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PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DE ALTO VALOR: POSSIBILIDADE

André Borges de Carvalho Barros

A despatrimonialização do direito civil e a consagração do ser como fim e não como meio do direito resultaram no reconhecimento de diversos direitos da personalidade voltados à proteção dos mais variados aspectos da integridade física, psíquica e intelectual da pessoa humana. Contudo, o efetivo abrigo da dignidade da pessoa humana demanda, além dos direitos da personalidade, a proteção de um mínimo patrimonial que atenda às necessidades mais básicas do ser, como reconheceu o Professor e Ministro do STF Luiz Edson Fachin, em sua famosa obra Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo.

 Neste sentido, o bem de família é, sem dúvida, o exemplo mais forte da importância do patrimônio para a consagração da dignidade do indivíduo, garantindo o direito social à moradia do devedor em face do crédito de outrem. De acordo com a Lei nº 8.009/90, o bem de família legal é impenhorável, não respondendo por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos seus titulares, salvo nas hipóteses excepcionadas no art. 3º, como a obrigação decorrente de alimentos, hipoteca, fiança, tributos relativos ao próprio imóvel, etc.

Embora não exista qualquer limitação expressa na Lei nº 8.009/90 quanto ao valor do imóvel para que seja protegido como bem de família, algumas disposições restritivas chamam a atenção e merecem ser destacadas, como a regra presente no art. 5º, parágrafo único, pela qual, se a pessoa for titular de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado como bem de família voluntário, nos termos e nos limites estabelecidos pelo Código Civil. Sim, o Código Civil limita o valor do bem de família voluntário a uma terça parte do patrimônio líquido da pessoa, apurada no momento da instituição.

Voltando à Lei nº 8.009/90, o art. 4º determina que não será protegido aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga. Reconhecendo este propósito, o juiz poderá, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso.

Tratando-se de imóvel rural, o § 2º do mesmo art. 4º da Lei nº 8.009/90 dispõe que a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e com relação às dívidas decorrentes de sua atividade produtiva à área limitada como pequena propriedade rural (art. 5º, inciso XXVI, da CF).

Quantos aos móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência, o art. 833, II, do novo Código de Processo Civil manteve a regra introduzida no diploma anterior pela Lei nº 11.382/06, pela qual a impenhorabilidade não alcança aqueles de elevado valor e os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.

A existência de exceções à impenhorabilidade e de tantas regras restritivas não pode ser ignorada. O legislador brasileiro não instituiu um direito absoluto, mas limitado e vinculado a um fim específico: o direito à moradia digna. A ausência de limite quanto ao valor ou tamanho do imóvel urbano destoa da própria ratio do instituto desvirtuando-o. Afinal, qual a lógica em restringir a proteção de acordo com o tamanho do imóvel rural e não fazê-lo quanto ao urbano?

A quebra da isonomia fica ainda mais evidente quando nos atentamos ao fato de que a restrição da área rural pode diminuir ou até extinguir a fonte de sustento do homem do campo, enquanto a restrição do tamanho do imóvel urbano não afeta a sobrevivência do homem da cidade que normalmente garante seu sustento com o trabalho externo. Não bastasse a antinomia valorativa do próprio ordenamento jurídico, no plano dos fatos a situação não se revela diferente.

A inexistência de restrição ao valor do imóvel dá azo a situações teratológicas, não sendo incomum a proteção de um devedor milionário diante de credores não tão favorecidos economicamente. Não é demais lembrar que quando da ampliação dos direitos do trabalhador doméstico, a LC nº 150/2015 revogou o inciso I do art. 3º, que afastava a impenhorabilidade para execução dos respectivos créditos. Desta forma, o empregado doméstico não pode mais requerer a penhora do imóvel em que trabalhava para garantir o seu salário, ainda que o imóvel seja de altíssimo valor.

É evidente que nesta época de excessivo subjetivismo judicial, a solução ideal para a questão da penhorabilidade do imóvel de elevado valor deveria ser apresentada pelo legislador, com a discriminação objetiva de limites pela extensão ou valor do bem, e restringindo a possibilidade a determinados créditos (ex: trabalhistas). Enquanto isso não ocorre, é possível a limitação da impenhorabilidade em situações absurdas com base na própria CF certificando qual é o direito patrimonial que efetivamente consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.

O que garante a proteção do direito patrimonial do devedor (propriedade) em face do direito patrimonial do credor (crédito) é a pressuposição de que o primeiro consagra a dignidade do ser humano, ao garantir a moradia, e o segundo, não. Pois bem, na prática essa pressuposição pode não se confirmar e se apresentar de forma oposta, como exemplificamos acima. A impossibilidade de penhorar um bem de família de elevado valor para executar o crédito de um trabalhador pode afetar a sua própria sobrevivência: sem receber o seu salário não conseguirá arcar com os custos de sua alimentação, saúde e até mesmo moradia (aluguel, condomínio, prestação de financiamento). Indaga-se: apenas o devedor tem direito à moradia? Apenas o devedor tem direitos existenciais e sociais?

É imperioso reconhecer que em situações muito peculiares o direito ao crédito pode estar mais próximo do cumprimento do comando constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana do que a impenhorabilidade do bem de família de elevado valor. O direito à moradia que pode estar sob risco é o do credor, e não o do devedor, pois com a arrematação do bem de elevado valor, o juiz deverá reservar para o devedor uma parcela considerável do valor obtido para aquisição de outro imóvel residencial.

Não é demais dizer que é somente na hipótese de deslocamento do fundamento axiológico (proteção da dignidade da pessoa humana) da propriedade para o crédito, do devedor para o credor, que entendemos possível afastar a proteção do bem de família de elevado valor. Em hipóteses em que o crédito não tem lastro na dignidade da pessoa humana e em direitos existenciais (credor abastado, crédito de dívidas fiscais, bancárias, etc.) ou em que o bem de família tem valor moderado, tal medida é inconstitucional.

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