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PATRIMÔNIO RURAL EM AFETAÇÃO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

PATRIMÔNIO RURAL EM AFETAÇÃO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Gabriel José Bernardi Costa

 

Por mais que a figura do Patrimônio Rural em Afetação (PRA) tenha sido recentemente introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, as discussões jurídicas sobre o tema já despontam no cenário forense nacional, sobretudo no âmbito das recuperações judiciais.

Conforme os devedores de créditos garantidos por PRA venham a requerer as proteções legais da recuperação judicial, sobretudo a suspensão das pretensões obrigacionais ou executivas de titularidade dos credores dos recuperando — nos termos do artigo 6º, incisos I, II e III, da Lei nº 11.101/2005 ou do artigo 20-B, §1º, da mesma lei, em se tratando de tutela cautelar antecedente – tem sido (e se tornará cada vez mais) corriqueira a suscitação da essencialidade dos bens gravados pelo PRA como forma de obstar a sua excussão pelos credores extraconcursais.

Não obstante, a jurisprudência brasileira ainda não se atentou à incompatibilidade lógica existente entre os efeitos da recuperação judicial e o instituto do patrimônio rural em afetação, tal como previsto na Lei nº 13.986/2020, que inviabiliza qualquer análise de essencialidade desses bens.

Patrimônio rural em afetação

O patrimônio rural em afetação foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Medida Provisória nº 897/2019, posteriormente convertida na Lei nº 13.986/2020.

Em princípio, trata-se de um direito real em garantia que, quando constituído sobre um determinado bem imóvel rural, irá segregá-lo do patrimônio geral do seu titular, compondo um novo patrimônio especial; o qual, por sua vez, passará a ser vinculado juridicamente como garantia do crédito constituído por meio de uma Cédula de Produto Rural (CPR) ou de uma Cédula Imobiliária Rural (CIR).

Conforme esclarecem a Exposição de Motivos da MP nº 897/2029, assinada pelos então ministros Paulo Guedes e Tereza Cristina e pelo então presidente do Banco Central, Roberto de Oliveira Campos Neto, o PRA teria sido criado como instrumento “para reduzir custos operacionais e melhorar a qualidade das garantias oferecidas pelos produtores rurais […]” [1].

Isso se daria, conforme a própria exposição de motivos registrava, pela almejada segurança que a concedente do crédito rural disporia, em caso de inadimplência do produtor rural, uma vez que disporia de uma “[…] autorização imediata e irretratável para se apropriar do imóvel dado em garantia para posterior alienação”.

Tal segurança repousaria na possibilidade que o credor dispõe, em caso de inadimplemento de seu crédito, em exercer imediatamente o “[…] direito à transferência, para sua titularidade, do registro da propriedade da área rural que constitui o patrimônio rural em afetação, ou de sua fração, vinculada à CIR […]” (artigo 27, caput, da Lei nº 13.986/2020).

Trata-se de um verdadeiro poder jurídico, uma vez que o seu exercício concede ao credor a possibilidade de modificar a esfera jurídica do devedor, retirando dela o imóvel gravado pelo PRA e transferindo-o para o seu próprio patrimônio. Essa adjudicação patrimonial não é definitiva, uma vez que a ela se aplica a vedação à “lex comissoria”.

O credor está obrigado a promover o subsequente leilão do imóvel, após a excussão da garantia, com vistas a arrecadar o valor da dívida mediante a sua alienação a terceiros (artigo 28, §§1º a 3º, da Lei nº 13.986/2020), à semelhança do que ocorre com os bens garantidos em alienação fiduciária, conforme Lei nº 9.514/1997.

Aliás, a própria Lei nº 13.986/2020, em seus artigos 7º, §3º e artigo 28, §§2º e 3º, prevê a aplicação subsidiária da Lei nº 9.514/1997 ao procedimento de excussão do PRA. No entanto, é preciso ter cautela para não interpretar essas disposições como uma submissão do PRA às normas da alienação fiduciária, principalmente quando a questão repousar na extensão dos efeitos da recuperação judicial ao crédito garantido pelo PRA.

Relação entre PRA e alienação fiduciária

A relação existente entre a Lei nº 13.986/2020, que instituiu e disciplina o PRA, e a Lei nº 9.514/1997, que disciplina a alienação fiduciária em garantia, não é uma relação hierárquica. Ou seja, não se trata de uma relação de subordinação, mas de coordenação entre os dois instrumentos normativos.

Isso significa que o regime jurídico do PRA está vinculado e depende de elementos previstos dentro do regime aplicável à alienação fiduciária de bens imóveis, uma vez que o procedimento de excussão da garantia do PRA extrai o conteúdo de suas normas daquele outro instituto.

Mas, por se tratar de uma relação horizontal e não vertical, a extensão das normas da alienação fiduciária deve ser interrompida sempre que houver uma incompatibilidade lógica ou jurídica entre os dois subsistemas. É nesse sentido que se deve interpretar a previsão de que a Lei nº 9.614/1997 “aplica-se, no que couber” (artigo 28, §2º, Lei nº 13.986/2020) e desde que “observado o disposto nesta Lei” (artigo 7º, §3º, Lei nº 13.986/2020).

