RKL Escritório de Advocacia

PROCESSO CIVIL DE FAMÍLIA

Eduardo Cambi

SUMÁRIO: 1. A unicidade da causa de pedir na ação de investigação de paternidade biológica e socioafetiva – 2. Coisa julgada: incidência única e secundum eventum probationis – 3. Exame do DNA e coisa julgada: compatibilização da ciência do perito com a livre convicção do juiz – 4. Evitando a relativização da coisa julgada material nas ações de investigação de paternidade em que o investigado se recusa a submeter-se ao exame do DNA: segurança jurídica e dignidade humana – Conclusão – Referências.

1 A UNICIDADE DA CAUSA DE PEDIR NA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA

A causa de pedir é composta pelos fatos e seus respectivos fundamentos jurídicos, vale dizer, são os fatos jurídicos em virtude do qual nasce o interesse processual (ou de agir), tornando justificável o acesso à justiça para pleitear os efeitos jurídicos que decorrem dos fatos narrados na petição inicial.([1])

A investigação de paternidade é uma ação de estado, cuja causa petendi recai justamente, sobre a declaração do estado de filho.

Pelo artigo 363 do Código Civil de 1916, três eram os fundamentos jurídicos para os filhos ilegítimos (ou oriundos de relações extraconjugais) investigar a paternidade biológica: I) se, ao tempo da concepção, a mãe estava concubinada com o pai; II) se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela; III) se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente.

Não obstante esta diversidade de causas de pedir serve como fundamento jurídico da ação de investigação de paternidade biológica apenas a concepção do filho, decorrente da relação sexual (meio natural, corporal) ou assexual (meio artificial, extracorporal, laboratorial ou científico).([2])

Em contrapartida, tratando-se de filiação socioafetiva, a causa de pedir desta ação de investigação de paternidade recai apenas sobre o estado de filho afetivo (que, no Código Civil de 1916, recebia o nome de posse de estado de filho e era admitida, tão somente, para fins de prova e suprimento do registro civil, se os pais convivessem em família constituída pelo casamento, para a filiação considerada legítima; art. 349). Tal estado de filho afetivo depende da identificação das seguintes circunstâncias:([3]) I) nominatio (nome): ter levado o filho o nome dos pais; II) tractatus (tratamento): ter recebido continuamente o tratamento de filho; ser educado como filho; este é o elemento de maior relevância, já que reflete a conduta que é dispensada ao filho, garantindo-lhe o indispensável à sobrevivência, como a manutenção, educação, instrução, a formação como ser humano; III) reputatio (reputação social, notoriedade ou fama): ter sido constantemente reconhecido pelos pais e pela sociedade como filho.

Corrigindo o equívoco, o Novo Código Civil, no artigo 1.596, não reproduziu os mesmos fundamentos jurídicos da paternidade biológica contidos no artigo 363 do Código Civil de 1916, limitando-se a enunciar, nos moldes do artigo 227, parágrafo 6º, da CF, o princípio da isonomia entre os filhos, independentemente de sua origem (matrimonial ou não; biológica ou socioafetiva).

Esse novo posicionamento, ao unificar o fundamento jurídico das respectivas ações de investigação de paternidade biológica e da socioafetiva, impede o fenômeno, que era possível durante a vigência do Código Civil anterior, do ajuizamento de várias ações de investigação de paternidade, cada uma com causa de pedir diferente (p. ex., uma com base no rapto e outra com fundamento na ausência da coincidência do tempo da concepção), para o mesmo fim.

Tampouco será possível investigar a paternidade biológica, quando já reconhecida a socioafetiva, porque o estado de filiação é irrevogável (art. 1.609 do CC), salvo se ficar comprovado erro ou falsidade do registro de nascimento (art. 1.604 do CC), faltando ao autor a condição da ação (possibilidade jurídica do pedido), o que não impedirá, contudo, a utilização de ação declaratória para a tutela jurisdicional de direitos personalíssimos decorrente da relação biológica.([4])

2 COISA JULGADA: INCIDÊNCIA ÚNICA E SECUNDUM EVENTUM PROBATIONIS

Como a causa de pedir não é mais múltipla, mas única, a coisa julgada material deverá incidir uma vez apenas, porquanto, pela teoria da tríplice identidade, o ajuizamento de ação idêntica a anterior (mesmas partes, causa de pedir e pedido) impede a formação de nova relação processual por falta de pressuposto negativo (art. 267, inc. V, CPC). Essa nova orientação deve provocar a alteração da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que atrelado aos parâmetros do Código Civil anterior, permitia o ajuizamento de ações distintas, fundadas, cada uma, em causas de pedir diferentes.([5])

Porém, o tratamento da coisa julgada material nas ações de investigação da paternidade, por terem como objeto direito indisponível (o estado de filiação), deve ser diferenciado em relação às demandas que versam sobre direitos patrimoniais. A estabilidade das relações jurídicas deve considerar a pretensão de direito material deduzida no processo. A segurança jurídica não é um valor que deva ser operado abstratamente a ponto de desconsiderar a complexidade dos interesses juridicamente relevantes.

