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A PATERNIDADE RESULTANTE DO ATO DE VIOLÊNCIA SEXUAL: UMA ALTERNATIVA OU UM DEVER JURÍDICO E MORAL DO HOMEM?

A PATERNIDADE RESULTANTE DO ATO DE VIOLÊNCIA SEXUAL: UMA ALTERNATIVA OU UM DEVER JURÍDICO E MORAL DO HOMEM?

Aline Oliveira Mendes de Medeiros

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Violência Sexual contra o Sujeito Masculino: a Mulher enquanto Autora e o Homem enquanto Vítima. 3 Aspectos Jurídicos da Violência Sexual contra o Homem. 4 Possibilidade de Gravidez da Estupradora e os Transbordamentos Jurídicos e Morais do Ato. 5 Definições Conclusivas. 6 Referências Bibliográficas.

 

1 Introdução

Este artigo tem por base a análise da possibilidade de relativização do direito à paternidade quando proveniente do delito de estupro ou de violação sexual mediante fraude, verificando os critérios morais e legais que circundam o fato.

Com este objetivo, o primeiro item retrata as circunstâncias morais e sociais da violência sexual praticada contra o sujeito do sexo masculino, estando a mulher no polo de autora e o homem no polo de vítima, dissecando as nuances relacionadas à matéria, dando especial relevo à possibilidade de o homem ser estuprado, como meio de descortinar a população para a aceitação de que este fato acontece no plano dos fatos, visando incentivar os homens a formalizarem estes atos, por meio de denúncias, abrindo precedentes para que a polícia e o judiciário possam agir, com o alvo de coibir esta prática delitiva e acobertar o homem com o manto protetivo da dignidade da pessoa humana.

Em segundo instante, será relacionada a proteção jurídica no que tange à matéria, momento em que será estudado desde o posicionamento constitucional até o infraconstitucional, transmitindo ao leitor o parecer que o arcabouço jurídico brasileiro transfere à área, de modo a localizá-lo legalmente.

Por fim, o artigo se desenvolverá efetuando uma junção entre a parte moral que a sociedade acredita e a parte jurídica que o legislador promulga aos cidadãos, de maneira a extrair qual seria a melhor alternativa para os casos de gravidez resultantes de violência sexual, quando a vítima for homem, expressando a questão do aborto sentimental ou humanitário e/ou a possibilidade de relativizar o direito à paternidade, conferindo ao homem a decisão de aceitar ou não o filho e as peculiaridades resultantes do ato.

2 A Violência Sexual contra o Sujeito Masculino: a Mulher enquanto Autora e o Homem enquanto Vítima             

A questão do estupro praticado contra o homem compreende um tema em que a doutrina é omissa se comparada ao fato de que a violência sexual não escolhe o sexo de suas vítimas, ademais, estudos efetuados na Universidade de Massachusetts apontam que nos Estados Unidos, em cada seis homens, um sofrerá algum tipo de abuso de cunho sexual, enquanto entre as mulheres isto ocorrerá em uma a cada quatro, isto considerado apenas até completar 16 anos, o que significa dizer que a probabilidade desta espécie de violência ocorrer pode aumentar no transcorrer do tempo.

Dados apontam que o trauma do abuso sexual é profundo em qualquer dos sexos, porém, no caso dos sujeitos masculinos o impacto da violência costuma ser mais intenso, o que dificulta a sua recuperação, como depreende o estudo efetuado pelo psicólogo da universidade, David Lisak (2011, s/p) [1], que trabalha em uma ONG que auxilia na recuperação dos sujeitos masculinos.

De seu trabalho, o mesmo extrai que a vergonha e o estigma por ter sido estuprado causam o isolamento e a dificuldade em trabalhar com a situação, ocasionando o favorecimento do delituoso através da omissão da vítima, pois a vergonha atua feito uma mordaça emudecendo o vitimizado e extraindo sua dignidade ao consumir silenciosamente o seu ser.

O ato de ser abusado abala o psicológico do homem, em virtude de, aparentemente, afrontar a sua masculinidade, resultando em seu silêncio corrosivo, visto que o ato vai de encontro com a ideia tradicional de que o homem deve comandar a sexualidade, afinal, desde os primórdios era a mulher quem se submetia aos caprichos do macho alfa, vivendo somente para a sua satisfação, ao responsabilizar-se por efetuar a limpeza da casa, cuidar dos filhos, e de si mesma, visando, simplesmente, atender as expectativas de seu varão, enquanto o macho responsabilizava-se pela caça, com vistas a promover o sustento da família. Nada obstante, Cornwall e Jolly (apud Marino e Cabette, 2012, p. 268) depreendem que:

A visão monocromática do sexo no discurso do desenvolvimento representa as mulheres como vítimas impotentes, os homens como predadores sexuais vorazes e as crianças como seres inocentes. As pessoas trans simplesmente não são mencionadas. As crianças são um grupo para o qual se pressupõe que a sexualidade não constitui uma questão relevante.”

