PROCESSO ARBITRAL: INÍCIO, MEIO E FIM
Thiago Marinho Nunes
Um dos temas mais instigantes na seara do direito processual, diz respeito às peculiaridades do processo arbitral. Mas se se está aqui a falar de processo puramente dito, por que dar algum destaque ao processo arbitral? Existe, realmente, alguma diferença entre o processo arbitral e o processo judicial?
Arbitragem, como se sabe, é processo. Em verdade, a arbitragem possui um sistema estrutural bastante semelhante ao do processo civil, com a diferença de que quem julgará o litígio serão árbitros indicados pelas partes, os quais, assim como o juiz estatal, devem ser imparciais e independentes. Processo civil e arbitragem constituem, assim, “instrumentos heterônimos de solução de conflitos“, gerando inquestionável “paralelismo” na visão de Donaldo Armelin [1]–[2].
É nesse contexto que Carnelutti, ao ver a arbitragem como um dos equivalentes do processo civil contencioso de cognição, lecionava:
“[A] meu aviso, com a arbitragem já estamos no terreno do processo, onde não creio que – diferentemente da transação e do processo estrangeiro – seja no caso de compreendê-la entre os equivalentes processuais. A razão está em que, à diferença do processo estrangeiro, o processo arbitral é regulado pelo nosso ordenamento jurídico não apenas no sentido de controle dos requisitos da sentença arbitral e dos seus pressupostos, mas também e acima disto, pela ingerência do Estado no desenvolvimento do próprio processo“.[3]
A processualidade da arbitragem advém de duas características fundamentais: primeiramente, de sua jurisdicionalidade[4] e, em segundo lugar, da aplicabilidade, a toda arbitragem, dos princípios fundamentais do processo[5].
O caráter processual é um elemento inerente ao instituto da arbitragem, dado que esta visa a uma prestação. Ou seja, aquele que se sente lesado em um contrato, no qual resta inserida uma cláusula compromissória, possui um direito subjetivo a uma prestação. Possui uma pretensão arbitral.
Tal pretensão arbitral, idêntica em essência àquela travada no âmbito do processo judicial, possui uma peculiaridade: ela se sujeita à um processo que possui início, meio e fim. O mais importante em relação a esse ponto é o fim. A decisão final, revestida pela sentença arbitral, resolve, em caráter definitivo, a lide entre as partes. O referido caráter peremptório pode explicado de forma simples: a sentença arbitral não comporta recurso, ou mesmo rediscussão[6]. O mérito da demanda, insculpido na sentença, é intangível[7].
Tal ponto, considerado elementar na arbitragem, poderia ser uma desvantagem do referido instituto? Certamente a resposta é negativa. A tão aclamada celeridade do processo arbitral advém, justamente, dessa característica estrutural, a qual se destaca por se concentrar em três etapas: início, meio e fim.
Diferentemente do processo judicial, que se encerra quando do trânsito em julgado da última decisão que julgar o mérito da demanda (o que pode levar anos, a depender da quantidade de recursos ofertados às instâncias superiores), o processo arbitral tem o seu fim com a sentença arbitral final, a qual obtém o seu trânsito em julgado de forma imediata[8].
O caráter definitivo da sentença arbitral é certamente um elemento que deve ser considerado pelas partes ao eleger a arbitragem como método de resolução de disputas em suas avenças. As partes são responsáveis pelas melhores estratégias a serem adotadas em seus negócios, tanto aquelas de caráter comercial como as de natureza processual (i.e., escolha da cláusula de arbitragem). Escolher a arbitragem para resolver disputas tem inevitáveis consequências, dentre elas: (i) o imediato afastamento da competência do juízo estatal para a apreciação do mérito da demanda (efeito negativo da convenção de arbitragem[9]); (ii) a remessa do caso à jurisdição arbitral, a quem compete o processamento e resolução da disputa (efeito positivo da convenção de arbitragem[10]); e, (iii) diretamente relacionada à esse efeito positivo, o caráter definitivo da decisão que julgar o mérito da causa.
