PRINCÍPIOS APLICÁVEIS AO REGISTRO DE IMÓVEIS
Guilherme Jakymiu Furtado
O Registro de Imóveis tem por objeto a publicidade da propriedade de bens imóveis e de outros direitos reais imobiliários. Trata-se de um serviço público, mas exercido em caráter privado por um particular delegado, que visa a proteção dos titulares dos direitos reais e, também, a garantia do tráfico jurídico dos bens imóveis no País.
Pelos registros efetuados na matrícula de um imóvel, tornam-se públicos os direitos reais a ele incidentes e, dessa forma, ficam assegurados sua validade e eficácia perante terceiros.
Esse sistema que publicita a titularidade de um imóvel, bem como a existência de ônus e gravames sobre ele, é orientado e desenvolvido por princípios registrais: normas jurídicas que decorrem direta ou indiretamente do sistema normativo registral, mormente da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos – LRP), que permitem a compreensão, interpretação e aplicação lógica do direito registral imobiliário.
Adiante, em uma análise técnico jurídica bastante resumida e destinada aos operadores do Direito, serão listados os princípios típicos do Registro de Imóveis, ainda que alguns deles também sejam aplicáveis aos demais serviços de registros públicos previstos na Lei de Registros Públicos.
1. Princípio da obrigatoriedade do registro, ou da inscrição
Os direitos reais relativos a imóveis apenas se efetivam com o registro do título específico. O registro do título de aquisição do direito real imobiliário no competente Ofício de Registro de Imóveis é, portanto, obrigatório (sistema de título e modo, art. 1.245 CC).
Sem o registro, o detentor de um título que lhe concede a propriedade ou outro direito real sobre um imóvel, será considerado apenas um titular de um direito pessoal.
Sanção: inexiste sanção propriamente dita pelo descumprimento da obrigação do registro, revelando-se, apenas, pela não aquisição do direito pretendido com a celebração do negócio;
Prazo: a lei não impõe prazo para que o interessado apresente a escritura pública (ou instrumento particular) a registro. No entanto, o registro deve ser providenciado o quanto antes, para que o adquirente não corra o risco de ver perecer ou diminuir o direito que visava adquirir;
Momento da eficácia: Dispõe o art. 1.246 do CC que o registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.
Morte e incapacidade antes do registro
A morte ou incapacidade do alienante do imóvel no lapso temporal entre a lavratura da escritura e sua apresentação do Registro de Imóveis não impede o registro, pois o acordo de transmissão já vinculou as partes por si e por seus herdeiros. A escritura já contém uma declaração de vontade do alienante, que consente com o registro do título. É o entendimento dominante da jurisprudência, inclusive do STF.
2. Princípio da rogação ou instância
A atividade registral depende de provocação. Os atos do registro somente serão praticados mediante ordem judicial, requerimento do MP (quando a lei autorizar) ou requerimento verbal ou escrito do interessado.
Nos casos de averbação e cancelamento, exige-se requerimento por escrito do interessado;
Existem exceções ao princípio da rogação ou instância em que o Oficial poderá agir de ofício. São as hipóteses de retificação ou averbação de registro previstas no art. 213, I da LRP (ex. omissão ou erro cometido na transposição de qualquer elemento do título, entre outras).
Protocolo ou prenotação
O protocolo, ou prenotação, é o ato pelo qual se recebe um título para registro. Todo título apresentado no Registro de Imóveis deverá ser protocolado, recebendo um número de ordem que determinará a prioridade do título na obtenção do registro.
Recusa: não se pode recusar o recebimento e protocolo de um título, ainda que constatado exigência de natureza fiscal ou existência de vícios visíveis a um primeiro exame (ex. falta de outorga uxória para a alienação do imóvel). Deverá o registrador proceder ao protocolo e, posteriormente, fazer as exigências cabíveis.