São estas ideias preconcebidas que dificultam a saída das ocorrências do mundo dos fatos para o mundo jurídico, concomitante com a ideia de sujeira e de vergonha que se encontram vinculadas ao ato de ser estuprado. Consciente disto Vigarello (apud MARINO; CABETTE, 2012, p. 271) assevera que:

O estupro provoca uma lesão ao mesmo tempo semelhante e diferente das outras. Semelhante porque é o efeito da brutalidade. Diferente porque é muitas vezes pouco consciente no agressor, apagada pela efemeridade do desejo, ao passo que intensifica a vergonha na vítima, a ideia de uma contaminação pelo contato: a indignidade atravessando a pessoa atingida para transformá-la aos olhos dos outros. Daí a sensação de aviltamento criando obstáculos à queixa, inclinando a vítima a se calar e os observadores a acusá-la. Situação muito especial, em que a violência pode se tornar menos visível, empurrada para segundo plano, mascarada pela rejeição de que a vítima é objeto.

E continua o autor (1998, p. 107):

“(…) é o contato sofrido que causa a indignidade da vítima, os corpos comunicando suas marcas, transformando em sordidez pública o efeito de sua promiscuidade. A suspeita inicial se funda nesse imaginário do contato: a pessoa atingida não é capaz de acusar, pois parece, ela própria, contaminada. O que torna contraditório o trabalho do juiz clássico, que afirma claramente a independência do corpo e da alma, restringindo a lesão do estupro apenas à esfera do corpo, ao passo que sente imediatamente o contrário, diante da realidade do crime, e tende muitas vezes a não condenar. Raridade das queixas, raridade das penas, a vítima é encerrada no impudor que desejava denunciar. A violência sofrida continua sendo uma violência ocultada.”

Este sentimento refere-se à vitimização secundária que faz com que o crime se perpetue no psicológico da vítima, fato este que torna o exame de corpo de delito uma nova consumação do ilícito, posto que a vítima passa a rememorá-lo em sua mente, o que intensifica a vergonha por ter sido vítima do crime.

Isto conjunto ao fato de que a cultura humana profana, desde o início dos tempos, o homem como sendo líder, enquanto à mulher incumbe conformar-se com o que ele lhe designa, cedendo aos seus comandos e servindo aos seus ideais, ideia esta que é transmitida inclusive pela Bíblia, a qual apregoa a submissão feminina em Efésios 5.22 a 25, colocando a mulher na posição de fragilidade enquanto o homem se posiciona como responsável e protetor.

No entanto, quando o delito de abuso sexual se consuma, esta posição milenar se rompe. Diante disto não é apenas o direito à liberdade sexual que se desfaz, mas também a ideologia aprendida secularmente relacionada à sua masculinidade. Esta ruptura relacionada com a ordem natural das coisas causa confusão mental na vítima, porque, conforme a cultura aprendida e disseminada em sociedade, os homens não deveriam ser vítimas do delito de estupro. Como explica a professora de enfermagem da Universidade Columbia, Elizabeth Saweyc (2011, s/p), o impacto é tão profundo que ocasiona até mesmo uma recusa em assimilar o abuso por parte dos meninos.

Ademais, quando o delito é cometido por uma mulher, a sociedade vê o crime como se fosse a primeira transa de um homem, ignorando o sofrimento psicológico do jovem, que cala-se incompreendido e atormentado em sua dor. Desta forma, vítima da estupradora e da incompreensão de sua família e amigos, as tendências a desenvolver doenças psicológicas aumentam, por este fato, é imperioso que a nuvem da ignorância seja extraída da sociedade, para que seus olhos abram-se para estas modalidades de ocorrência delitiva, elucidando-lhes quanto ao clamor por amparo que as pessoas do sexo masculino precisam no que tange ao respeito por sua liberdade e dignidade sexual.