A dúvida do julgador, nas ações de investigação de paternidade, merece ser tratada de forma distinta, tal como já reconhecido legislativamente nas demandas que versam sobre interesses difusos e coletivos (art. 103 do CDC), permitindo que com o surgimento de nova prova mais consistente, seja procedido o rejulgamento da mesma demanda.

A coisa julgada material nas ações de investigação de paternidade, destarte, deve ser secundum eventum probationis, isto é, o mérito (a res in iudicium deducta ou a pretensão de direito material) só deve ser definitivamente resolvido quando a prova for suficiente para concluir pela existência ou inexistência do estado de filiação.([6])

Logo, a omissão do demandado ou do Estado, em viabilizar a realização da prova impedindo que o juiz conclua pela existência ou não do Estado de filiação, não impede que as partes ajuízem a mesma ação de investigação de paternidade novamente, a fim de que a prova conclusiva (o exame do DNA) seja realizada para substituir a decisão baseada em presunções de paternidade ou em provas sem caráter científico (v.g., testemunhas, fotografias, bilhetes, cartões de aniversário, etc.).([7])

Maria Berenice Dias entende que, nessas hipóteses, deve o juiz extinguir o processo sem julgamento de mérito, com fundamento no artigo 267, inc. IV, do CPC, por faltar pressuposto válido e regular para o desenvolvimento do processo.([8])

Entretanto, este não é o melhor posicionamento pelas seguintes razões: I) a prova diz respeito à reconstrução dos fatos no processo, não à existência ou o desenvolvimento válido da relação processual;([9]) II) ele impede a utilização das presunções, ainda que não levem a juízos imutáveis, mas são úteis para acertar a questão de direito material provisoriamente.

Caso contrário, qualquer ação de investigação de paternidade onde não fosse produzido o exame do DNA levaria a uma decisão sem julgamento de mérito. Se assim fosse, o demandado que se negasse a realizar o exame do DNA não poderia ser declarado pai, com base nos artigos 231 e 232 do CC, e na jurisprudência recém sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 301: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame do DNA induz presunção iuris tantum de paternidade”).

A propósito, tal presunção de paternidade, pela recusa do suposto pai em se submeter ao exame do DNA, somente é iuris tantum porque se admite a prova contrária, com fundamento na coisa julgada secundum eventum probationis, em processo futuro,([10]) uma vez que, não se reconhecendo o tratamento diferenciado da coisa julgada material na ação de investigação de paternidade, nenhuma outra demanda sobraria, na medida em que a ação rescisória, nas estritas hipóteses previstas no artigo 485 do CPC, não permite este alcance.

3 EXAME DO DNA E COISA JULGADA: COMPATIBILIZAÇÃO DA CIÊNCIA DO PERITO COM A LIVRE CONVICÇÃO DO JUIZ

Com a coisa julgada secundum eventum probationis, nas ações de investigação de paternidade é possível resguardar a verdade real e, ao mesmo tempo, tutelar, ainda que provisoriamente e sem o alcance da imutabilidade, os direitos materiais do autor, o que evita o perecimento dos seus direitos urgentes (como o de alimentos).

Essa solução, contudo, não é a ideal, porque a pretensão do filho que investiga a paternidade não termina quando se dá a ele um provedor econômico. Tão ou mais importante que isto é ter o filho o direito de saber, com razoável grau de certeza, a sua ancestralidade.

O direito de saber a sua origem é um direito personalíssimo que, conexo ao estado de filiação (que é um direito de família),([11]) permite ao filho satisfazer uma necessidade psicológica e conhecer, por intermédio do descobrimento de seus pais biológicos, a sua história (origens culturais, sociais e genéticas), com as suas relevantes repercussões como a preservação dos impedimentos matrimoniais e a descoberta de doenças hereditárias para fins preventivos e terapêuticos.

A sentença, na ação de investigação de paternidade, independentemente da prova produzida, sempre fará coisa julgada material quando houver o julgamento de mérito. Afinal, para que a sentença seja revestida da autoridade da coisa julgada material basta que o Estado-juiz se pronuncie sobre a res in iudicium deducta. No entanto, a sentença da ação de investigação de paternidade biológica somente se tornará imutável, impedindo o ajuizamento de outra ação idêntica, quando for produzido o exame do DNA.

Essa concepção, contudo, traz consigo a questão da sacralização do exame do DNA. Embora o magistrado não deva ser visto como um mero homologador de laudos periciais,([12]) porque prevalece em nosso sistema processual o princípio do livre convencimento do juiz (art. 131 do CPC), não se podem ignorar os parâmetros científicos para a elucidação da verdade biológica. Como bem explica Salmo Raskin, a possibilidade de encontrar duas pessoas iguais em diversos pontos do material genético analisado é menos do que a população atual do planeta (cerca de 6 bilhões de indivíduos), ficando a única exceção a cargo dos gêmeos univitelinos, que possuem a princípio, 100{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} de seu DNA igual.([13])

Com a evolução científica, há a necessidade de buscar uma nova interpretação ao artigo 436 do CPC, pois, se é certo que o juiz deve ter liberdade para formar a sua concepção, esta liberdade não é tão ampla que se admita qualquer valoração da prova. Como bem enfatizou Friedrich Stein, “la libertad de crítica no es todavía la libertad de actuar por propia cuenta”.([14]) A decisão judicial se coaduna com o Estado Democrático de Direito quando consegue combinar a liberdade com a responsabilidade, porque, nas palavras de Eduardo Couture, liberdade sem responsabilidade significa anarquia e responsabilidade sem liberdade, opressão.([15]) Para que o exercício do poder jurisdicional se legitime socialmente, evitando o arbítrio judicial e promovendo a justiça da decisão, a nova exegese do artigo 436 do CPC não pode impor o laudo pericial ao juiz, nem pode o magistrado ignorar os parâmetros científicos para a descoberta da verdade biológica. Assim, caso o juiz não se convença da existência do estado de filiação, com o exame do DNA deve ordenar, ex officio, com fundamento no artigo 437 do CPC, a realização de novo exame a ser realizado em outro laboratório de sua confiança.

