PREFERÊNCIA DE PENHORA DEPENDE DE REGISTRO NA MATRÍCULA
Gabriel José Bernardi Costa
Gabriel de Carvalho Thielmann
1. Introdução
Imagine o caso em que, instaurada a ação de execução, o executado permanece inadimplente; e, seguindo com o processo, o exequente obtém a penhora de um bem imóvel do devedor. O bem é avaliado, e o juízo competente defere sua adjudicação ao exequente. No entanto, antes de concretizada essa adjudicação, um terceiro – que até então não aparecera no processo – atravessa uma manifestação informando ter preferência sobre o imóvel; pois, em sua própria ação de execução contra o mesmo devedor, ele obtivera uma penhora com alguns meses de antecedência, apesar de nunca a ter registrado na matrícula do respectivo imóvel.
Ou o caso em que o juízo determina a realização de hasta pública do bem imóvel penhorado, sendo posteriormente arrematado por um terceiro que desconhecia qualquer impedimento à sua aquisição; e, na sequência, um credor da outra execução se manifesta alegando sua antecedência na penhora, provocando a anulação de todos os atos expropriatórios anteriormente praticados.
O problema que se apresenta é: a quem cabe a preferência na adjudicação do imóvel? Àquele que primeiro obteve um termo de penhora expedido pela autoridade judiciária, mas se manteve inerte na concretização de sua pretensão; ou àquele que, a despeito de obter um termo de penhora posterior, primeiro assegura o seu registro na respectiva matrícula?
Além dos seus demais efeitos, quando o credor concretiza a penhora, ele assegura a si um direito de preferência em face dos demais credores que também possam ter direitos sobre o bem. Assim estatui o artigo 797, caput, do Código de Processo Civil, ao dispor que, ressalvado no caso de insolvência do devedor sujeito ao concurso de credores, “(…) realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados”.
Mas, como dito, um dos problemas que decorre dessa atribuição de preferência consiste em como determinar a ordem de preferência entre os credores, sobretudo quando existem múltiplas penhoras recaindo sobre o mesmo bem.
À primeira vista, a questão pode aparentar um não-problema; pois é inerente ao próprio conceito de “preferência” a ideia de prioridade. Se a penhora atribui preferência ao respectivo crédito, então esse crédito prevalecerá sobre os demais que não tiverem preferência ou que vierem a receber essa qualidade em momento posterior. Consequentemente, o problema das múltiplas penhoras poderia ser solucionado pela constatação da anterioridade cronológica dentre as penhoras envolvidas no caso.
No entanto, a aferição da anterioridade cronológica enfrenta outro obstáculo, quando o bem penhorado está sujeito a alguma forma de registro público. Nomeadamente, quando se trata de bens imóveis; situação em que a eficácia do direito de propriedade e dos títulos que o modificarem dependem da respectiva alteração no registro de imóveis, principalmente porque a ideia de preferência pressupõe a oponibilidade da respectiva situação jurídica. Sem oponibilidade não se pode falar em prioridade.
Daí questionar-se se o termo inicial do direito de preferência seria a data em que o título de penhora é concretizado ou a data em que esse título é registrado na matrícula imobiliária.
2. A jurisprudência brasileira
A jurisprudência brasileira se sedimentou no entendimento de que a menção ao termo “penhora” pelo artigo 797 do CPC/15 corresponderia ao título; isto é, ao ato jurídico que constitui a penhora. De modo que, a ordem de preferência seria aferida a partir da data de lavratura do auto ou termo de penhora pela autoridade competente. O registro na matrícula, conforme esse entendimento, teria o efeito de apenas dar publicidade ao ato.
Esse entendimento remonta ao julgamento do Recurso Especial nº 2.258-0-RS, relatado pelo ministro Sálvio de Figueiredo, que fixou a interpretação que “no concurso particular entre credores quirografários, tem preferência aquele que primeiro penhorou” e que “o registro da penhora subsequente não tem o condão de alterar o direito de preferência, destinada que é a gerar presunção da ciência de terceiros em favor dos exequentes”.