Prazo do protocolo: com a alteração dada pela Lei nº 14.382/22, em regra, o protocolo produz efeitos por 20 dias, salvo prazo diverso previsto em lei. Nesse prazo deverão ser cumpridas as exigências do registrador – sob pena de cessar o direito de prioridade, decorrente do protocolo – e realizado o registro. Os efeitos do protocolo serão prorrogados no caso de suscitação de dúvida, até que ela seja julgada.
Exceção à obrigatoriedade do protocolo é a apresentação do título apenas para exame e cálculo dos emolumentos (art. 12 da LRP).
3. Princípio da legalidade
Os documentos submetidos ao registro devem reunir os requisitos exigidos pelas normas legais para que possam aceder à publicidade registral. Para que possam ser registrados, os títulos devem ser submetidos a um exame de qualificação, no qual o registrador faz o controle de legalidade do título.
No Brasil, o registro não tem o condão de revalidar ou sanar os vícios do negócio jurídico. A validade do registro dependerá da validade do negócio jurídico que lhe dá suporte.
3.1 Qualificação
O exame ou análise que o registrador realiza para tornar efetivo o princípio da legalidade é denominado “qualificação”. Essa função do registrador é chamada de “função qualificadora”.
3.1.1 Limites
Qualquer que seja a natureza do título (escritura pública, instrumento particular, título judicial ou administrativo) está sujeito à qualificação registral. Os limites do exame, contudo, variam de acordo com a natureza do título em análise.
Concepção limitada ou ampla?
Existe controvérsia na doutrina acerca dos limites impostos ao registrador na realização de sua função qualificadora.
Concepção limitada ou estrita: o exame deve se limitar à análise da legalidade das formas extrínsecas do documento. Por forma extrínseca devem ser entendidas as solenidades previstas na lei para a formação dos documentos submetidos a registro (ex. emissão do DOI à Receita Federal na escritura pública, recolhimento de tributos, etc.).
Concepção ampla: a função qualificadora engloba a análise também do conteúdo do título, ou seja, da validade do ato ou negócio jurídico documentado, podendo o Oficial vedar o acesso à publicidade registral de documentos notariais e particulares que contiverem atos ou negócios jurídicos nulos, cuja nulidade seja absoluta e manifesta, perceptível do exame visual do próprio título.
Nulidades relativas e absolutas
Existem duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais quanto aos limites do exame de qualificação registral no atinente às nulidades. Uma que entende que o registrador deve ater-se às nulidades de pleno direito (absolutas) e outra que defende também seja examinado as anulabilidades (nulidades relativas).
Prevalece o entendimento de que as anulabilidades não devem impedir o registro, ainda que os vícios sejam visíveis e patentes (ex. ausência da outorga uxória na venda de imóvel feita por pessoa casada sob regime da comunhão). Isso porque as anulabilidades são destituídas de interesse público e somente podem ser invocadas pelos interessados. A ausência de impugnação do negócio jurídico no prazo previsto em lei acarreta o convalescimento do ato.
O negócio eivado de vício relativo, enquanto não anulado judicialmente, será válido e produzirá todos os seus efeitos (art. 177, CC). Como a função registral é regida pela legalidade estrita, os títulos válidos e eficazes podem ter acesso à publicidade registral.
Títulos judiciais e administrativos
Nessa hipótese, o exame de qualificação deve se limitar aos requisitos formais, aspectos extrínsecos dos títulos; é, portanto, um exame mais limitado.
Títulos administrativos: o ato administrativo tem presunção de legitimidade, não podendo ser questionado em sede administrativa de qualificação registraria. Ex. não pode o Oficial negar a averbação do desdobro em lote com área urbana inferior a 125 m2, sob o fundamento que a lei municipal autorizadora é ilegítima.
Títulos judiciais: o registrador desempenha atividade administrativa. Não pode, portanto, examinar questões que competem à autoridade jurisdicional, sob pena de invasão de competência. O registrador não tem poder jurisdicional.