Nesse sentido, acertada é a posição firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no REsp 397.013/MG, quando a 3ª Turma deu provimento ao recurso para anular o processo a partir da sentença. Tratava-se de ação de investigação de paternidade, ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais, em face do suposto pai da criança. O exame do DNA deu negativo e o juiz de primeiro grau julgou o pedido improcedente. Contudo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento à apelação afirmando que o exame do DNA, a despeito de negativo, não constitui tipo de prova absoluta, pois possuiu margem de erro que não pode ser desprezado. Ademais, afirmou que havia prova suficiente de relações sexuais entre a mãe e o suposto pai, à época da concepção, além da mãe possuir vida recatada, honesta e de comprovada fidelidade ao acusado. O STJ recebeu o Recurso Especial por ter considerado que houve incorreta valoração da prova, conhecendo-o por violação aos artigos 131 e 145 do CPC, aduzindo que o grau de precisão do teste não pode ser afastado por prova oral em contrário, bem como asseverando que a discussão não envolvia reexame de prova, mas à valoração da prova, isto é, do exame do DNA em relação às demais provas admitidas em direito. Para a Ministra Fátima Nancy Andrighi, de forma acertada, a decisão não privilegia a tese de que o exame de DNA constitui prova absoluta, mas que, diante da divergência, a realização de novo exame tornará possível a valoração das provas produzidas: “Se o segundo teste de DNA confirmar a conclusão do primeiro teste, as demais provas devem ser desconsideradas, e se o segundo teste de DNA contraditar o primeiro, deve o pedido ser apreciado em atenção às demais provas produzidas”.([16]) Determinou-se, então, que o novo teste fosse realizado por outro laboratório, em Belo Horizonte, com vistas a minimizar a possibilidade de erro, não apenas da técnica em si, mas também (e principalmente) em razão da falibilidade humana, ao se colher e manusear o material utilizado no exame.

Com efeito, a obtenção da certeza científica da paternidade biológica somente é possível com o exame do DNA, que é infalível, embora o seu procedimento possa não refletir a verdade genética, quando, por exemplo:([17]) a) houve suspeição, impedimento ou corrupção do perito; b) troca de tubos de sangue ou de outra parte do corpo humano (como o sêmen, a raiz do cabelo, a pele, a placenta, os ossos, a saliva, a urina, os dentes ou os músculos) fornecida para o exame; c) na não realização do exame por todos os envolvidos (na hipótese de ação de investigação de paternidade post mortem, em que os herdeiros, não o espólio, devem figurar no polo passivo da relação processual); d) na ausência de controle de qualidade do exame.

Daí a necessidade do juiz, ao invés de desprezar o laudo pericial, repetir o exame do DNA por outro laboratório idôneo, quando não se convencer que, por vícios no seu procedimento, ele não reflete a verdade genética.

3 EVITANDO A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL NAS AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE EM QUE O INVESTIGADO SE RECUSA A SUBMETER-SE AO EXAME DO DNA: SEGURANÇA JURÍDICA E DIGNIDADE HUMANA

A alternativa possível para evitar os transtornos da relativização da coisa julgada material, assentada na teoria da coisa julgada secundum eventum probationis, nas hipóteses em que o demandado se recusa a se submeter ao exame de DNA, é alterar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a condução coercitiva do investigado.

O Supremo Tribunal Federal, no HC 71.373-4/RS,([18]) entendeu não ser possível a condução coercitiva do investigado, discrepar das garantias da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução indireta das obrigações de fazer.

Percebe-se, pois, que essa decisão deu prevalência à dignidade humana do investigado que não pode ser conduzido a produzir prova contra si mesmo. Este direito está fundamentado no princípio nemo tenetur se detegere e da interpretação extensiva do artigo 5º, inciso LXIII, da CF (“O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado”); porém, o reconhecimento do direito ao silêncio do réu não deve impedir que a sua conduta no processo seja interpretada em seu desfavor, extraindo dela presunção de veracidade dos fatos alegados pelo demandante.([19])

