, somados a rígida hierarquia, reduziram notavelmente a importância dos códigos, questionando-se até a necessidade de reforma dos mesmos. Vemos também que é nítida a atual unidade do nosso Ordenamento Jurídico. E para construir esta unidade fez-se necessário seguir todos os preceitos impostos pela teoria da supremacia constitucional. Como bem ensina Maria Celina Tepedino (1993, p.24):

Acolher a construção da unidade (hierarquicamente sistematizada) do ordenamento jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, isto é, os valores propugnados pela Constituição, estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, resultando, em consequência, inaceitável a rígida contraposição direito público-direito privado

Em decorrência de todo este fenômeno provocado pelo constitucionalismo, fica posta como a principal conquista, em aspectos jurídicos, o efetivo fim do patrimonialismo que regia todas as relações privadas

Mais uma vez é importante ressaltar que o constitucionalismo nasceu com o intuito de proteger o patrimônio da burguesia. Contudo, tomou proporções diferentes, fazendo as características patrimonialistas dos códigos oitocentistas darem lugar à socialidade proposta pelos ideais constitucionalistas contemporâneos. Para tanto não foi alterada a essência do movimento, mas a cultura das sociedades relativizada pelos grandes conflitos de então. Após tantos acontecimentos passamos, cada dia mais, a ter uma visão crítica dos fatos e a tomar conhecimento de nossas atribuições como povo, embora isto efetivamente ainda não seja posto em prática.

Neste ponto de vista, foi sendo posto de lado o patrimonialismo propriamente dito. Porém, infelizmente ainda vivemos com este princípio internalizado no mais íntimo da nossa sociedade. Na letra da lei, ele está extinto, entretanto ele apenas foi sociologicamente amenizado e mascarado, apesar de ainda haverem alguns casos isolados nos diplomas legais, como o instituto da prodigalidade, que será adiante tratado.

Sabe-se que a atual Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, XXIII, diz que a propriedade atenderá a sua função social, e discorre sobre o tema em diversos outros dispositivos no decorrer de seu extenso texto. Também vemos o assunto em inúmeros outros documentos legais, especialmente no Código Civil e em outras leis.

 

3 AS PROBLEMÁTICAS QUE AINDAM PERDURAM E A QUESTÃO DA PRODIGALIDADE

Apesar de todo o aparato constitucional e até mesmo civil para a proteção dos direitos fundamentais e direitos da personalidade, para a observância dos princípios da eticidade e socialidade, vemos ainda alguns casos incomuns que perduram até hoje no nosso Ordenamento Jurídico, causando dúvidas sobre a edição das normas atuais no que tange a questão patrimonialista. Por algumas vezes podemos notar o próprio Estado fazendo intervenção na vida dos particulares fundamentado em dispositivos legais.

Um caso notável de intervenção direta do judiciário no patrimônio individual das pessoas diz respeito à situação dos pródigos. Do latim, esta denominação vem de prodigus, gastador, esbanjador. Nas palavras de Cristiano Chaves (2011, p. 305), o pródigo: “é a pessoa que, desordenadamente, gasta os seus haveres, dilapidando o seu patrimônio, de modo a comprometer a sua subsistência.” Geralmente estes gastos desenfreados são devidos a vícios ou até mesmo o puro consumismo. Flávio Tartuce (2011, p. 78) salienta ainda que pródigos “são aqueles que dissipam de forma desordenada e desregrada os seus bens ou seu patrimônio, realizando gastos desnecessários e excessivos, sendo exemplo típico a pessoa viciada em jogatinas.” Não diferente, para Washington de Barros Monteiro (2000, p. 64), “pródigo é aquele que desordenadamente dissipa seus haveres, reduzindo-se à miséria.”.

