A PENHORA DE PREVIDÊNCIA PRIVADA
Luís Rodolfo Cruz e Creuz
O tema escolhido é carregado e polêmico. Temos observado debates, discussões e disputas sobre o assunto, sendo nosso objetivo verificar a questão credor/devedor e a possibilidade de penhora, considerando-se princípios equitativos que devem nortear a moderna aplicação do Direito. Na lição de Ihering, em sua busca pelo sentido do direito e por suas aplicações, especifica que o Estado precisa fortalecer suas instituições para ser respeitado. Em suas palavras: “Para um estado que quer ser respeitado no exterior e manter uma posição firme e inabalável no interior de suas fronteiras não existe bem mais precioso a ser resguardado e cultivado que o sentimento de justiça da nação” (IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito).
Os tribunais brasileiros enfrentam diversos recursos questionando a penhorabilidade dos montantes reunidos a título de previdência privada (PGBL ou VGBL), especialmente em função da avaliação de sua natureza (se seriam de cunho alimentar ou não), e as razões de sua acumulação (se utilizados como aplicação financeira ou para fins efetivamente previdenciários), ou mesmo na forma de sua contribuição (diversas vezes verificamos um único aporte em valor substancial quando o devedor titular do saldo da previdência privada já estava em situação financeira deteriorada). Muitas decisões judiciais de segunda instância reconhecem a penhorabilidade dos saldos das contas de planos de previdência complementar (PGBL e VGBL). Algumas consideram que o montante depositado possui natureza de “investimento” e não “pecúlio” e que não possuem “caráter alimentar“. Contudo, existem entendimentos contrários no Superior Tribunal de Justiça – STJ – ainda que a Corte não tenha um entendimento majoritário definido. Em 2014 (13.08.2014), a Corte, no julgamento do REsp 1230060/PR, decidiu que valores até 40 salários-mínimos investidos em aplicação financeira são impenhoráveis. Isto cria um importante precedente no sentido de que estariam, em tese, liberados para serem passíveis de penhora os valores superiores a tal montante. Veremos, adiante, que o novo CPC foi elaborado exatamente neste sentido.
Temos uma clara situação em jogo. De um lado, um credor que busca a satisfação de seu crédito, e de outro um devedor que voluntariamente não quita seu débito. Para agravar, não raras vezes o credor não consegue localizar patrimônio do devedor. No campo de batalha, temos todo o arcabouço jurídico pátrio que permite que as partes adotem as melhores ações visando a satisfazer seus interesses. Credores buscam eficácia e celeridade no processo, enquanto quem está inadimplente, quando voluntariamente não quita suas dívidas, busca esconderijo na legislação em vigor, especialmente naquelas normas de cunho cível e processual, muitas vezes valendo-se de recursos procrastinatórios e medidas preventivas. Entre outras, temos nos deparado com uma “solução” lastreada no art. 649 de nosso Código de Processo Civil (“CPC“) que elenca os bens absolutamente impenhoráveis, especialmente a previsão do inciso IV, a saber:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
[…]
IV -os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3º deste artigo.
O referido § 3º foi vetado sob a alegação de que “quebra o dogma da impenhorabilidade absoluta de todas as verbas de natureza alimentar” (Mensagem nº 1047, de 6 de dezembro de 2006). Contudo, a mesma mensagem reconhece que a
proposta parece razoável porque é difícil defender que um rendimento líquido de vinte vezes o salário-mínimo vigente no País seja considerado como integralmente de natureza alimentar. […] Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral. (Ibidem – grifos nossos)
Não podemos nos esquecer, em confronto direto, de que, nos termos do art. 591 do CPC, o “devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei“.
O novo CPC (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015) regula a questão em seu art. 833, mantendo a mesma regra do atual Código, a saber:
Art. 833. São impenhoráveis:
[…]
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º.
Na novel regulação processual, contudo, o detalhamento proposto em parágrafo não foi vetado, tendo a seguinte redação:
2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º. (grifos nossos)
Verifica-se, assim, que houve expressa e definitiva intenção, clara e definida, de excluir da proteção de impenhorabilidade determinadas situações per se que extrapolam, agora em virtude de lei (quando em vigor o novo CPC), a natureza alimentar da proteção de impenhorabilidade do art. 833, IV. Ademais, o mesmo confronto anteriormente feito aqui deve ser lembrado, considerando que a redação do art. 789 do novo CPC repete aquela mesma do art. 591.