Esta presunção, que até o advento do Novo Código Civil era meramente jurisprudencial, agora tem reforço nos artigos 231 e 232 do CC. Tal presunção não fere a garantia do devido processo legal, pois, se é verdadeiro que ninguém pode ser obrigado a declarar fatos contrários a si mesmo, já que o contrário poderia legitimar técnicas desumanas de busca da verdade (como a tortura), não se pode desconhecer que o juiz tem o dever de julgar (art. 126 do CPC), ainda que esteja em dúvida. No processo penal, a dúvida geralmente favorece ao réu (in dubio pro reo); no processo civil, impõe-se ao autor o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito (art. 333, inc. I, CPC), o que lhe acarreta um encargo maior que ao réu que pode vencer sem nada provar, bastando que o demandante não demonstre aquele fato. No entanto, o ônus da prova deve ser interpretado à luz do princípio da isonomia, não podendo servir como pretexto para impedir a realização da tutela jurisdicional dos direitos materiais. É por isto que não se pode impor ao autor provar algo que está além das suas possibilidades. Se o rigor do artigo 333, inc. I, prevalecesse, bastaria ao demandado obstruir a realização da justiça. Sendo mais fácil para o demandado provar o fato constitutivo do direito do autor, cabe à jurisprudência e ao legislador construir técnicas de inversão do ônus da prova, nas quais a formulação de presunções é uma das políticas mais eficazes. Com efeito, o comportamento do réu não pode ser desprezado pelo julgador, podendo extrair consequências prejudiciais, quando a prova do fato constitutivo é mais fácil de ser provada pelo demandado. Assim agindo, o magistrado compele o exercício do diálogo processual inerente à garantia constitucional do contraditório, vale-se do princípio do livre convencimento (art. 131 do CPC) e melhor distribuindo o ônus da prova, dentro da isonomia entre as partes, não torna impossível a realização do direito material do autor.

Além disso, a decisão do STF no HC 71.373-4/RS desconsidera a dignidade humana do investigante e o seu direito personalíssimo à origem (genética, cultural e social), impondo, pelo princípio da proporcionalidade e ou da razoabilidade, uma revisão do conflito entre os direitos fundamentais do investigante e do investigado.

Na colisão entre direitos fundamentais, da mesma forma que no conflito entre princípios, diferentemente do que ocorre com o conflito de regras (dimensão de validade), um princípio não elimina outro. A solução para a colisão de princípios, que não têm aquela pretensão de exclusividade, é resolvida com o ajuste entre ambos os lados, permitindo-se encontrar um meio-termo entre a vinculação e a não vinculação, dentro da reserva do possível.([20])

Devem ser ponderados os princípios, a fim de que se sacrifique o mínimo para preservar o máximo dos direitos fundamentais. Essa técnica de ponderação tem origem e desenvolvimento na garantia do devido processo legal, em sentido substantivo.

Tal técnica da ponderação pode ser compreendida como um processo dividido em três operações distintas:([21]) I) na primeira etapa, cabe ao intérprete perceber as normas (princípios e regras) relevantes para a solução do caso, identificando os eventuais conflitos entre elas (p. ex., na hipótese que ora nos preocupa, se a dignidade humana do investigado é mais importante que a do investigante); II) na segunda etapa, cabe analisar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e a sua interação com os elementos normativos; III) na terceira etapa, dedicada à decisão, examinam-se sistematicamente, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos analisados, apurando-se os pesos que devem ser atribuídos aos elementos em disputa, para se afirmar qual é o grupo de normas que deve prevalecer na solução do caso concreto, devendo-se ainda atribuir, se possível, o grau apropriado da intensidade das normas escolhidas na solução final.

Ao contrário do entendimento do Supremo Tribunal Federal, entende-se que a melhor solução para o conflito entre os direitos fundamentais do investigando e do investigado seria a condução coercitiva do demandado a realizar o exame do DNA, pelas seguintes razões:([22]) I) o estado de filho e o ser a ancestralidade são direitos fundamentais, personalíssimos, intangíveis, imprescritíveis e indisponíveis, que fazem parte dos princípios da cidadania e da dignidade humana;([23]) versam sobre a identidade biológica e pessoal – uma das expressões concretas do direito à verdade processual; II) o exame do DNA traz uma certeza científica de aproximadamente 100{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} sobre a paternidade e a maternidade biológicas; III) para a realização do exame genético do DNA, pode ser colhido material em várias partes do corpo humano (como o sangue, o sêmen, a raiz do cabelo, a pele, a placenta, os ossos, a saliva, a urina, os dentes ou os músculos); quando se recolhe, por exemplo, a raiz do cabelo ou a saliva, isto não representa qualquer lesão moral ou à integridade física que não possa ser relativizada com o uso da técnica de ponderação; IV) a recusa do investigado (suposto pai) em realizar o exame do DNA exclui a dignidade do investigante, legitimando, por isto, a aplicação da técnica da ponderação, para se possibilitar a condução coercitiva a fim de que se proteja a dignidade do investigante; V) o interesse da origem biológica diz respeito tanto ao indivíduo, quanto ao grupo familiar e a sociedade, com a finalidade de prevenção de doenças, tornando-se matéria de saúde pública e interesse social; VI) o investigante é a parte mais fraca da relação processual, encontrando-se em estado de necessidade in concreto; VII) no direito estrangeiro (França e Alemanha), admite-se a condução coercitiva do investigado na produção do exame do DNA, porque a sujeição da integridade física do investigado está em um plano inferior a um interesse de ordem pública.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal deu sinal de que o precedente que impediu a condução coercitiva do investigado pode ser alterado. No caso da cantora mexicana Glória Trevi,([24]) que apareceu grávida na carceragem da Polícia Federal e alegou ter sido vítima de estupro, o STF determinou que fosse coletado material biológico da placenta, com o propósito de se fazer o exame de DNA para averiguação de paternidade do nascituro, embora a extraditanda se opusesse. O STF tutelou a moralidade pública, a persecução penal pública e a segurança pública, que são bens jurídicos da comunidade, bem como o direito à honra e à imagem dos policiais federais que foram acusados de estupro, em detrimento do direito à intimidade e a preservação da identidade do pai da criança.