Inconstitucionalidade de lei ou ato
A orientação jurisprudencial dominante é de que “o controle de constitucionalidade da lei ou dos atos administrativos é da competência exclusiva do poder judiciário”.
LOUREIRO defende que é possível deixar de aplicar norma legal inferior, desde que sua inconstitucionalidade seja escancarada ou manifesta, como no caso da lei municipal que determina o recolhimento do ITBI nos casos de compromisso de compra e venda.
4. Princípio da prioridade
O título apresentado em primeiro lugar tem prioridade no registro em relação aos títulos referentes ao mesmo imóvel, protocolados posteriormente. Lhe será, portanto, assegurado preferência na aquisição do direito real respectivo.
Art. 186, LRP – O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente.
Por isso não se pode recusar o protocolo de um título, ainda que se verifique a existência de exigência fiscal ou dúvida (art. 12, LRP).
Exceção ao princípio
Quando for protocolada escritura de hipoteca que mencione a constituição de hipoteca anterior ainda não registrada, o registrador deverá suspender o registro pelo prazo de 30 dias, a fim de possibilitar que o interessado promova a inscrição da garantia precedente (art. 1.495 do CC).
Tipos de prioridade
Prioridade excludente: os títulos trazem direitos incompatíveis entre si. Ex. escrituras de compra e venda do mesmo imóvel a dois adquirentes diferentes. Neste caso, o documento com prioridade será registrado e impedirá o acesso do outro ao fólio real.
Prioridade não excludente ou de grau: os documentos instrumentalizam direitos compatíveis entre si. Ex. duas ou mais hipotecas sobre o mesmo imóvel em favor de credores diversos. Neste caso, ambos os documentos serão inscritos, mas o que ingressa em primeiro lugar terá prioridade quanto ao grau ou posição daquele apresentado a registro posteriormente.
5. Princípio da especialidade
Todo imóvel que seja objeto de registro deve estar perfeitamente individualizado, para que seja inconfundível e distinto de qualquer outro (especialidade objetiva).
Confrontantes: as confrontações, que abrangem os limites e os nomes dos confrontantes, são os elementos que melhor identificam o imóvel. A descrição geométrica do imóvel não é suficiente para a observância do princípio da especialidade, devendo haver uma amarração geográfica, que marque a posição do imóvel no espaço.
Descrição no título: a descrição do imóvel feita no título (escritura) deve coincidir com aquela que consta no registro, sob pena de não ser registrado. Todavia, se a descrição for apenas imperfeita, não pode o registrador negar o registro do título sob fundamento que não foi observado o princípio da especialidade. Nesse sentido, o § 15º do art. 176 da LRP, acrescido por ocasião da Lei nº 14.382/22, inovou:
Ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, a critério do oficial, e que constem os dados do registro anterior, a matrícula poderá ser aberta (…)
Direito real de garantia: se a inscrição for de direito real de garantia (alienação fiduciária, hipoteca, anticrese e penhor), não só o imóvel, mas também a dívida garantida deve estar especificada, com o valor total em moeda nacional, prestações e taxa de juros, se houver.
O princípio da especialidade também tem a vertente subjetiva, que exige a identificação e qualificação das pessoas nomeadas na matrícula e nos títulos levados a registro.
6. Princípio da continuidade
Os registros devem ser perfeitamente encadeados, de forma que não haja vazios ou interrupções na corrente registraria. Só se fará o registro ou averbação de um direto se o outorgante dele figurar no registro como seu titular.
Art. 195, LRP – Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.
Art. 236, LRP – Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir esteja matriculado.
Art. 237, LRP – Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.
Especialidade e continuidade
O princípio da especialidade tem relação direta com a continuidade, pois além de conferir segurança jurídica ao negócio, assegura a continuidade dos registros.
Para que seja observado o encadeamento registral, a descrição constante do título deve coincidir com aquela constante da matrícula ou do registro anterior, assim como, o nome do titular e sua qualificação, devem coincidir no registro e no título.