Os pródigos, como bem lembra Paulo Nader (2008, p. 156), não podem ser confundidos com aquelas pessoas que não possuem habilidade para o comércio e, por conta disso, acabam fazendo maus negócios e tendo prejuízos tamanhos que os façam perder o patrimônio. Enfatiza ainda que a distinção é muito difícil de se fazer na maioria das vezes.

No Ordenamento Jurídico brasileiro, apesar de o mesmo não definir perfeitamente o que seja um pródigo, deixando isso a cargo da doutrina, o Código Civil de 2002, assim como o de 1916 o consideram como uma pessoa relativamente incapaz, podendo este ser interditado por decisão judicial. Esta interdição reflete um viés impositivo do Estado sobre o indivíduo, pois este fica totalmente impedido de realizar seus próprios negócios jurídicos sem a presença de um curador, nomeado pelo juiz. Evidente que, apesar de isto ser muito questionado, a prodigalidade é uma incapacidade restrita, tendo um caráter exclusivamente patrimonial. Segundo o art. 1.792 do Código Civil de 2002, “a interdição do pródigo somente o privará de, sem curador, emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar, em geral, atos que não sejam de mera administração.” Sendo assim, mesmo que não possa gastar nada do seu patrimônio que não seja autorizado por curador, o pródigo não será restrito de praticar os demais atos da vida civil.

O dispositivo legal toma por base científica fato de a prodigalidade ser, por muitos, considerada uma patologia. Na lição de Nina Rodrigues (apud Clóvis Beviláqua, 2007, p. 127): “A psiquiatria ensina que há certas síndromes degenerativas que se manifestam pelos gastos imoderados, pelo desperdício da fazenda. É o que se denomina oniomania. Estas síndromes degenerativas andam, geralmente, associados a dois outros: a mania de jogo e a dipsomania ou vontade impulsiva para beber.”

Maria Helena Diniz, citando Roberto Senise Lisboa (2008, p. 169) acrescenta: “[…] a prodigalidade pode dar-se por: a) oniomania, perturbação mental que provoca o portador a adquiri descontroladamente tudo o que tiver vontade; b) cibomania, psicose conducente à dilapidação patrimonial em jogos de azar; c) imoralidade que leva a gasto excessivo para satisfação de impulsos sexuais.”

O instituto da prodigalidade, como bem explana o notável jurista Clóvis Beviláqua, nasce do Direito Romano. Inicialmente a interdição apenas incidia sobre os bens que o indivíduo herdava de sua família. Estes eram considerados propriedade comum da família, não sendo permitido que o herdeiro se desfizesse deles ao seu bel prazer. Posteriormente, o alcance da prodigalidade foi estendido. Assim, a garantia não se limitava apenas aos bens da família, mas também aos bens adquiridos pela própria pessoa. Desta maneira, a interdição não seria mais somente de garantia da família, mas também como garantia ao próprio individuo, adquirindo assim um caráter de preservação da própria dignidade humana. (BEVILÁQUA, 2007, p. 127).

Todavia, com a Revolução Francesa e a ascensão da burguesia ao poder, a interdição por prodigalidade desapareceu do Ordenamento Jurídico francês, segundo Caio Mario da Silva Pereira (2010, p. 244) sob alegação de que “o empobrecimento do individuo não atinge a riqueza coletiva, de vez que os seus gastos põem em giro haveres que não saem da circulação social, além do aspecto odioso da pretensão quando partida da mulher e dos filhos”. Outrossim, o Código Napoleônico adotou outras medidas quanto aos pródigos, determinando no seu art. 512, a nomeação de um “conselho judicial” que deixasse-os proibidos de demandar, transigir, emprestar, alienar, gravar bens, etc. sem a presença da assistência que lhes for nomeada por um tribunal.