A alteração do precedente firmado pelo STF no HC 71.373-4/RS é a melhor solução, pois, em questão de filiação, as presunções, diferentemente do que ocorre no campo do direito patrimonial, apenas servem para que o juiz se desincumba do dever de julgar (art. 126 do CPC), criando uma espécie de ônus probatório em sentido objetivo (regra de julgamento)([25]) que está vinculado muito mais com o comportamento do demandado (o qual se recusa a fornecer o material genético) do que com a busca da verdade real.

Em matéria de filiação, mais importante que dar uma solução jurídica à dúvida criada pela ausência da prova, é investigar quem é o verdadeiro pai, uma vez que, mais que buscar uma relação de parentesco com as suas consequências jurídicas (alimentos, herança, nome e poder parental), é necessário esclarecer, com razoável grau de cientificidade, a origem genética, social e cultural do demandante, ainda que disto não resulte propriamente a declaração de paternidade, como ocorre nas situações de filiação socioafetiva consolidadas, que são irrevogáveis,([26]) como na adoção judicial,([27]) na do “filho de criação”, na fecundação artificial heteróloga, na “adoção à brasileira” ou em todo reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade.([28])

Satisfazer o direito personalíssimo do filho em saber a sua origem genética, social e cultural é tutelar adequadamente a dignidade da pessoa humana que, ao lado da justiça, são valores essenciais e, por isto, de maior importância hierárquica, em um eventual conflito entre regras ou princípios jurídicos. Trata-se, como acima foi salientado, não somente de uma necessidade psicológica e de uma forma de assegurar o respeito dos impedimentos matrimoniais, mas também um modo de preservar a vida e a saúde dos filhos e dos pais biológicos (p. ex., em casos de tratamento de doenças hereditárias, como a talassemia ou anemia falciforme e a diabetes tipo I, ou para outras enfermidades em que o conhecimento da ascendência ou da descendência biológica se faça necessário, como em um transplante de órgão).

Nesta última hipótese, quando se pretende apenas reconhecer o direito personalíssimo à origem genética, a ação declaratória (não propriamente a ação de investigação de paternidade) não implicará a declaração do estado de filiação biológica, porque irrevogável a filiação socioafetiva, não havendo qualquer possibilidade de alguém ter um pai biológico e outro afetivo.([29]) A figura do pai e a do genitor não se confundem; para ser genitor, basta fornecer o sêmen, enquanto para ser pai é indispensável muito mais: saber doar amor, afeto, carinho, participar ativamente do desenvolvimento do ser humano e isto não requer laços sanguíneos.

Portanto, apesar dos grandes avanços trazidos pelo exame do DNA para a descoberta da verdade biológica, esta jamais poderá se sobrepor à verdadeira paternidade que é a socioafetiva, porque, no contexto contemporâneo da família eudemonista,([30]) que repele a estrutura hierárquica da família tradicional, os vínculos de amor e solidariedade derivam da convivência e não do sangue.([31]) Desta forma, está se fazendo observar o artigo 3.1. da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças da ONU, de 1989, incorporada ao Direito Brasileiro, pelo qual há sempre que prevalecer o melhor interesse da criança. Ademais, o artigo 226, parágrafo 7º, da CF, ao introduzir o conceito de paternidade responsável acabou definitivamente com a supremacia da paternidade biológica sobre a socioafetiva. É, por isto, que, uma vez edificada a filiação socioafetiva considerada irrevogável, não é possível ajuizar ação de investigação de paternidade biológica nem afastar a coisa julgada, produzida em ação que declarou aquele estado de filiação.([32])

CONCLUSÃO

A evolução da ciência, com os avançados estudos genéticos e a percepção ética da afetividade revolucionou o Direito de Família. Velhas certezas se tornaram grandes interrogações. A complexidade da vida encontrou no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, em conjunto com o exame do DNA e do reconhecimento da paternidade socioafetiva, um alicerce para a atualização do direito, exigindo dos operadores jurídicos a revisitação dos conceitos tradicionais da causa de pedir, prova e coisa julgada, a fim de que o direito à filiação biológica ou socioafetiva, bem como o direito personalíssimo à origem genética, social e cultural, não ficassem privados de tutelas jurisdicionais adequadas e efetivas.

            

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[1] ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 8. ed. São Paulo/SP: RT, v. I, 2003. p. 489-490.

[2] WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo/SP: RT, 2003. p. 227.

[3] FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade. Relação biológica e afetiva. Belo Horizonte/MG: Del Rey, 1996. p. 126-127.

[4] Consulte, para maiores informações, a nota 10, abaixo.

