PERSE: NOVOS DESAFIOS AOS CONTRIBUINTES TRIBUTADOS PELO LUCRO REAL E SIMPLES NACIONAL
Raianne Matta
Desde a criação do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), o contribuinte tem vivido, com certa emoção, as inconstâncias e oscilações decorrentes da gestão dos gastos públicos vinculados aos benefícios fiscais por parte do governo federal.
Amparado na necessidade de zerar o déficit fiscal e de alcançar a meta fiscal prevista no orçamento de 2024, as discussões voltadas ao Perse ficaram ainda mais acaloradas com a superveniência da Medida Provisória nº 1.202 de dezembro de 2023, por meio da qual o governo federal, dentre outras medidas, revogou a redução de alíquotas a zero relativamente aos principais tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e Cofins) prevista no Programa, com a retomada da cobrança das contribuições já a partir de abril de 2024 e do imposto de renda em 2025.
Diante da expressiva insatisfação das entidades representativas do setor, o governo recuou da tentativa de revogar integralmente o Programa, tendo sido publicada, no último dia 23 de maio, a Lei nº 14.859/24, que promoveu substanciais alterações na Lei do Perse, estabelecendo, na prática, um novo Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, de contornos completamente diferentes daqueles inicialmente traçados pelo Congresso Nacional.
Em um apanhado em sintético, as principais alterações consistem:
– Na redução do rol de atividades beneficiadas pelo Programa (de 44 para 30 atividades);
– Previsão de teto orçamentário de R$ 15 bilhões destinado ao Programa e a possibilidade de revogação tão logo seja atingido;
– Limitação do benefício às empresas que apuram sob o lucro real;
– Condicionamento do benefício às pessoas jurídicas cujas atividades consideradas do setor de eventos sejam as principais exercidas pela sociedade ou preponderante;
– Reconhecimento da adequação jurídica aos contribuintes que se regularizaram perante o Cadastur;
– Necessidade de habilitação prévia.
Talvez, um dos aspectos louváveis promovidos pela Lei 14.859/24 tenha sido o reconhecimento expresso do benefício às empresas que não só que estivessem com sua inscrição em dia perante o Cadastur no dia 18 de março de 2022, mas, igualmente, àqueles contribuintes que promoveram a regularização cadastral entre esta data e o dia 30 de maio de 2023[1].
A previsão expressa evita a perpetuação de discussões jurídicas sobre o tema, as quais vêm assoberbando desnecessariamente o Poder Judiciário tão somente para o reconhecimento do obvio: o caráter declaratório do Cadastur não pode inviabilizar o reconhecimento da adequação fática e jurídica dos estabelecimentos que, assim como os demais contribuintes, sofreram com os deletérios efeitos da pandemia.
Desta forma, andou bem a legislação ao dispor expressamente sobre a questão.
Contudo, sobrevinda a nova regulamentação por meio da Instrução Normativa 2.195/2024, alguns aspectos seguem controvertidos ou, ainda, sem uma solução jurídica que se afigure razoável, principalmente sob a perspectiva da isonomia tributária e da segurança jurídica, razão pela qual iremos nos ater a alguns aspectos que, a nosso sentir, merecem críticas e especial atenção. São eles:
Reflexos das restrições às empresas tributadas pelo lucro real;
Ausência de prazo para habilitação aos contribuintes que apuram sob a sistemática do Simples Nacional;
Restrições ao alcance do benefício impostas às empresas tributadas pelo lucro real
Uma das novidades implementadas pela Lei nº 14.859/24 foi a restrição para que as empresas tributadas com base no lucro real gozem dos benefícios do Perse em sua integralidade, limitando a aplicação da alíquota zero somente em relação ao PIS e a Cofins, a partir dos exercícios de 2025 e 2026.
Às empresas tributadas com base no lucro presumido, por sua vez, foi assegurada a manutenção do benefício integral até dezembro de 2026[2].
A disparidade de tratamento evidencia um critério iminentemente anti-isonômico por parte do legislador, sobretudo ao considerarmos que, tecnicamente, o lucro real é (ou deveria ser) o regime padrão de tributação do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (IRPJ), posto que sua sistemática de apuração é a que mais se aproxima, por sua essência, à identificação da disponibilidade econômica ou jurídica tributável.
Não por outra razão, a legislação do imposto de renda prevê que os benefícios fiscais somente podem ser utilizados pelas empresas que apurem o IRPJ pelo lucro real, a teor do artigo 14, IV, da Lei nº 9.718/1998.
Nesse passo, vale relembrar que quando do estabelecimento da alíquota zero pela Lei do Perse, ainda em março de 2022, a dúvida pairava exatamente em torno da (im)possibilidade de utilização dos benefícios pelas empresas optantes pelo lucro presumido.
Para estancar quaisquer dúvidas e esclarecer a temática diante da excepcionalidade da medida, sobreveio a Lei nº 14.390/22 no sentido de consignar que o aproveitamento do Perse pelo contribuinte não implicaria, por si só, na obrigatoriedade de apuração do IRPJ pelo lucro real[3].
