POR UM CONCEITO DE RISCO DA ATIVIDADE (OU NEM TUDO É RISCO DA ATIVIDADE)
Rafael Viola
Como se tem percebido ao longo das últimas décadas, o risco tem tomado conta do debate no âmbito da reparação dos danos, contaminando a análise dos chamados filtros da responsabilidade.
Recentemente foi promovido o I Congresso Carioca de Responsabilidade Civil em parceria entre o IBERC e o MP/RJ. Naquela oportunidade, como não poderia deixar de ser, o primeiro painel do dia tinha como objeto o debate acerca dos riscos em nossa sociedade ao tratar da “Responsabilidade Civil e Gestão de Riscos”.
Como se tem percebido ao longo das últimas décadas, o risco tem tomado conta do debate no âmbito da reparação dos danos, contaminando a análise dos chamados filtros da responsabilidade. Não é sem razão que este tema já foi objeto de inúmeras colunas neste espaço[1] e é atualmente ponto central do debate da regulação das atividades perigosas. Diga-se, a propósito, que o principal debate que se coloca no mundo atualmente diz respeito à regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA), cujos riscos são desconhecidos. Yuval Noah Harari em recente artigo para o The Economist[2] nos alerta que, nos últimos anos, as ferramentas de IA ameaçam a sobrevivência da civilização em uma direção inesperada: a IA ganhou uma extraordinária habilidade de manipular e gerar a linguagem, seja com palavras, sons ou imagens. Mais uma vez, os ditos riscos[3].
Tratado sob diversas perspectivas e áreas do saber e, muito embora o campo das ciências jurídicas tradicionalmente se valha do tratamento estatístico/matemático e econômico do risco, esta problemática vem acrescida de outras importantes áreas do saber, notadamente, da sociologia, antropologia, psicologia, filosofia e ciências políticas[4]. Podemos tratar o risco, então, a partir das perspectivas tecno-científicas, definindo o risco como produto das probabilidades, muito utilizado no campo do seguro, ou a partir das perspectivas socioculturais, que se valem dos contextos social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado[5].
Como lidar com esses riscos? E de quais riscos está se tratando?
O risco sempre esteve presente na humanidade, mas a mudança no tratamento dele é o que define os tempos modernos[6]. A partir do final do século XIX e início do século XX, o tema do risco ganha espaço, também, na cultura jurídica, culminando, no final do século retrasado, no debate acerca da responsabilidade pelo risco. Contudo, como afirmado anteriormente[7], os modelos de risco até então presentes nas ciências jurídicas mantêm um viés claramente ligado à noção de industrialização, profundamente enraizada ao final do século XIX e início do século XX. Seja o risco criado, proveito, profissional, administrativo ou integral, todos eles caminham na mesma direção: reconhecer o fenômeno da industrialização nos séculos antecedentes e, portanto, imputar a responsabilidade a quem desenvolve uma atividade perigosa. Contudo, elas não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança jurídica o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade considerada tecnicamente perigosa e quais fatos estão inseridos no “risco da atividade”.
Podemos trazer alguns exemplos atuais da dificuldade de identificação do risco que compõe o círculo da atividade: em 2019 o TJ/MG condenou a Walmart em razão de uma consumidora, vítima de phishing (uso de site fraudulento, por terceiros, que imitava o site da Walmart), que adquiriu uma TV de um site que não era da empresa, mediante anúncio proveniente de um e-mail, mas cujo produto nunca foi entregue à consumidora. Na sentença de primeira instância foi constatado que a parte autora foi vítima de fraude, e, mesmo assim, a empresa ré foi condenada, pois, segundo os “print’s” das páginas, a consumidora adquiriu o produto em site que aparentava ser da parte ré, já que o site fraudulento usava a logomarca da ré, aparentando veracidade. O Tribunal, na apelação, alegou, dentre outros fatores, que (i) já havia notícias que fraudadores se valiam do site falso da empresa e nada foi feito pela Walmart, (ii) esta não manteve vigilância constante na internet para identificar o uso indevido de sua marca por meio de profissionais da área de tecnologia da informação e que, portanto, (iii) assumiu o risco de ter o seu nome usado nessas negociações fraudulentas no mundo virtual[8].
Em outra situação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que o roubo por arma de fogo em estacionamento de lanchonete estaria fora do risco da empresa (fortuito externo)[9], mas um ano depois, em caso análogo, entendeu que o assalto no drive-thru do estacionamento configura fortuito interno e, portanto, inserido no risco[10]. E o caso mais polêmico de todos? Prática de ato libidinoso contra passageira no interior de trem ou ônibus. É sabido que o tema foi objeto de julgamento pela Segunda Seção do STJ, na busca de uniformização de jurisprudência. Em 2021, no julgamento EAREsp 1.513.560/SP[11], o STJ decidiu que o referido ato libidinoso no interior de vagão de trem metropolitano é fortuito externo por não guardar conexão com a atividade de transporte.