 

4 AS POLÊMICAS TRAVADAS EM TORNO DA PRODIGALIDADE

Inegável é que existe ainda nos dias atuais ampla discussão sobre o instituto da prodigalidade. Não seria muito destacar, por exemplo, os pontos de vista de alguns autores, como Cristiano Chaves (2011, p. 306), que não admitem que a prodigalidade seja uma causa incapacitante. Para ele seria um direito do indivíduo escolher como gastar o seu dinheiro e que a intervenção judicial estaria ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que priva uma pessoa de uma liberdade, além do que o assunto não entra apenas no mérito jurídico para este tratá-lo com tanta propriedade. Em suas próprias palavras:

A prodigalidade, porém, é um fenômeno complexo, exigindo um diálogo entre diferentes searas, como o Direito, a Psiquiatria, a Psicanálise e a Economia. É claro que a prodigalidade não pode estar ligada, tão somente, ao volume de gastos de alguém. Até porque é possível gastar muito sem prejudicar a própria sobrevivência. Ao nosso viso, a prodigalidade não constitui, tecnicamente causa incapacitante. É que, lastreado na dignidade humana, não vemos lógica em interditar alguém (e, por conseguinte, privá-lo da capacidade jurídica geral) apenas porque despende o seu patrimônio desordenadamente. Trata-se de absurda intervenção do Estado.

Da mesma forma pensa Jussara Maria Leal de Meirelles (apud Cristiano Chaves, 2011, p. 306), ao fazer a seguinte provocação:

Será que essa pessoa (o pródigo) não é feliz assim? Será que não passou a vida inteira aguardando por esse momento, de poder gastar tudo o que economizou? Será que é possível depreender uma falta de discernimento somente porque o seu olhar para a vida não tem o viés econômico que o sistema prende como seguro?

Pablo Stolze (2012, p. 147), por sua vez, fica no meio termo, concordando com a interdição, porém fazendo uma importante contestação em relação à ampliação do rol de legitimados no Código vigente. Para ele apenas o cônjuge e os herdeiros necessários estariam formalmente aptos a impetrar a ação. O maior número de pessoas legitimadas implica em mais pessoas interessadas no patrimônio do possível pródigo. Também questiona a autorização dada ao Ministério Público, visto que este não teria interesse em resguardar o patrimônio do particular.

O Novo Código, incorretamente ao nosso ver, afastou a determinação do art. 460 do CC-16, que atribuía legitimidade ativa para a interdição do pródigo apenas ao cônjuge, ascendente ou descendente. Poderia ter melhorado a dicção legal, incluindo o convivente, mas não admitir, como fez, que qualquer parente ou mesmo o Ministério Público (que não tem interesse em resguardar o patrimônio particular) possa pleitear a curatela por prodigalidade. O que justifica essa interdição é a preservação patrimonial da fazenda do interdito, e apenas os parentes sucessíveis, especialmente os herdeiros necessários, têm tal interesse.

Diante do exposto, surge o seguinte questionamento: este dispositivo legal contido no art. 4ª, IV, da atual legislação civil, que rompe friamente com o patrimonialismo outrora vigente, não estaria também rompendo com os preceitos constitucionais?

A Constituição de 1988, no seu art. 5º, X, fala que a honra e a vida privada das pessoas são invioláveis ao passo que o inciso XXII garante o direito de propriedade, além do que, no art. 1º, III, fica estabelecida como fundamento da república a dignidade da pessoa humana. Ademais, o Código Civil, no seu art. 21, expressa ser inviolável a vida privada. Todavia, em se falando dos pródigos, estes princípios entram em conflito com outros.

Como se sabe, o Novo Código Civil, em consonância com a Constituição da República, perdeu grande parte do seu caráter patrimonialista, sendo este fundado sobre os princípios da eticidade, operabilidade e socialidade. Ao falar deste último vemos que ele se reflete inteiramente no art. 5º, XXIII, CF: a propriedade atenderá a sua função social. Essa cláusula geral, que foi reforçada com o art. 2.035, CC/02 deixou o espaço muito aberto para a jurisprudência se posicionar sobre o assunto, fazendo-se com que prevaleça a equidade do magistrado. No caso da prodigalidade estamos falando diretamente a respeito de patrimônio, de propriedade. A Carta garante o direito de propriedade, desde que esta atenda a sua função social.