Estado civil: se no registro constar que o proprietário do imóvel é casado e na escritura de compra e venda em que figure como vendedor constar seu estado civil como divorciado, deve ser providenciada a averbação do divórcio, bem como do esclarecimento da realização de eventual partilha antes do registro do título.
Trato sucessivo
O trato sucessivo é um mecanismo técnico que tem por objeto manter o enlace ou a conexão dos registros, mediante a ordem regular dos sucessivos titulares registrais de modo a garantir uma continuidade perfeita dos assentos em relação ao tempo, sem nenhum salto.
Promessa de venda: a ausência de registro da promessa de venda não ofende o princípio da continuidade, uma vez que na matrícula constará como proprietário do imóvel o outorgante da escritura definitiva de compra e venda. Não haverá lapso na cadeia de domínios.
Herdeiro vende antes da partilha: A é proprietário do imóvel e vem a falecer. Por sucessão, o imóvel é transmitido a B, que o vende para C. O comprador não poderá registrar o seu título caso não tenha sido registrado o formal de partilha, ou escritura de inventário e partilha, no qual o imóvel tenha sido atribuído ao herdeiro B.
7. Princípio da parcelaridade ou cindibilidade do título
O título pode ser cindido, isto é, o registrador pode aproveitar ou extrair certos elementos nele insertos que poderão ingressar de imediato no fólio real, desconsiderando outros que, para tanto, exijam outras providências.
Poderá o registrador, por exemplo, a requerimento do interessado, averbar mandado de penhora de imóvel no qual conste a existência de construção não averbada na matrícula respectiva.
8. Princípio da presunção de veracidade ou legitimidade
O registro presume-se verdadeiro e legítimo até prova em contrário. Havendo algum vício no registro ou no título que lhe deu origem, caberá ao interessado mover a ação judicial competente para anular o assento, sendo seu o ônus de prová-lo.
Enquanto não declarada a nulidade do título ou o cancelamento do registro, a inscrição produzirá todos os efeitos que lhe são inerentes.
Terceiro de boa fé
A fé pública não é absoluta, de modo que os interesses do terceiro de boa-fé nas operações imobiliárias não prevalecerão sobre o interesse do verdadeiro proprietário do imóvel, que poderá requerer o cancelamento do registro viciado e reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente. É o caso de quem compra um imóvel de quem é posteriormente considerado evicto, ou, de quem não é verdadeiro o dono (venda a non domino), ou, ainda, de empresa cuja falência venha a ser decretada logo após, verificando-se que a alienação fraudava o direito falimentar.
O sistema jurídico brasileiro privilegia o direito do verdadeiro proprietário em face da segurança jurídica da transação imobiliária e do terceiro de boa-fé.
9. Princípio da concentração
Serão oponíveis apenas os fatos, atos ou situações jurídicas constantes na matrícula do imóvel. Situações jurídicas não constantes da matrícula não poderão ser opostas, nem para fins de evicção ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel. Isso porque os direitos reais imobiliários apenas são adquiridos – nos atos entre vivos – pelo registro do título, nos termos do art. 1.245 do Código Civil.
Exemplo prático: em caso de não averbação da penhora, não poderá a venda do imóvel do executado ao terceiro de boa-fé ser considerada ineficaz face ao credor exequente.
Inexistindo inscrição de hipoteca, usufruto, etc., o adquirente recebe a propriedade livre desse ônus.
Exceções ao princípio
Algumas situações jurídicas pretéritas poderão ser oponíveis ao adquirente ou novo titular dos direitos reais, ainda que não registradas ou averbadas na matrícula do imóvel. A aquisição e extinção da propriedade que independa de registro de título de imóvel, como a aquisição originária da propriedade pelo usucapião por exemplo, além de hipóteses de fraude à execução ou à credores, nos termos do art. 54, § 1º da Lei nº 13.097/2015.
Referências:
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. 10. ed. Salvador:JusPodivm, 2019.