3. A razão histórica
O entendimento jurisprudencial dominante parte de uma interpretação do Código de Processo Civil de 1973, cujo artigo 612 trazia um texto muito similar ao atual artigo 797 do Código vigente, ao dizer que “(…) realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados”. Complementava-o o artigo 613, que dispunha: “Recaindo mais de uma penhora sobre os mesmos bens, cada credor conservará o seu título de preferência”.
Trata-se de uma regra comumente sintetizada pelo brocardo “prior in tempore, potior in iure” (“primeiro no tempo, preferível no direito”). Contudo, o Código de Processo Civil de 1973 representa, ele próprio, uma revolução jurídica no concurso de penhoras, uma vez que ele repristinou um regime jurídico que havia sido interrompido na história do Brasil independente.
O Código de Processo Civil de 1939, em seu artigo 947, por exemplo, dispunha que “a penhora de bens já penhorados resolver-se-á, de pleno direito, em concurso de credores, que se instaurará no juízo onde se houver efetuado a primeira penhora”. Trata-se de uma regra que estatuía a “par conditio creditorum” (“a igual condição dos credores”), em contraposição à já mencionado “prior in tempore, potior in iure”.
A ideia de que “prior in tempore, potior in iure” tem raízes longínquas na tradição luso-brasileira. Nas Ordenações Afonsinas, por exemplo, pode-se ler no Livro 3, Título 97, §5º:
“(…) que se dous Credores ouverem Sentenças contra huum devedor (…) aquelles, que primeiramente fezer execução per sua Sentença, precederá o outro, que depois quizer fazer execução em esses bens executados por o outros Credor, ainda que esse (…) primeiramente ouver Sentença contrelle (…)”.
Isto é, ainda que um dos credores tivesse o seu crédito julgado favoravelmente por uma sentença anterior a dos demais credores, a preferência do crédito seria dada por aquele que primeiramente “fizer execução”.
Esse entendimento se manteve ao longo da história jurídica luso-brasileira, sendo reproduzido nas Ordenações Manuelinas (L. 3, T. 74, §2º)[1] e nas posteriores Ordenações Filipinas (L. 3, T. 91, §1º)[2].
Vê-se que, no sistema jurídico dos séculos 15 a 19, o que definia o direito de preferência na execução não era a data do crédito nem a data da sentença judicial, mas a ordem pela qual o credor “fizesse sua sentença ou penhora”; isto é, a preferência seria atribuída àquele que primeiro dessa concretude executiva ao seu crédito.
Por mais que se possa traçar um paralelo entre a preferência daquele que “primeiro fizesse sua sentença ou penhora” do direito reinol, e a preferência daquele que primeiro obtém o termo de penhora do direito atual, é preciso destacar que as regras das Ordenações do Reino não eram arbitrárias, pois estavam todas vinculadas a uma ideia de tutela da confiança e segurança jurídica.
As Ordenações Afonsinas explicam que “(…) aquele que primeiro fez execução per sua Sentença, deve em todo caso preceder todo os outros negligentes, que depois quiserem fazer execução em esses bem que já pelo outro credor primeiramente forem executados (…). Ou seja, o direito de preferência atribuía-se àquele que primeiro concretizou sua penhora, porque esse credor fora aquele que atuara de maneira mais diligente em relação aos demais credores com igual direito sobre o patrimônio do devedor.
Por essa mesma razão que, as Ordenações admitiam uma exceção à regra geral, caso o credor preterido demonstrasse que não fora negligente e que a demora em “fazer a sentença ou penhora” decorrera de algum impedimento ou embargo alheio à sua vontade.