Acontece o seguinte: 1) O pródigo geralmente tem família que dele depende. Não pode, pois, o Direito embasado na justiça e na equidade, permitir que uma pessoa gaste compulsoriamente tudo aquilo que não só a ela pertence, deixando o cônjuge, ascendentes e descendentes desamparados financeiramente. A pessoa tem o dever legal de sustentar aquelas pessoas. Nada mais lógico do que o Estado protegê-los de ficar sem uma herança digna ou até mesmo sem ter com o que se sustentar. 2) Fundamentando-se no mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, não é concebível que o Estado, incumbido de proteger todos os cidadãos, permita que um indivíduo gaste tudo o que possui e vá viver de miséria. Que se conste também que isto não seria conveniente para o Estado, que ficaria na obrigação de ampará-lo. 3) Esta pessoa se tornaria um fardo para a própria sociedade, pois a prodigalidade, como bem anota Pablo Stolze (2012, p. 146):

Trata-se de um desvio comportamental que, refletindo-se no patrimônio individual, culmina por prejudicar, ainda que por via oblíqua, a tessitura familiar e social. Note-se que o indivíduo que desordenadamente dilapida o seu patrimônio poderá, ulteriormente, bater às portas de um parente próximo ou do próprio Estado para buscar amparo.

Todo este desgaste vai de inteiro encontro com os princípios da socialidade, dignidade da pessoa humana e mesmo da honra. É esta, portanto, a justificativa da lei para a interdição do pródigo. É o bem maior que prevalece. Neste caso, o melhor para a família, para a sociedade, para o Estado e para ele mesmo.

Cabe também novamente enfatizar que a interdição do pródigo é relativa. Ela se limita apenas a impedir que ele cometa atos que possam dirimir ou acabar ou seu patrimônio, para tanto a justiça lhe nomeia um curador. Nas demais situações, ele é considerado um cidadão comum. Cristiano Chaves (2011, p. 307), mesmo no que pese a sua posição contrária à interdição do pródigo, ensina: “De qualquer sorte, convém registrar que a incapacidade do pródigo somente atinge a prática de atos de natureza patrimonial, não gerando limitações aos atos de cunho existencial, como o exercício do poder familiar, o direito ao voto e o testemunho em um processo.” Maria Helena Diniz (2008, p. 170) ainda complementa: “Todos os demais atos da vida civil poderão ser, por ele, validamente praticados, como: o casamento, a fixação do domicílio do casal, a autorização para que seus filhos menores contraiam matrimônio, etc.”.

Ressalta-se também que o pródigo, enquanto não for assim declarado, é plenamente capaz para praticar qualquer ato da vida privada. Apenas com a sua interdição, declarada por sentença judicial, é que ele passa a ser considerado relativamente incapaz.

 

CONCLUSÃO

Mesmo com todos os mecanismos criados pelo constitucionalismo moderno, ainda temos uma cultura extremamente ligada ao patrimonialismo e à propriedade privada, fazendo com que, até os dias de hoje, mesmo com todos os dispositivos legais e constitucionais tratando do assunto e com a extraordinária proteção jurídica dos diplomas ao hipossuficiente econômico, os indivíduos que mais possuem são sempre os mais favorecidos.

Felizmente a proporção com que vemos isto acontecer está se tornando cada vez menor, justamente por conta dessa unificação do sistema jurídico e da crescente supremacia constitucional sobre todas as outras normas jurídicas, especialmente sobre as de Direito Civil.