Vale lembrar que a forma de divulgação destes planos de previdência complementar (PGBL e VGBL), seja por meio de consultores financeiros, contadores, advogados ou mesmo as próprias instituições financeiras (que vendem a ideia de “blindagem patrimonial“), muitas vezes está atrelada a planejamentos sucessórios e/ou empresariais, ou mesmo como estratégia de investimentos (que visam à remuneração do montante principal investido), tudo isso em função da proteção teórica conferida pela leitura isolada do art. 649 do CPC.
Primeiro e importante ponto que devemos destacar refere-se ao fato de que o inciso IV do art. 649 do CPC parece claramente determinar como absolutamente impenhoráveis verbas de caráter alimentar e destinadas ao sustento do devedor e/ou de sua família. Mas pensamos em um questionamento mais complexo. Poderiam ser penhorados os montantes depositados em planos de previdência complementar (PGBL e VGBL), sendo eles destinados à formação de um fundo de sobrevivência do beneficiário? Temos para nós que sim.
Justificamo-nos. É possível, a primeira vista, dividirmos previdência em duas categorias, a saber, privada e pública. Não são excludentes entre si, ou seja, a previdência privada não exclui a previdência pública. Assim, havendo possibilidade de se perceber duas previdências, temos para nós que a previdência privada poderá ser passível de penhora, ainda que parcial.
O ponto central da discussão é a questão da descaracterização do produto “previdência privada” como meio de sustento e formação de um fundo de sobrevivência do beneficiário e seu consequente enquadramento como fundo de investimento. Vejamos a redação do art. 76 da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005:
As entidades abertas de previdência complementar e as sociedades seguradoras poderão, a partir de 1º de janeiro de 2006, constituir fundos de investimento, com patrimônio segregado, vinculados exclusivamente a planos de previdência complementar ou a seguros de vida com cláusula de cobertura por sobrevivência, estruturados na modalidade de contribuição variável, por elas comercializados e administrados.
Parece-nos claro que a norma atribuiu natureza de fundo de investimento aos planos de previdência complementar ou a seguros de vida com cláusula de cobertura por sobrevivência.
Ora, sendo os montantes depositados em instituições gestoras de planos de previdência complementar (PGBL e VGBL) considerados investimentos, estes entrarão no cômputo da universalidade dos bens de determinado indivíduo, assim como os rendimentos futuros, o que entendemos que afastaria a aplicabilidade e oponibilidade do disposto no art. 649, IV, do CPC, tendo em vista serem penhoráveis tais investimentos, prevalecendo o comando fixado no art. 591 do CPC. Compreender o contrário seria afirmar que os valores acumulados e rendimentos de capital do titular do plano de previdência privada seriam inatingíveis.
Temos ainda a questão dos frutos de previdência privada. Por analogia, podemos compreender ser perfeitamente viável a possibilidade de penhora destes frutos, uma vez que o próprio Poder Judiciário Federal considera correta a tributação sobre previdência privada; logo, se há tributação, há aferição de renda e, portanto, essa aferição não tem caráter alimentício, mas sim de investimento.
Lembramos, ainda, a garantia legal dada aos bens e direitos do patrimônio dos fundos de investimento especificados no já referido art. 76 da Lei nº 11.196. Tal garantia está nos §§ 1º e 2º do art. 78 da referida lei, que estabelecem que, no caso de falência ou liquidação extrajudicial da entidade aberta de previdência complementar ou da sociedade seguradora, o patrimônio dos fundos não integrará a respectiva massa falida ou liquidanda, e que os bens e direitos integrantes do patrimônio dos fundos não poderão ser penhorados, sequestrados, arrestados ou objeto de qualquer outra forma de constrição judicial em decorrência de dívidas da entidade aberta de previdência complementar ou da sociedade seguradora.
Por fim, lembramos as palavras do saudoso jurista Miguel Reale:
A aplicação do Direito envolve a adequação de uma norma jurídica a um ou mais fatos particulares, o que põe o delicado problema de saber como se opera o confronto entre uma regra “abstrata” e um fato “concreto”, para concluir pela adequação deste àquela (donde a sua licitude) ou pela inadequação (donde a ilicitude). (REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito)
E, por isso, considerar os saldos de planos de previdência complementar (PGBL e VGBL) como impenhoráveis, de maneira absoluta, soa contrário ao fim social que nossa legislação busca alcançar, frustrando e encerrando por completo as possibilidades de recuperação de créditos de devedores. Neste sentido, parece-nos tão desejável para os fins do Direito o efetivo cumprimento dos contratos e sentenças judiciais, com os devedores, efetivamente cumprindo suas obrigações, saldando suas dívidas e satisfazendo os créditos dos credores, através dos meios legais.