Pois bem, o ponto é de que riscos estão falando? O que é o risco e como ele deve ser encarado pelas ciências jurídicas e qual o seu papel diante das novas tecnologias? Trata-se de tema espinhoso e de difícil conceituação[12], não havendo unanimidade entre os autores na medida em que o risco é tratado a partir das mais variadas acepções e dentro das mais distintas áreas do saber, o que apenas torna mais difícil o trabalho do operador do direito na busca pela definição de uma teoria adequada para os tempos atuais.
Ponto importante a ser compreendido é que a nova configuração social, especialmente a partir do final do século passado trouxe à luz a ideia de que a sociedade não tem mais como evitar o risco, mas apenas escolher quais riscos assumir[13]. Como lembra Menezes Cordeiro, “o progresso industrial conduziu a um aumento quantitativo e qualitativo do risco”[14]. A noção de risco permeia a ideia de ações possíveis e tomadas de decisão. O que se pretende é antecipar contingências futuras e, assim, adotar a melhor ação possível a fim de reduzir perigos[15]. Dessa forma, os riscos são eventos futuros que podem ocorrer, e que ameaçam a todos nós. O risco é, portanto, a antecipação da catástrofe e o propósito de sua investigação é, justamente, a sua redução. Contudo, uma vez que ele tenha ocorrido, será necessário identificar a quem compete suportá-lo.
Não se deve tratar o risco como um fato exclusivamente objetivo do mundo, independente do homem[16]. É certo que existem fatos aceitos como reais. É o exemplo da queda de um avião, da existência do câncer, de mortes prematuras de pessoas expostas a altos níveis de radiação etc. No entanto, se aceitamos que esses fatos não decorrem de causas mágicas, divinas ou cósmicas, mas, de causas específicas, é porque esses riscos decorrem da nossa compreensão e da construção do conhecimento a partir do mundo socialmente existente. Ou seja, o risco não existe independentemente do conhecimento humano, mas ele só é verificado e compreendido a partir da perspectiva humana. Logo, a construção social e a percepção cultural influenciam decisivamente o conteúdo do risco.
A forma como o risco é encarado, percebido e experimentado deve ser considerado em sua análise. O risco não é um fato puro, desprovido de uma análise social; ele é reconhecido e discutido no meio social. Dito diversamente, os riscos são reais, embora permaneçam construções sociais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a assunção do risco com a consequente tomada de decisão decorre, também, de uma relação de confiança. Aquele que assume um determinado risco o faz baseado na sua percepção dos riscos quanto à tomada de decisão e na confiança despertada a partir do conhecimento científico construído na sociedade, e, também, da percepção cultural e social decorrente de experiências passadas, dos meios de comunicação, das instituições e de outras fontes variadas. A confiança acaba por se tornar elemento decisivo nas sociedades contemporâneas.
O desenvolvimento tecnológico potencializou o desempenho de atividades perigosas, cujos processos são continuamente invisíveis e não transparentes aos sujeitos[17] (ao menos àqueles que potencialmente suportarão os riscos). E a crença depositada no conhecimento técnico, assim como naquele colhido da experiência humana não técnica influencia a tomada de decisão, o que demonstra que o problema do risco é, também, um problema de confiança, pois esta última é o motor que permite a formação de um juízo adequado à tomada de decisão dentro de padrões legitimamente esperados dos riscos[18].
Assim a construção de um conceito de risco deve levar em consideração que: (i) existem determinados fatos no mundo que são objetivos, ainda que a relação de causa e efeito seja dotada de incerteza, mas cuja (ii) identificação, reconhecimento, entendimento, mensuração e tratamento são limitados pelas restrições sociais e cognitivas, e (iii) o reconhecimento de que a partir dessa tomada de decisão vigora uma incerteza relativa e perene a alguma característica do mundo que afeta a realidade humana existente. Diante do que foi exposto até então, é de se propor uma noção, para fins de imputação de responsabilidade civil. Nesse ponto, propõe-se que o risco da atividade seja compreendido como uma situação ou um evento legitimamente esperado, atribuível a uma decisão humana, comissiva ou omissiva, em que um interesse juridicamente protegido se encontra sujeito a uma lesão potencial, mas cujo resultado concreto é incerto.[19]
Este conceito tem uma premissa evidentemente realista, pois reconhece que o risco é real, ele é um fato dado no mundo que resulta da pressuposição de que algum resultado é possível, mas não predeterminado, o que demonstra inegavelmente a incerteza que circunda a noção de risco. Este ponto é relevante, pois expressa o entendimento de que o risco existe ainda que não seja possível percebê-lo com o conhecimento humano produzido ao tempo da tomada de decisão.