Agora, passados dois anos, o governo federal promove uma nova guinada no assunto. Desta vez, colocando em xeque a possibilidade de um aproveitamento amplo do benefício às empresas que apuram pelo regime do lucro real ao prescrever que, nos exercícios de 2025 e 2026, o benefício ficará restrito ao PIS e à Cofins para estes contribuintes.
Com efeito, a nova Lei do Perse prescreve que o contribuinte que apura o IRPJ pelo lucro real[4] deverá informar se fará uso da alíquota zero prevista na Lei do Perse ou de prejuízos fiscais acumulados do IRPJ, de base de cálculo negativa da CSLL e do desconto de créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins em relação a bens e serviços utilizados como insumo nas aquisições de bens, de direitos ou de serviços para auferir receitas/resultados das atividades do setor de eventos.
Para além da desnecessidade de se questionar a opção por um ou outro, na medida em que ao se habilitar ao Perse, por óbvio, o contribuinte pretende se valer dos benefícios nele previstos (a lei poderia simplesmente vedar expressamente o aproveitamento concomitante dos benefícios), entendemos que não há qualquer razoabilidade na restrição da utilização do benefício tão somente em razão do regime de tributação.
Sabe-se que a utilização de prejuízo fiscal do IRPJ e base de cálculo negativa da CSLL é considerada pela jurisprudência [5] um benefício fiscal concedido aos contribuintes. Daí a ratio acerca da vedação à utilização concomitante dos benefícios, na medida em que o governo federal tem buscado ao máximo enxugar os gastos públicos, ainda que às custas de certa corrosão política.
Contudo, considerando que o enxugamento do Perse se ancora na necessidade de se promover o equilíbrio das contas públicas, adequando e restringindo ao máximo a concessão de benefícios fiscais aos casos em que se afigurem estritamente necessários à luz dos objetivos orçamentários e princípios insculpidos na Constituição, não se afigura razoável ou coerente que a restrição seja realizada meramente em razão do regime de tributação que, por si só, não representa qualquer expressão de riqueza adicional.
Desta forma, considerando que a Lei do Perse já determina expressamente que o contribuinte tributado pelo lucro real opte pela utilização dos benefícios da base de cálculo negativa, prejuízos fiscais e créditos decorrentes de insumos ou pela utilização dos benefícios previstos na Lei do Perse, não nos parece razoável que, ainda assim, seja impedido de se valer amplamente do benefício (com a restrição do seu alcance nos exercícios de 2025 e 2026), bem como seja impedido (ainda que indiretamente) de se valer do regime de tributação que melhor atenda às peculiaridades de sua operação.
Uma vez superada a questão acerca da inadequação da restrição do benefício às empresas do lucro real, remanesce, ainda, outro aspecto que merece especial atenção para estas empresas.
Com objetivo de fazer o acompanhamento dos gastos tributários, o governo federal tem implementado uma série de medidas que buscam trazer transparência a respeito da identificação e extensão dos benefícios tributários concedidos através de renúncias fiscais[6].
Em consonância com esse movimento, a nova Lei do Perse inovou ao determinar a prévia habilitação dos contribuintes no Programa dentro do prazo de 3 de junho a 2 de agosto.
O procedimento, em si, é simples. Aos contribuintes, de uma maneira geral, basta o acesso ao eCAC e apresentação do contrato social e outras informações exigidas no formulário, para que no prazo de 30 dias a Receita Federal promova a respectiva habilitação.
Aos que apuram pelo lucro real ou arbitrado, como visto, deverá, ainda, ser informado expressamente se pretendem se valer dos benefícios do Perse ou da utilização do prejuízo fiscal/base de cálculo negativa da CSLL/créditos de PIS/Cofins.
Ocorre que, embora o procedimento de habilitação pretenda viabilizar o controle e equacionamento dos gastos públicos, certo que seus efeitos somente podem ser prospectivos, respeitada a anterioridade anual e nonagesimal em cada caso[7], uma vez que os contribuintes não poderiam ser surpreendidos com uma restrição ínsita à própria sistemática de apuração do lucro real, frustrando o planejamento realizado pelo contribuinte no momento da opção pelo regime de tributação.
Ou seja, aqui não se está falando sob a perspectiva da (im)possibilidade de revogação dos benefícios do Perse, mas, sim, da impossibilidade de se restringir, com efeitos imediatos, a utilização de critérios fiscais inerentes à própria metodologia de apuração do lucro real, quais sejam: utilização do prejuízo fiscal do IRPJ, base de cálculo negativa da CSLL e crédito de insumo do PIS/Cofins) e em relação aos quais o contribuinte já tinha justa expectativa de gozar.