Assim, concluímos que a prodigalidade não é salutar ao Ordenamento Jurídico Brasileiro tal qual ele é hoje. Apesar de ter toda uma fundamentação social a que se pese a questão da falência do próprio indivíduo e de seus herdeiros, este instituto vai totalmente de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois privar uma pessoa de gastar o que é seu, ainda que ela o faça de maneira desregrada, é um ultraje. Veja-se ainda, novamente ressaltando, a situação que esta pessoa ficaria depois de declarada a sua interdição, ainda que de cunho exclusivamente patrimonial.

É um instituto jurídico ultrapassado por confrontar com diversos princípios constitucionais e até mesmo com os direitos de personalidade postos no próprio Código Civil, e pode ser substituído efetivamente pela equidade dos magistrados e bom senso dos familiares. O que poderia ser feito, ao nosso ver, seria uma reserva de patrimônio mínimo, para a proteção dos herdeiros, por exemplo: após ingressada com ação na justiça por prodigalidade, o magistrado, após feito o inventário de todo o seu patrimônio, bloquearia um percentual para que fique bloqueado de quaisquer negociações que não com o consentimento expresso dos herdeiros diretamente interessados.

Infelizmente o que percebemos hoje na jurisprudência é a intervenção direta do Estado na vida dos particulares declarados pródigos, deixando-os totalmente alheios ao seu patrimônio, causando-os constrangimento, humilhação e até mesmo, em alguns casos, estado de depressão.

Todo este processo, como já se foi bem explanado, é resultado do processo de constitucionalização do direito privado. Ao nosso pensar, a constituição deve estar sempre ao topo do Ordenamento Jurídico.

Deve-se focar mais, não só as nossas leis, mas também a nossa atenção a essa problemática, uma vez que a sociedade, e até mesmo o próprio direito são formados de atitudes, pequenos hábitos que fazem significativa diferença na conquista de uma vida mais digna. É isto que o a teoria constitucional, agora amadurecida, vem nos proporcionar: a chance de criarmos uma melhor mentalidade e repensar os nossos atos. Nos trazer princípios éticos e morais que foram agregados no decorrer dos séculos até se concretizarem no que chamamos em sentido amplo de democracia.

Faz-se, portanto necessário que busquemos meios que nos possibilitem pôr em prática todos estes princípios, não apenas como regras a serem coercitivamente obedecidas, mas como conceitos a serem internalizados no seio da nossa sociedade, fazendo-se com que se respeite acima de tudo a dignidade da pessoa humana e as necessidades coletivas da sociedade em detrimento de qualquer forma de patrimônio.

Agindo assim poderemos concretizar os objetivos traçados como pilares da nossa república os quais estão presentes no mais íntimo de cada um de nós, representados positivamente pelo art. 3º da nossa Constituição Federal.

 

REFERÊNCIAS

AGUILLAR, Fernando Herren. Metodologia da Ciência do Direito. São Paulo: Max Limonad, 1996. 158 p.

BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. São Paulo: Servanda, 2007.

DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 3. ed. São Paulo: atual. Saraiva, 1997.

FARIAS, Cristiano chaves de. Direito civil: teoria geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 1: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

GURGEL. J. do Amaral. Dos contratos no Código Civil Brasileiro, vol. I. São Paulo, 1939.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 15. ed. rev. atual. ampl. São Paulo, 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Parte Geral. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 30. ed. rev. Rio de Janeiro: atual. Forense, 2008.

OLIVEIRA, Júlio Aguiar de. A Prodigalidade e o Direito. texto extraído de: <http://www.hottopos.com/videtur31/julio1.htm>, acessado em: 17/11/2012.

RAISER, Ludwig. Il compito del diritto privado. Trad. Marta Graziadei. Milano: Giuffrè, 1990.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol I. 23 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo:Saraiva, 2011.

SARMENTO, Eduardo Sócrates Castanheira. A Interdição no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

 

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. São Paulo: Método, 2011.

TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um Direito Civil Constitucional. São Paulo: Revista de Direito Civil Agrário, Imobiliário e Empresarial, ano 17, jul./set. 1993.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.