O pensamento patriarcal atenua o impacto da violência contra a mulher, dando até mesmo respaldo social para que ela se perpetue, tanto que um estudo realizado pela IPEA (apud SILVEIRA, 2015, s/p) afirmou que a violência relacionada à mulher:

a) é visto como aceitável (dentro de alguns limites); b) é naturalizado como algo pertencente à sociedade e inerente às relações entre homens e mulheres; c) o agressor tem sua responsabilidade atenuada, seja porque não estava no exercício pleno da consciência, ou porque é muito pressionado socialmente, ou porque não consegue controlar seus instintos; d) e a mulher é vista como responsável pela violência, porque provocou o homem, seja porque não cumpriu com seus deveres de esposa e de ‘mãe de família’, seja porque de alguma forma não se comportou da maneira esperada socialmente.

O que denota a desigualdade de entendimentos que existem em relação aos homens e às mulheres, principalmente no que tange aos temas de ordem criminal sexual, é o pensamento patriarcal, em que homem é considerado como o soberano que precisa disciplinar sua esposa, tanto que o próprio Código Penal de 1940 evidenciou este pensamento ao disciplinar que o casamento com a ofendida seria causa de extinção da punibilidade do delito contra a ordem sexual feminina, por considerá-lo como motivo de desonra familiar, e a união entre o delituoso e a vítima restaurariam o mal causado pelo crime, recuperando a dignidade social da mulher.

Verifica-se a aberração jurídica que a letra anterior do código apregoava, pois, além de ser estuprada, a vítima era condenada a conviver em matrimônio com uma pessoa que nunca a respeitou e nem a viu como um ser humano, pois se a visse não teria ofendido sua integridade física, psíquica e dignidade sexual.

As condições de afloração da sexualidade sempre foram desiguais entre homens e mulheres, posto que, enquanto eles lideravam, suprindo as necessidades econômicas da família, e detinham a capacidade, impulsionada pela sociedade, de manter relações extraconjugais, inclusive com criadas e ex-escravas, as mulheres guardavam em si o ensinamento da proibição e do desvalor social para tudo que se relacionasse a sua lascívia sexual, sendo, inclusive, culpadas socialmente pelo ato de estupro que viessem a sofrer, posto que a desvalorização da ação acarretava na vítima a sua desonra social.

Nada obstante, até mesmo no plano jurídico a mulher era desprestigiada de respaldo suficiente. Para Silveira (2015, s/p), a mulher era considerada como um “objeto de satisfação sexual do homem“, consagrando em seu ser o dever de fidelidade e a proibição de trabalhar fora do âmbito familiar. Diante disto, conforme Teixeira (apud SILVEIRA, 2015, s/p):

Vivia-se em uma sociedade patriarcal, a mulher era vista como propriedade do homem, com finalidade apenas de gerar filhos e satisfazer os desejos e caprichos dos seus maridos. Desta forma, estas passaram a acreditar que sua existência estaria restrita a reprodução e a sexualidade passiva, ficando sujeitas às mais variadas formas de violência, físicas e psicológicas, praticadas pelo marido. Outro fator que contribui para aceitação desta submissão e violência por parte das mulheres é o fator da dependência financeira, uma vez que não era permitido que as mulheres trabalhassem.”

Por este motivo, os movimentos feministas têm ganhado força na atualidade, fazendo com que as mulheres procurem inverter esta posição de submissão, desde o século XIX, famoso pelas mobilizações sociais promovidas pelas mulheres na seara trabalhista, buscando inovações sociais e legislativas, como elucida Barsted (apud SILVEIRA, 2015, s/p):

“(…) denunciando desigualdades, propondo políticas públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na interpretação da lei. Desde meados da década de 1970, o movimento feminista brasileiro tem lutado em defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais de Direitos Humanos, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de mulheres, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado, tais como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência doméstica, a igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos reprodutivos, etc.”

Cabe salientar que, mesmo com o pensamento patriarcal, os homens sempre foram vítimas de delitos de ordem sexual, porém, quanto mais machista a sociedade era, maior seria o silêncio da vítima e piores as represálias que a própria sociedade efetuava contra ele. Outrossim, em 1940, com a promulgação do Código Penal, a cogitação de a mulher constranger o homem a ter conjunção carnal seria uma ideia impensável, tanto que os doutrinadores atuais custam a habituar-se a este entendimento. Isto se deve à clandestinidade que é dada ao crime, em razão do pensamento machista impregnado na sociedade, que leva o homem a permanecer calado.