O risco inerente à escolha de um processo que gera uma decisão irrecorrível deve compor a matriz de risco das partes na escolha do método de resolução de disputas. Isso porque pouco ou nada ajuda as partes, insatisfeitas com o resultado de determinado processo arbitral recorrerem ao Poder Judiciário por meio da ação anulatória prevista no art. 32 da Lei de Arbitragem. Tal ação não é um recurso e não tem condão de rever o mérito da sentença arbitral, o qual, por força legal, é intangível.
Nesse sentido, a propositura de ações com o fito de rever o mérito da sentença arbitral, não apenas defronta-se com a alta probabilidade do julgamento de improcedência da demanda (o que, aliás, já foi comprovado por uma série de análises quantitativas realizadas no Brasil[11]), mas, também, o elevado risco da condenação da parte perdedora nos ônus sucumbenciais, os quais variam entre 10 e 20 por cento do valor da causa[12], sendo tais verbas percentuais consideradas taxativas pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”[13]). Em verdade, esse tipo de conduta nutre a perniciosa instabilidade criada pelo chamado “mal perdedor”, para quem ganhar ou perder uma ação anulatória pouco importa, visto que o objetivo de sua propositura muitas vezes é apenas a protelar o cumprimento da sentença[14].
Em suma: não visam os presentes linhas demonstrar que o processo arbitral, apenas, possui início, meio e fim. Mas é justamente ressaltar que, em razão dessa característica, em especial o seu fim, que as partes devem ter o absoluto cuidado na escolha do método de resolução de disputas em seus negócios. Deve-se atentar que, se escolhida a arbitragem, serve esta para resolver eventual imbróglio entre as partes e não fazer com que uma lide se eternize por meio de inventadas e infundadas ações anulatórias. Saber redigir uma cláusula arbitral completa, escolher estratégica e cuidadosamente os membros do tribunal arbitral, participar de forma ativa e coerente durante o procedimento, expor o seu caso com a devida minúcia, produzir provas capazes de suportar seus pleitos e aceitar a decisão final que advier, são elementos que devem estar na mente daquele que, conscientemente, escolhe a arbitragem como método de resolução de seus litígios.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/385265/processo-arbitral-inicio-meio-e-fim
[1] Nesse sentido, afirma Donaldo Armelin: “[…] apresenta, no seu conjunto, estrutura semelhante a do processo civil, até porque ambos são instrumentos heterônimos de solução de conflitos, nos quais emerge a existência de terceiro desinteressado ao qual se atribui autoridade suficiente para o deslinde do litígio” (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, nº 15, p. 69, out.-dez. 2007).
[2] O paralelismo dos efeitos das vias judicial e arbitral é assim explicado por Donaldo Armelin: “[…] até porque a via arbitral serve, assim como o processo civil, de veículo legal e constitucional para o acesso à Justiça, observando os mesmos princípios garantidores do devido processo legal guardadas as peculiaridades desses dois institutos” (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, nº 15, p. 79, out.-dez. 2007).
[3] CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Pádua: Cedam, 1936. v. 1, p. 179, citado por: CARMONA, Carlos Alberto. A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 19.
[4] A esse respeito, a lição de Eduardo Damião Gonçalves: “Nota-se que a arbitragem preenche todos os elementos que caracterizam a jurisdição. Nesse caso, a função dos agentes adequados – os árbitros – é exercida não diretamente pelo Estado, mas por vontade das partes. Mas a arbitragem também tem em si um fundamento legal, na medida em que a possibilidade de as partes submeterem-se à arbitragem deriva de uma decisão do Estado manifestada por um texto legislativo que autoriza as partes a recorrerem à arbitragem para a solução da lide embora não seja apropriado dizer que se trata de uma delegação estatal” (Arbitrabilidade objetiva. 2008. Tese (Doutoramento) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 24)
[5] Bruno Oppetit, ao ponderar sobre as diferenças da justiça estatal e justiça arbitral, lembrando que o ideal de justiça de ambas as jurisdições é o mesmo, com peculiares diferenças, ressalva que os princípios do contraditório, da igualdade das partes e da ampla defesa estão sempre presentes, em qualquer litígio, sob pena de não existir um processo justo, íntegro. Nesse sentido, dizia: “Il ne saurait en effet exister de procès équitable sans que soient scrupuleusement respectés le principe d’égalité entre les parties, le principe de la contradiction et celui, proche mais distinct, de la protection de la défense, ainsi que la nécessité d’un débat loyal, et ces exigences, quelles qu’en soient les modalités qui les traduisent, se manifestent à tous les stades de la procédure” (Justice étatique et justice arbitrale. Études offertes à Pierre Bellet. Paris: Litec, 1991. p. 422).