Primeiramente, a aplicação das normas sobre alienação fiduciária tem um caráter procedimental, com vistas a aproveitar o já consolidado procedimento de excussão da alienação fiduciária de imóveis, sobretudo porque o artigo 28, §2º, Lei nº 13.986/2020 remete expressamente aos artigos 26 e 27 da Lei nº 9.514/1997, os quais tratam especificamente das etapas extrajudiciais de excussão da garantia fiduciária.

Em segundo lugar, existe uma diferença jurídica material que impede a completa extensão do regime jurídico da alienação fiduciária ao PRA, sob pena de suprimir por completo a autonomia e eficácia desse outro instituto.

Essencialidade do PRA

Como dito anteriormente, o PRA se caracteriza pela cisão do patrimônio geral do devedor, criando um sub-patrimônio de caráter especial e afetado ao cumprimento e garantia do crédito veiculado na CPR ou CIR respectiva.

Isso é um fator diferencial substancial frente à alienação fiduciária; uma vez que, no PRA, o bem imóvel dado em garantia jamais deixa a titularidade do devedor. O que sucede, por outro lado, é a desvinculação desse bem com as demais posições jurídicas do devedor (artigo 10 da Lei nº 13.986/2020), de modo que nenhuma outra obrigação do seu titular possa alcançar esse patrimônio de afetação.

Isso, por si só, já afastaria o PRA dos efeitos da recuperação judicial. Não obstante, o artigo 10, §4º, inciso I, da Lei nº 13.986/2020 é expresso ao reafirmar que o PRA ou sua fração “não são atingidos pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário rural”.

A natureza extraconcursal do crédito garantido por PRA e as proximidades com o regime da alienação fiduciária poderiam, assim, suscitar a aplicação da norma disposta na parte final do artigo 49, §3º, da Lei nº 11.101/2005, que proíbe a retirada dos bens de capital essenciais à atividade empresarial da empresa recuperada do seu estabelecimento, durante a vigência do “stay period”, ainda que se tratem de bens gravados por alienação fiduciária.

No entanto, é necessário se atentar a uma limitação intrínseca do PRA: ele não atinge as lavouras que possam eventualmente existir no imóvel.

Isso está expressamente disposto no artigo 7ª, §1º e artigo 10, §4º, ambos da Lei nº 13.986/2020; os quais estendem a incidência do PRA ao terreno, acessões, benfeitorias, mas exclui as lavouras, bem como os móveis e os semoventes presentes no imóvel.

A circunstância das lavouras e dos bens móveis não comporem o patrimônio rural em afetação significa que eles permanecem incluídos no patrimônio geral do devedor. E assim, ou continuam servindo como parte da garantia geral do devedor (artigo 391 do CC/02 e artigo 789 do CPC/15), ou podem ser gravados por outras garantias especiais, como alienações fiduciárias ou penhores.

Em qualquer caso, como são as lavouras ou os rebanhos os bens utilizados pelas empresas rurais e não o direito de propriedade do terreno, só eles podem ser classificados como bens de capital.

De modo que, mesmo que o PRA venha a ser excutido por algum credor, o devedor em recuperação judicial ainda permaneceria como titular da lavoura ou de seus rebanhos necessários ao funcionamento da sua atividade empresarial. Nessa situação, ocorreria apenas uma modificação na posição jurídica da empresa recuperada, porque ela passaria a explorar os bens de capital (lavoura, por exemplo) sobre um imóvel de terceiro; o que poderia suscitar o estabelecimento de alguma remuneração ou compensação ao novo titular o imóvel excutido pelo uso de sua superfície.

Conclusão

A exclusão de lavouras, bens móveis e semoventes do patrimônio rural em afetação, igualmente afasta a vinculação desses bens como garantia do crédito veiculado pela CIR ou CPR.

Por conclusão lógica, o credor, quando pretende exercer seu poder de excussão da garantia, em virtude do inadimplemento causado pelo devedor (ainda que se trate de um devedor em recuperação judicial) só poderá alcançar aquilo que esteja incluído no patrimônio de afetação: o terreno e eventuais benfeitorias a ele vinculado. Como o devedor da CIR ou CPR são produtores rurais, os bens de capital potencialmente essenciais à sua atividade correspondem justamente aos que se encontram excluídos do âmbito da garantia.

Consequentemente as alegações de essencialidade dos bens gravados por PRA teriam de demonstrar de que modo os imóveis afetados, independentemente de suas lavouras ou rebanhos, seriam imprescindíveis à operação econômica. Algo que, lógica e taticamente seria difícil de comprovar.

REFERÊNCIAS

https://www.conjur.com.br/2025-ago-29/patrimonio-rural-em-afetacao-na-recuperacao-judicial/