3 Aspectos Jurídicos da Violência Sexual contra o Homem      

A proteção jurídica conferida ao homem inicia-se na Constituição Federal, vertente que oferece base para a existência das demais normas legais. Diante disto, é sabido que o Estado Democrático de Direito fundamenta sua existência na dignidade da pessoa humana, a qual compreende a fonte que sacia a sede dos cidadãos ao fornecer vida ao ordenamento jurídico pátrio, posto que da mesma nenhuma norma pode desvincular-se, sob pena de afronta à Constituição – de inconstitucionalidade (art. 1º, inciso III).

Ao folhear este caderno de leis será possível constatar como objetivos fundamentais de sua vigência a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I), bem como a promoção do bem de todos, indistintamente (art. 3º, inciso IV). Para que isto se consagre, a Carta Magna petrificou em seu art. 5º a igualdade indistinta frente à lei, garantindo aos viventes e transeuntes deste país “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança“, esculpindo expressamente que homens e mulheres serão igualados em direitos e obrigações, estabelecendo o fato de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo a não ser em virtude de lei (art. 5º, inciso I e II).

Pondo como invioláveis “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (art. 5º, inciso X), expressando como direito social a segurança (art. 6º, caput), diante disto, emergiu o Código Penal ainda em 1940, visando dar tutela específica aos crimes contra a liberdade e dignidade sexual da pessoa humana, definindo em seu Título VI os crimes contra a dignidade sexual, e no Capítulo I do mesmo, os crimes contra a liberdade sexual, consoante com a redação nova dada no ano de 2009, através da Lei nº 12.015, a qual trouxe respaldo jurídico ao homem como sujeito passivo do delito de estupro, juntando os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor em um só tipo penal.

Conforme depreendeu do estudo até então efetuado, o homem desde os primórdios foi vítima de delitos contra a sua liberdade sexual, como o estupro, por exemplo, no entanto, apenas em 2009 recebeu proteção jurídica contra o crime. Isto evidencia o quanto este tema tem permanecido esquecido entre os estudiosos, e diante disto, ganhado vida própria pelas ruas das cidades, recuperando suas forças através das lacunas ofertadas pelo legislador e imperando-se no silêncio atemorizado das vítimas solitárias em suas lutas pessoais.

Destaca Bitencourt (2012, p. 758) que as modificações ocasionadas por esta lei referem-se ao fato de que o capítulo em questão despiu-se de tutelar os costumes e vestiu uma roupagem atual e condizente com as necessidades evidenciadas socialmente, abandonando a proteção da moral média da sociedade, onde se resguardava, simplesmente, os bons costumes [2], para proteger especificamente a dignidade dos ofendidos, vestindo-se de proteção de cunho sexual.

A nova roupagem trazida pela lei acobertada pela dignidade do ser humano em seu aspecto sexual, visando proteger os direitos a ela inerentes, como, por exemplo, sua liberdade, integridade física, vida e honra, e resguardando, em segunda instância, a moralidade pública sexual, padronizando as condutas dos indivíduos, de forma a efetuar um resgate de valores, onde o Estado não seja sobrepujado.

O bem jurídico protegido é a liberdade sexual do homem e da mulher, consubstanciada pela faculdade que ambos possuem de escolher livremente seus parceiros sexuais, no entender de Bitencourt (2013, p. 47), podendo recusar, inclusive, seu próprio cônjuge se assim desejarem.

Protege-se a liberdade individual, em sua expressão mais elementar, acobertando com o manto jurídico a intimidade e a privacidade, que atingem sua plenitude ao abraçarem com o véu jurídico a liberdade carnal, a qual deve ser respeitada por todos, indistintamente, seja o cônjuge ou não, tratando-se de prostituta ou não. Conforme o autor (2013, p. 48), a liberdade sexual do homem e da mulher refere-se ao:

“(…) reconhecimento do direito de dispor livremente de suas necessidades sexuais ou voluptuárias, ou seja, a faculdade de comportar-se, no plano sexual, segundo suas aspirações carnais, sexuais, lascivas e eróticas, governada somente por sua vontade consciente, tanto sobre a relação em si como em relação a escolha de parceiros. Em outros termos, reconhece-se que homem e mulher têm direito de negarem-se a se submeter à prática de ato lascivos ou voluptuosos, sexuais ou eróticos, que não queiram realizar, opondo-se a qualquer possível constrangimento contra quem quer que seja, inclusive contra o próprio cônjuge, namorado(a) ou companheiro(a) (união estável); no exercício desta liberdade podem, inclusive, escolher o momento, a parceira, o lugar, ou seja, onde, quando, como e com quem lhe interesse compartilhar seus desejos e necessidades sexuais. Em síntese, protege-se, acima de tudo, a dignidade sexual individual, do homem e da mulher, indistintamente, consubstanciada na liberdade sexual e no direito de escolha.”