Mas, ao mesmo tempo, identifica o risco a partir da construção social, pois exige, para a atribuição do dever de indenizar, que a situação seja legitimamente esperada, isto é, que seja apreendida e reconhecida no meio social como uma causa possível da tomada de decisão consistente na exploração da atividade perigosa. Isto permite que, futuramente, haja alterações na compreensão do risco, que não é estático, mas, antes, mutável e em constante transformação. Realmente, a noção de normalidade se altera a medida que despontam novos conhecimentos, o que permite uma revisão dos conceitos envolvendo os riscos de uma determinada atividade. Por fim, estabelece que o problema do risco só se coloque no campo da responsabilidade civil quando algum interesse juridicamente relevante está sujeito a alguma lesão real ou potencial, o que atrairá a incidência do dever de reparar.
Parece que a proposta aqui formulada é suficientemente abrangente e maleável de modo a abarcar os mais diversos tipos de risco, sem engessamento do poder judiciário, a ponto de permitir sua adequação às mais variadas situações que existem ou venham a existir futuramente. Mas é delimitado o suficiente para permitir a construção de critérios científicos que permitam afastar eventual fato ou evento da esfera jurídica do tomador da decisão de modo que não exista qualquer obrigação de indenizar. Evidentemente que a proposta não é definitiva e não é capaz, por si só, de solucionar todos os casos como uma regra matemática. Contudo, ela traz contornos para construção de uma delimitação do risco de uma atividade, pois, afinal, nem tudo pode ser considerado risco da atividade.
Em conclusão, é importante destacar que o desenvolvimento tecnológico é imprescindível. Toda inovação traz uma série de riscos a reboque, mas, como afirma Anthony Giddens, se pretendemos ser uma sociedade inovadora, dotada de uma economia dinâmica, torna-se elemento nuclear a assunção de riscos. E, nesse ponto, é preciso ser ousado, em vez de cauteloso no apoio à inovação científica e outros meios de mudança, trazendo o debate dos riscos à arena política de modo mais direto[20].
[1] https://www.migalhas.com.br/depeso/361339/responsabilidade-civil-do-estado-por-danos-ao-meio-ambiente
https://www.migalhas.com.br/depeso/378991/programa-de-compliance-e-a-mitigacao-de-riscos-no-ambito-juridico
https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/384518/algoritmo-de-ia-pelos-fundamentos-de-autoaprendizagem
[2] https://www.economist.com/by-invitation/2023/04/28/yuval-noah-harari-argues-that-ai-has-hacked-the-operating-system-of-human-civilisation
[3] No caso dos sistemas de IA, o PL 233/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial, dedica um capítulo exclusivo para análise e gerenciamento dos riscos, nos arts. 13 a 18, Capítulo III.
[4] Sobre o tema do risco, cf. VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023.
[5] LUPTON, Deborah. Risk. 2nd ed. London: Routledge, 2013, p. 27.
[6] Bernstein, Peter L. Against the Gods: The Remarkable Story of Risk. New York: John Wiley & Sons Inc., 1998. (Locais do Kindle 152-154). Wiley. Edição do Kindle.
[7] VIOLA, Rafael. O risco na contemporaneidade: por um debate renovado sobre a caracterização das atividades perigosas.
[8] Apelação Cível nº 1.0000.19.020810-8/001. Numeração única 5000016-77.2017.8.13.0342, Des. Rel. Evandro Lopes da Costa Teixeira, 17ª Câmara Cível, julg. 08.08.2019.
[9] REsp 1.431.606-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por maioria, julgado em 15.08.2017.
[10] REsp 1.450.434-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 18.09.2018.
[11] EAREsp n. 1.513.560/SP, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 9/6/2021, DJe de 25/6/2021.
[12] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 369.
[13] KAPLAN, Stanley et GARRICK, B. John. On the quantitative definition of risk. In: Risk analysis. Vol. I, nº 1, 1981, p. 11.
[14] CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil. X – direito das obrigações, garantias. Coimbra: Almedina, 2017, p. 82.
[15] ROSA, Eugene A., et al. The risk society revisited. Social theory and governance. Philadelphia: Temple University Press, 2014, p. 2.
[16] VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023, p. 50.
[17] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 44.
[18] O ordenamento jurídico brasileiro, em diversas oportunidades, reconhece a relevância da confiança quando trata do risco. São exemplos disso, os arts. 12§ 1º e 14. § 1º, ambos do CDC e o art. 44, da LGPD, quando ressaltam os riscos legitimamente esperados.
[19] VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023, p. 67.
[20] Giddens, Anthony. Runaway World (p. 35). Profile Books. Edição do Kindle.