[5] “Civil e processual civil. Segunda ação de investigação de paternidade. Causa de Pedir da primeira distinta da causa petendi da segunda. Pelo disposto nos três incisos do art. 363 do Código Civil, o filho dispõe de três fundamentos distintos e autônomos para propor a investigação de paternidade. O fato de ter sido julgada improcedente a primeira ação, que teve como causa de pedir a afirmação de que ao tempo da sua concepção a sua mãe estava concubinada com o seu pretenso pai, não lhe impede de ajuizar uma segunda demanda, com outra causa petendi, assim entendida a sua concepção, coincidiu com as relações sexuais mantidas por sua mãe com o seu pretenso pai. São dois fundamentos diferentes, duas causas de pedir distintas e a admissibilidade do processamento da segunda não importa em ofensa ao princípio da autoridade da coisa julgada” (STJ. REsp. 112.101/RS. 4ª T. rel. Min. César Asfor Rocha. j. 29.06.2000. pub. DJU 18.09.2000, p. 131).

[6] CAMBI, Eduardo. Coisa julgada secundum eventum probationis. Revista de Processo, v. 109, p. 71 e seg., jan./mar. 2003.

[7] Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “Processo civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de Família. Evolução. Recurso acolhido. I. Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes para caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II. Nos termos da orientação da Turma, ‘sempre recomendável a realização de perícia de investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza’ na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real. III. A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto na busca, sobretudo, da realização do processo justo, a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade. IV. Este Tribunal tem buscado em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum” (REsp 226.436/PR. 4ª T. rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. j. 28.06.2001).

[8] DIAS, Maria Berenice. Investigação de paternidade: prova e ausência da coisa julgada material. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 18, 1999.

[9] São pressupostos processuais: I – positivos: 1) de existência: a) jurisdição; b) citação; c) capacidade postulatória apenas para o demandante; d) petição inicial; 2) de validade: a) petição inicial apta; b) citação válida; c) capacidade processual; d) inexistência de incompetência absoluta; e) inexistência de impedimento do juiz; II – negativos: inexistência de litispendência, perempção e coisa julgada. Cfr. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 6. ed. São Paulo/SP: RT, 2002. p. 592.

[10] Entretanto, como acima foi salientado, se entre a primeira ação de investigação de paternidade cuja sentença julgou improcedente o pedido, e a mesma demanda ajuizada novamente houve o reconhecimento da paternidade socioafetiva, não é possível juridicamente o pedido, ainda que na segunda demanda se pretenda produzir o exame do DNA. O estado de filiação socioafetivo é irrevogável, faltando à segunda ação de investigação de paternidade a condição da ação (impossibilidade jurídica do pedido). O direito personalíssimo à origem (genética, social e cultural), nesta hipótese, poderá ser objeto de ação declaratória, que não é a de investigação de paternidade, porque esta demanda está voltada ao direito de família, ao reconhecimento do estado de filiação.

[11] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte/MG: Del Rey, 2003. p. 505-530.

[12] Cfr. ALMEIDA, Maria Christina de. Prova do DNA: uma evidência absoluta? Revista Brasileira de Direito de Família, v. 2, p. 143-149, jul./set. 1999. p. 148.

[13] Cfr. RASKIN, Salmo. A evolução das perícias médicas na investigação de paternidade: dos redemoinhos do cabelo ao DNA. Direito de família: a família na travessia do milênio. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 2, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 188.

[14] Cfr. STEIN, Friedrich. El conocimiento privado del juez. Traducción Andrés de La Oliva Santos. Madrid: Editorial Centro Estudios Ramón Areces, 1990. p. 75.

[15] Cfr. COUTURE, Eduardo. Garantías constitucionales del proceso civil. Estudios de derecho procesal civil. La Constitución y el proceso civil. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, t. I, 1978. p. 42.

[16] O acórdão foi assim ementado: “Direito civil. Recurso especial. Ação de investigação de paternidade. Exame pericial (teste de DNA) em confronto com as demais provas produzidas. Conversão do julgamento em diligência. Diante do grau de precisão alcançado pelos métodos científicos da investigação de paternidade, com fulcro na análise do DNA, a valoração da prova pericial com os demais meios de provas admitidos em direito deve observar os seguintes critérios: (a) se o exame de DNA contradiz as demais provas produzidas, não se deve afastar a conclusão do laudo, mas converter o julgamento em diligência, a fim de que novo teste de DNA seja produzido, em laboratório diverso, com o fito de minimizar a possibilidade de erro resultante que seja da técnica em si, seja da falibilidade humana na coleta e manuseio do material necessário ao exame; (b) se o segundo teste de DNA corroborar a conclusão do primeiro, devem ser afastadas as demais provas produzidas, a fim de se acolher a direção indiciada nos laudos periciais; e (c) se o segundo teste de DNA contradiz o primeiro laudo, deve ser apreciado em atenção às demais provas produzidas” (STJ. REsp 397.013/MG. 3ª T. rel. Min. Min. Fátima Nancy Andrighi. j. 11.11.2003. pub. DJU 09.12.2003, p. 279).

[17] Cfr. WELTER, Belmiro Pedro. Relativização do princípio da coisa julgada na investigação de paternidade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte/MG: Del Rey, 2003. p. 86.

[18] “Investigação de paternidade. Exame de DNA. Condução do réu ‘debaixo de vara’. Discrep, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta da obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido do réu ser conduzido ao laboratório ‘debaixo de vara’, para coleta do material indispensável à feitura do exame de DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas às provas dos fatos” (rel. Min. Marco Aurélio. j. 10.11.1994. pub. DJU 22.11.1996).