[6] Ver, nesse sentido, o disposto no art. 18 da Lei de Arbitragem: “O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”.
[7] O que se entende, aliás, ser, a verdadeira essência da arbitragem (NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 53.
[8] Segundo Ricardo de Carvalho Aprigliano: “[A] natureza processual da arbitragem se extrai não apenas da presença de julgadores estranhos ao litígio e equidistantes em relação às partes, mas também do objetivo final de obtenção de uma decisão que aplique o direito ao caso concreto, proferida mediante sentença, à qual se atribuem os mesmos efeitos da sentença judicial. E porque esta sentença, em particular, não está sujeita à homologação ou revisão quanto ao mérito, daí resulta que ao ser proferida, ou quando muito após a decisão sobre os pedidos de esclarecimentos, a sentença arbitral transita imediatamente em julgado, produzindo efeitos de forma imediata”. (Nomas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 55).
[9] Segundo Fouchard, Gaillard e Goldman, para que seja assegurado o respeito ao cumprimento da convenção de arbitragem, é necessário que ao efeito positivo, que impõe às partes a atribuição aos árbitros de todos os litígios cobertos pela convenção de arbitragem, corresponda também um efeito negativo, o qual proíbe as jurisdições estatais de se manifestarem sobre qualquer litígio, objeto da convenção de arbitragem (FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l’arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 416).
[10] A atribuição aos árbitros de jurisdição, em razão do efeito positivo da convenção de arbitragem, já era justificada por Roque Caivano da seguinte forma: “[…] atribuir jurisdicción a los árbitros, quienes obtienen de ella las facultades necesarias para intervenir en el litigio; y es por ello que la clausula compromisoria determina la medida de las facultades de los arbitros” (Arbitraje: su eficácia como sistema alternativo de resolución de conflictos. Buenos Aires: Ad Hoc, 1993. p. 116
[11] Ver, a esse respeito: Pesquisa CBAr-ABEArb 2016 « CBAr – Comitê Brasileiro de Arbitragem. Acesso em 21 abr. 2023.
[12] Art. 85, § 2º do Código de Processo Civil: “Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos (…)”.
[13] Ver, a esse respeito: STJ, Corte Especial, Recurso Especial n. 1.850.512-SP, Rel. Min. Og Fernandes, j. 16 de março de 2022, DJE de 31 de maio de 2022.
[14] A esse respeito, pertinente a crítica tecida por Ricardo de Carvalho Aprigliano no que concerne às ações que visam anular sentenças arbitrais por eventual ausência de revelação do árbitro de determinado fato: “É preciso ter clareza quanto a dois aspectos, que, a um só tempo, representam as especificidades do processo arbitral e também demonstram a necessidade de interpretá-lo à luz dos conceitos e parâmetros processuais da teoria geral do processo. O primeiro aspecto é que a violação ao dever de revelação não é caraterizada, na Lei de Arbitragem, como causa única e exclusiva para a anulação de sentenças arbitrais. Não obstante ser claramente um dever dos árbitros, a sua violação não gera, ipso facto, alguma consequência direta. Será preciso sempre verificar se, da não revelação de algum fato, houve impactos na imparcialidade e independência do árbitro que violou o dever de revelar. É muito perigosa a tendência que se observa de criar uma associação automática entre tais figuras, porque o argumento passa a ser uma espécie de “bala de prata”, que todo litigante perdedor tentará se valer, para impugnar decisões arbitrais. Para certas finalidades estratégicas, ganhar ou perder a ação anulatória é o que menos importa, porque a instabilidade se fará presente, ao menos durante os longos anos de tramitação desta demanda”. (Nomas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 222).