As Ordenações Filipinas, reproduzindo a mesma regra vigente desde as Ordenações Afonsinas[3], dispõem que o direito de preferência do que primeiro penhorou deveria ser aplicado,
“(…) salvo se o que primeiro houve sentença, e primeiro foi credor, teve algum legitimo e tão urgente impedimento, por que não pôde executar sua sentença: porque em este caso, pois não foi negligente, não lhe será imputado não fazer a execução ao tempo, que devia, pois a não pôde fazer pelo impedimento, que lhe sobreveio.”
O direito reinol atribuía a preferência àquele credor que tivesse sido mais diligente em concretizar sua pretensão pela penhora, preterindo aquele outro que – a despeito da anterioridade do título executivo – tenha sido negligente e demorara em penhorar. Contudo, admitia-se, como indicado acima, que o credor preterido invertesse a ordem de preferência ao demonstrar que não tinha sido negligente, mas que sua demora em efetivar a penhora decorria de algum impedimento ou embargo legítimo.
4. Coerência do sistema
Aferir a ordem de preferência das múltiplas penhoras sobre o mesmo bem imóvel exige que se faça a distinção entre o ato jurídico da penhora e os seus efeitos, porque o problema interpretativo aqui envolve um caso de ambiguidade do tipo “processo-produto”, pelo qual um mesmo termo (palavra) pode ser empregado para indicar tanto o fato jurídico (processo) quando as consequências normativas desse mesmo fato (produto).
Tratando do fato jurídico propriamente dito, a penhora corresponde a um ato processual do Estado-juiz, cuja eficácia é, por sua vez, determinar que um bem do devedor fique indisponível e sujeito à execução. Compreender essa distinção é crucial, porque a legislação tende a usar a palavra “penhora” para tratar tanto do ato processual de constrição quanto de seus efeitos.
No entanto, a eficácia do ato de penhora é dupla. O principal efeito é, como se disse, a indisponibilidade e sujeição do bem à execução. Mas o Código de Processo Civil prevê outro efeito: o direito de preferência.
Como efeito jurídico da penhora, o direito de preferência corresponde a uma relação jurídica havia entre o credor da execução, o Estado-juiz e os demais credores que possam ter direitos sobre o bem afetado, pela qual se estabelece uma posição de privilégio ao credor que primeiro penhorou o bem, assegurando-lhe que o Estado forneça a tutela jurisdicional em primeiro lugar.
Admitir que o registro é irrelevante para fixação da preferência executiva e que os demais credores se tornam sujeitos ao privilégio do exequente, tão logo seja proferida a decisão de penhora, importa uma violação ao artigo 54, caput e §1º, da Lei nº 13.097/2015, que consagrou o Princípio da Concentração dos Atos na matrícula do imóvel.
Mencionado dispositivo dispõe que os atos jurídicos destinados a constituir ou modificar direitos sobre bens imóveis são ineficazes quando a matrícula apresentar registro ou averbação prévia da pendência de ônus, constrição ou restrição que implique indisponibilidade ou limitação ao gozo do bem.
Particularmente interessante é o artigo 54, inciso IV, da Lei nº 13.097/2015, introduzido pela Lei nº 14.825/2024; o qual prevê a ineficácia do ato jurídico quando a matrícula constar com prévia “averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel (…)”. Tal regra implica uma alteração no escopo de incidência do artigo 797 do CPC/15, uma vez que estatui a ineficácia do termo de penhora, independentemente da data de uma expedição, quando a matrícula do imóvel penhorado já apresentar um registro de outra penhora anterior.
Esse é o conteúdo do Princípio da Concentração de Atos, o qual é reiterado pelo artigo 54, §1º, da Lei nº 13.097/2015 nos seguintes termos: “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis (…)”.
Aceitar que o registro é irrelevante para fixação da preferência executiva implicaria, como dito anteriormente, uma violação ao Princípio da Concentração de Atos, porque equivale a dizer que a decisão judicial tem oponibilidade erga omnes imediata; e que o registro da penhora não teria nenhuma eficácia relevante.