[19] O direito ao silêncio, assegurado no artigo 5º, inc. LXIII, da CF, assumiu a forma do direito a não incriminação, não sendo aplicado somente aos presos, mas a qualquer pessoa (testemunha, indiciado ou réu) que deva prestar depoimento perante os órgãos do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “O privilégio contra a autoincriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário – O exercício de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa” (HC 79.812/SP. rel. Min. Celso de Mello. pub. DJU 12.02.2001). Conforme salientaremos a seguir, discordamos da segunda parte deste acórdão, pelo qual o Judiciário, a rigor, ficaria impossibilitado de extrair qualquer consequência negativa do comportamento do réu. Afinal, se prevalecesse esta proteção integral ao direito ao silêncio, ficaria sem eficácia jurídica as regras previstas nos artigos 231 e 232 do Novo Código Civil. Em sentido contrário, defende a impossibilidade de se retirar efeitos contrários ao acusado, com base na integralidade do direito ao silêncio: cfr. DOTTI, René Ariel. O exame de DNA e as garantias do acusado. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro/RJ: Forense, 2000. p. 274-275.

[20] Cfr. CAMBI, Eduardo. Jurisdição no processo civil. Compreensão crítica. Curitiba/PR: Juruá, 2002. p. 110.

[21] Cfr. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Interesse público, v. 19, p. 62-63.

[22] Cfr. WELTER, 2003, op. cit., p. 121 e seg.; MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame do DNA na investigação de paternidade e direitos da personalidade. In: BARRETO, Vicente (Coord.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro/RJ: Renovar, 1997.

[23] Como assevera o Min. Eros Roberto Grau, a dignidade humana constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição. 2. ed. São Paulo/SP: RT, 1991. p. 216). Verificar, ainda, dentre outros: SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2001; SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo, v. 212, p. 89-94; ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade humana e a exclusão social. Revista Interesse Público, v. 4, p. 23-48; MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolgang (Coord.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2003. p. 105-147; BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro/RJ: Renovar, 2002.

[24] “Reclamação. Reclamante submetida ao processo de Extradição nº 783, à disposição do STF. 2. Coleta de material biológico da placenta, com propósito de se fazer exame de DNA para averiguação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. 3. Invocação dos incisos X e XLIX do art. 5º da CF/1988. 4. Ofício do Secretário de Saúde do DF sobre comunicação do Juiz Federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do DF ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte – HRAN, autorizando a coleta e entrega de placenta para fins de exame de DNA e fornecimento de cópia do prontuário médico da parturiente. 5. Extraditanda à disposição desta Corte, nos termos da Lei nº 6.815/1980. Competência do STF para processar e julgar eventual pedido de autorização de coleta e exame de material genético para os fins pretendidos pela Polícia Federal. 6. Decisão do Juiz Federal da 10ª Vara do Distrito Federal, no ponto em que autoriza a entrega da placenta, para fins de realização de exame de DNA, suspensa em parte, na liminar concedida na Reclamação. Mantida a determinação ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte, quanto à realização da coleta da placenta do filho da extraditanda. Suspenso também o despacho do Juiz Federal da 10ª Vara, na parte relativa ao fornecimento de cópia integral do prontuário médico da parturiente. 7. Bens jurídicos constitucionais como “moralidade administrativa”, “persecução penal pública” e “segurança pública” que se acrescem – como bens da comunidade, na expressão de Canotilho – ao direito fundamental à honra (CF, art. 5º, X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federais acusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direito à imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho. 8. Pedido conhecido como reclamação e julgado procedente para avocar o julgamento do pleito do Ministério Público Federal, feito perante o Juízo Federal da 10ª Vara do Distrito Federal. 9. Mérito do pedido do Ministério Público Federal julgado, desde logo, e deferido em parte, para autorizar a realização do exame de DNA do filho da reclamante, com a utilização da placenta recolhida, sendo, entretanto, indeferida a súplica de entrega à Polícia Federal do “prontuário médico” da reclamante” (STF. RCL 2.040/DF. Tribunal Pleno. rel. Min. Néri da Silveira. j. 21.02.2002. pub. DJU 27.06.2003, p. 31).

[25] Cfr. CAMBI, Eduardo. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo/SP: RT, 2001. p. 40-41.

[26] O artigo 1.604 do CC afirma, a este propósito: “Ninguém poderá vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. A filiação socioafetiva tem sido cada vez mais privilegiada na jurisprudência brasileira, a exemplo do interessante julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: TJ/PR: “2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva decorrente da denominada ‘adoção à brasileira’ (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há que prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ‘adoção à brasileira’, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado” (Ap. Cív. 108.417-9. 2ª C. C. rel. Des. Accácio Cambi. j. 12.12.2001).