Desta forma, a despeito da previsão criada pela nova Lei do Perse[8], nos parece que a restrição à utilização concomitante do benefício do Perse com a utilização de prejuízo fiscal/base de cálculo negativa da CSLL e créditos decorrentes de insumos representa uma verdadeira revogação indireta de benefício fiscal, razão pela qual deveria observar, minimamente, aos princípios da anterioridade (nonagesimal e anual, conforme o caso), na linha da sólida jurisprudência já firmada pelo STF[9].
Ausência de prazo para habilitação aos contribuintes que apuram sob a sistemática do Simples
Ao conceder o prazo de 60 dias para que os contribuintes promovam a respectiva habilitação definitiva para fruição do Perse, a legislação deixou uma relevante lacuna: o tratamento jurídico a ser dado aos contribuintes que atualmente apuram sob a sistemática do Simples Nacional e que pretendam alterar o regime de tributação no exercício subsequente.
Como narrado, no apagar das luzes de 2023, o governo federal editou a Medida Provisória nº 1.202/23 que pretendia revogar, a partir de abril de 2024, substancial parte do Perse (com a revogação integral em 2025), o que levou muitos contribuintes a optarem pela tributação no regime do Simples Nacional em 2024.
Ocorre que diante das posteriores alterações promovidas na Lei do Perse, foi dado novo fôlego ao Programa, com a previsão de manutenção do benefício até dezembro de 2026.
Mas, apesar de se ter conferido às empresas tributadas pelo lucro real e presumido a possibilidade de promoverem a respectiva habilitação entre os dias 3 de junho e 2 de agosto de 2024, a nova legislação não trouxe qualquer previsão relativamente aos optantes do Simples Nacional.
A omissão gera uma disparidade de tratamento talvez não tão claramente anunciada: nos exercícios de 2025 e 2026, a empresa que pretenda alterar seu regime de tributação e se valer do Perse não terá como exercer o direito por meio das vias ordinárias disponibilizadas pela Receita Federal.
Enquanto o PL nº 1.026/24 ainda estava em tramitação no Senado, chegou-se a cogitar a inserção de dispositivo que previa expressamente um prazo específico (janeiro de 2025), destinado aos contribuintes do Simples Nacional, para que manifestassem seu direito de escolha. Contudo, diante da necessidade de se imprimir celeridade à tramitação e sob o fundamento de ser necessária lei complementar para dispor sobre a questão, a proposta foi rejeitada.
Remanesce, portanto, um relevante aspecto jurídico no qual as empresas atualmente tributadas pelo Simples Nacional (e que já ostentavam os demais requisitos para fruição do Perse) devem se atentar.
Desta forma, caso estes contribuintes tenham pretensão de alterar o regime de tributação para que sejam autorizados a utilizar o benefício do Perse nos exercícios de 2025 e 2026, nos parece que não haverá alternativa outra senão a judicialização da questão, notadamente para que seja assegurado o direito à habilitação e regular fruição dos benefícios do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos.
[1] Data da publicação da Lei nº 14.592/2023, que tinha feito substanciais alterações ao programa.
[2] Enquanto não atingido o limite de 15 bilhões de reais a título de custo fiscal destinado ao Programa.
[3] Art. 4º O tratamento tributário de que trata o art. 4º da Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021, não importa por si só a obrigatoriedade de tributação com base no lucro real prevista no inciso IV do caput do art. 14 da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998, durante o período de 60 (sessenta) meses referido naquele dispositivo.
[4] Ou arbitrado.
[5] (…)1. O acórdão recorrido está em conformidade com o entendimento firmado pelo Supremo no RE 591.340, Tema n. 117/RG, Redator do acórdão o ministro Alexandre de Moraes, no sentido da constitucionalidade da limitação do direito de compensação de prejuízos fiscais do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL. 2. Quanto à restrição dos 30% (trinta por cento) na compensação dos prejuízos, em situações de extinção da pessoa jurídica, não cabe ao Poder Judiciário, atuando como legislador positivo, conceder ou estender benefício fiscal não previsto na legislação tributária. Precedentes. 3. Agravo interno desprovido.
(RE 1303153 AgR, Relator(a): NUNES MARQUES, Segunda Turma, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 15-08-2023 PUBLIC 16-08-2023)
[6] A exemplo, vale destacar a recém-criada Declaração de Informações sobre Benefícios Fiscais (DIRB).
[7] IRPJ, anterioridade anual; CSLL, PIS e COFINS, anterioridade nonagesimal.
[8] Art. 4º-B da Lei 14.148/2021:
1º As pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real ou no lucro arbitrado informarão, no procedimento de habilitação prévia de que trata o caput deste artigo, se, durante a vigência do Perse, farão uso:
I – de prejuízos fiscais acumulados, de base de cálculo negativa da CSLL e do desconto de créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da COFINS em relação a bens e serviços utilizados como insumo nas aquisições de bens, de direitos ou de serviços para auferir receitas ou resultados das atividades do setor de eventos; ou
II – da redução de alíquotas de que trata o art. 4º desta Lei.
[9] Nesse sentido: RE 564225, RE 1214919.