Da mesma forma, contraria a regra do artigo 844 do CPC/15, pela qual a presunção absoluta de conhecimento por terceiros do ato de penhora depende de sua averbação no registro competente, por parte do exequente, mediante apresentação de cópia do respectivo termo. Tal como o mencionado artigo 844, o artigo 799, inciso IX, do CPC/15 atribui ao exequente o dever de “proceder à averbação em registro público do ato de propositura da execução e dos atos de constrição realizados, para conhecimento de terceiros”.
O estado atual do sistema jurídico aparenta incompatível com a jurisprudência dominante pela qual o registro da penhora seria irrelevante para definição da ordem de preferência. Se a pretensão é manter-se fiel à tradição histórica, não basta aceitar a regra de que “prior in tempore, potior in iure”, pois é preciso reconhecer que ela estava inserida em um contexto de tutela da confiança e garantia da segurança jurídica.
Reconhecer que o termo de penhora anterior prevalece mesmo que não tenha sido levado a registro não representa apenas uma violação às normas anteriormente indicadas, mas também implica uma fragilização da segurança jurídica, pois permite que qualquer credor possa, assim, escolher livremente o momento para opor o seu direito perante os demais credores, ainda que os outros tenham sido mais diligentes em realizar a penhora e averbá-la na respectiva matrícula.
Também significa que não existem consequências para o exequente que descumpre o ônus imposto pelo Código de Processo Civil de promover o registro dos atos de constrição no registro público.
5. Conclusão
Sendo assim, quando o artigo 797, caput, do CPC/15 dispõe que “[…] realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados”, deve-se interpretá-lo conjuntamente com o artigo 799, inciso IX, e o artigo 844 do CPC/15 e em atenção ao artigo 54 da Lei nº 13.097/2015. Nesse contexto, a palavra “penhora” indica os efeitos jurídicos do ato de penhora; não o ato em si. Consequentemente, o direito de preferência surge apenas com a instauração da relação jurídica entre os envolvidos, o que só pode acontecer – por exigência lógica – após o registro que dá publicidade ao ato.
[1] Ordenações Manuelinas (L. 3, T. 74, §2º): “(…) aquelle que primeiramente fezer a execuçam, ou penhora per sua sentença, precederá o outro que despois quiser fazer execuçam em aquelles bens, em que he já feita penhora pola sentença do outro creedor; posto que esse que mais tarde requere execuçam ouvesse primeiro sua sentença contra o devedor, e posto que fosse primeiro credor (…)”.
[2] Ordenações Filipinas (L. 3, T. 91, §1º): “Se dous credores houverem sentença contra hum devedor, ou em hum juízo, ou em diversos, o que primeiro fizer a execução ou penhora per sua sentença, precederá o outro, que depois quizer fazer execução nos bens, em que he já feita penhora pola sentença do outro credor, postoque este, que mais tarde requere execução, houvesse primeiro sua sentença contra o devedor, e postoque fosse primeiro credor (…)”.
[3] Assim, dispõem as Ordenações Afonsinas: “(…) salvo se esse, que primeiro ouve sua Sentença, foi embarguado de alguum embarguo lidimo, e tam necessario, per que nam pode executar sua Sentença; ca em tal caso nom lhe deve, nem pode ser imputado, por assy nom poder fazer a dita execuçam ao tempo, que devia, pois naõ foi em culpa de a nam fazer por o Embargo (…)” E, por sua vez, assim, dispõem as Ordenações Manuelinas: “(…) salvo se o que primeiro ouve sentença, e primeiro foi creedor, teve alguu legitimo, e tam necessario impedimento, por que nom pode executar sua sentença; porque em tal caso, pois nom foi negrigente, nom lhe será imputado por nom fazer a execuçam ao tempo que devia, pois a nom pode fazer polo impedimento que lhe sobreveo (…)”.