[27] Nesse sentido, já decidiu o STJ: “Adoção. Investigação de paternidade. Possibilidade. Admitir-se o reconhecimento do vínculo biológico de paternidade não envolve qualquer desconsideração ao disposto no artigo 48 da Lei 8.069/1990. A adoção subsiste inalterada. A lei determina o desaparecimento dos vínculos jurídicos com pais e parentes, mas, evidentemente, persistem os naturais, daí a ressalva quanto aos impedimentos matrimoniais. Possibilidade de existir, ainda, respeitável necessidade psicológica de se conhecer os verdadeiros pais. Inexistência, em nosso direito, de norma proibitiva, prevalecendo o disposto no artigo 27 do ECA” (REsp nº 127.541/RS. 3ª T. rel. Min. Eduardo Ribeiro. j. 10.04.2000. pub. RSTJ, vol. 139, p. 241-251). A única crítica que deve ser feita a este precedente é ao fato de ter-se admitido a ação de investigação de paternidade para se tutelar o direito personalíssimo à origem. Tal ação não se presta a este fim, porquanto, irrevogável o estado de filiação socioafetivo, falta a condição da ação (possibilidade jurídica do pedido). Para se tutelar o direito personalíssimo, o autor deve se valer de ação declaratória, sem o rótulo da “investigação de paternidade”. O mesmo raciocínio deve ser aplicado em relação ao homem que forneceu o material genético para a fecundação artificial heteróloga. Ainda que se deva preservar o direito do fornecedor de sêmen ao anonimato, parece-nos que, dependendo do caso concreto, é possível advogar a superioridade do direito do indivíduo concebido em saber a sua origem genética (p. ex., para elucidar uma doença hereditária). Neste caso, o direito personalíssimo, que nada tem a ver com o estado de filiação, poderá ser objeto de ação declaratória, que também não será rotulada de investigação de paternidade, uma vez que a tutela do direito à origem genética não implicará o reconhecimento da relação de parentesco, não podendo o demandante pedir, por exemplo, alimentos ou direitos sucessórios.

[28] O artigo 1.609 do CC não se aplica exclusivamente à filiação biológica, mas também à socioafetiva, já que ambas foram equiparadas pela Constituição (art. 227, parágrafo 6º): “O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I – no registro civil; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento, ainda que incidentemente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes”. Este artigo, ainda, deve ser complementado com a regra contida no artigo 2º da Lei 8.560/1992, que prevê o reconhecimento mediante a averiguação inoficiosa de paternidade, para que o suposto pai compareça em juízo para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída pela mãe da criança. No projeto de revisão do Novo Código Civil, o Deputado Ricardo Fiuza incluiu dois parágrafos ao artigo 1.609, para contemplar as situações previstas no artigo 2º da Lei 8.560/1992.

[29] Interessante, contudo, notar a possibilidade de existir duas mães ou dois pais socioafetivos. Isto é admissível quando, por exemplo, se reconhece a adoção por um casal de homossexuais, ou quando um dos parceiros se submete a uma fecundação heteróloga. Nesse sentido, salienta Maria Berenice Dias: “A maior visibilidade e a melhor aceitabilidade das famílias homoafetivas tornam impositivo o estabelecimento do vínculo jurídico paterno-filial com ambos os genitores, ainda que sejam dois pais ou duas mães. Vetar a possibilidade de juridicizar a realidade só traz prejuízo ao filho, que não terá qualquer direito com relação a quem exerce o poder familiar, isto é, desempenha a função de pai ou de mãe. Presentes todos os requisitos para o reconhecimento da filiação socioafetiva, negar sua presença é deixar a realidade ser encoberta pelo véu do preconceito” (DIAS, op. cit., p. 395).

[30] Privilegiar a concepção eudemonista de família implica reconhecê-la como instrumento para a realização do ser humano, pois, é principalmente dentro do grupo familiar, que os eventos da vida individual que parecem pertencer à natureza, recebem o seu significado, e através desse significado passam a fazer parte da experiência individual da pessoa como o nascer, o morrer, o crescer, o envelhecer, a sexualidade, a procriação. Por isto, tutelar juridicamente a família é, antes, tutelar juridicamente o ser humano, pois é pela proteção à família, enquanto organismo social, que o Estado deve proteger a pessoa humana, dando-lhe dignidade e possibilitando o pleno desenvolvimento de suas virtudes. Assim, a pessoa passa a ter valor pelo que ela é, como ser (individual), não como um dado normativo ou sujeito de direitos a ser subordinado ou oprimido pelo grupo social. Com efeito, o principal papel da família contemporânea é dar suporte emocional à pessoa humana, promovendo-lhe o seu desenvolvimento e realizando seus interesses afetivos e existenciais. Cfr., entre outros: OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de direito de família. 3. ed. Curitiba/PR: Juruá, 1999. p. 11-13.

[31] “O avanço da técnica médica, presta relevantes serviços aos fins do Direito de Família. Sem embargo, a plena possibilidade de atestar a verdade biológica, em percentuais elevados de confirmação da paternidade pela via do exame do DNA, traduz consigo mesma um paradoxo: a verdade biológica pode não expressar a verdadeira paternidade. Cogita-se, então, da verdade socioafetiva, sem exclusão da dimensão biológica da filiação” (FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos de direito de família. Rio de Janeiro/RJ: Renovar, 1999. p. 236-237).

[32] Cfr. WELTER, Belmiro Pedro. Coisa julgada na investigação de paternidade. 2. ed. Porto Alegre/RS: Síntese, 2002. p. 139-140.

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