Ensina Gonçalves (2012, p. 516) que a livre escolha do parceiro sexual pode ser violada mediante violência ou grave ameaça, caracterizada no delito de estupro (art. 213 do CP), ou através de fraude, definido no crime de violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP).

O delito de estupro caracteriza-se pelo ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso“, ou seja, o crime consuma-se na ação de constranger qualquer pessoa, seja homem ou mulher, a praticar o ato contra sua vontade, ferindo gravemente os preceitos estabelecidos pela Carta Magna.

Assevera Bitencourt (2012, p. 761) que o tipo penal do “estupro passou a abranger a prática de qualquer ato libidinoso, conjunção carnal ou não, ampliando a sua tutela legal, para abarcar não só a liberdade sexual da mulher, mas também a do homem“. Para Nucci (2009, p. 874), “constranger significa tolher a liberdade, forçar ou coagir. Nesse caso, o cerceamento destina-se a obter a conjunção carnal“.

Na definição de Capez (2012, p. 57), constranger se refere ao ato de “forçar, compelir, coagir alguém a: (a) ter conjunção carnal; ou (b) a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A conjunção carnal refere-se à cópula vagínica, isto é, a efetiva penetração do membro masculino viril na vagina (ainda que parcial), enquanto ato libidinoso caracteriza-se por qualquer outra forma de realização do ato sexual que não seja a conjunção carnal, refere-se aos coitos anormais, como, por exemplo, a cópula anal ou oral.

Diante disto, o “ato libidinoso é aquele destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante abrangente, na medida em que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que tenha por finalidade a satisfação da libido“.

Neste delito a vítima pode ser obrigada a ter uma conduta ativa, ao proceder com a prática de ato libidinoso no agente, como, por exemplo, realizar sexo oral, introduzir dedos na vagina, realizar coito anal ou vaginal, apalpar seus seios, etc., ou uma conduta passiva, deixando que o agente a possua sexualmente, da forma como lhe convier. Destaca Gonçalves (2012, p. 517) que:

Para que haja o crime, é desnecessário contato físico entre o autor do crime e a vítima. Assim, se ele usar de grave ameaça para forçar a vítima a se automasturbar ou a introduzir um vibrador na própria vagina, estará configurado o estupro. Da mesma maneira, se ela for forçada a manter relação com terceiro (o agente obrigar duas pessoas a fazerem sexo) ou até com animais. O que é pressuposto do crime, em verdade, é o envolvimento corpóreo da vítima no ato sexual. Por isso, se ela for simplesmente obrigada a assistir a um ato sexual envolvendo outras pessoas, o crime é o de constrangimento ilegal (art. 146) ou, se a vítima for menor de 14 anos, o de satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A).” (grifos da autora)

O delito de estupro se configura através das elementares de violência ou grave ameaça, sendo que a primeira modalidade refere-se a “toda forma de agressão ou emprego de força física para dominar a vítima e viabilizar a conjunção carnal ou outro ato de libidinagem“, enquanto a segunda diz respeito à “promessa de mal injusto e grave, a ser causado na própria vítima do ato sexual ou em terceiro“, conforme ensina Gonçalves (2012, p. 518).

Outra modalidade de delito expressa no código penal contra a liberdade sexual da vítima refere-se ao ato de praticar conjunção carnal mediante fraude, cuja tipificação expressa “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima“. Nesta espécie delitiva o sujeito ativo, conforme Capez (2012, p. 71), pode ser qualquer pessoa (homem ou mulher, inclusive homem com homem e mulher com mulher), uma vez que para a configuração delitiva não interessa ao direito se a pessoa é virgem ou honesta, pois não se exclui da proteção jurídica a prostituta, “que embora mercantilize o seu corpo, não perde o direito de dele dispor quando quiser” (2012, p. 79).

Para Bitencourt (2012, p. 66), o direito visa proteger a liberdade sexual do sujeito que tem sua vontade viciada em virtude do emprego de fraude pelo sujeito ativo, esta fraude atua induzindo a vítima a erro em relação ao seu parceiro sexual. A ação de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso tem como meio de execução a fraude, a qual compreende “o engodo, o ardil, o artifício que leva ao engano“, desta forma, “a fraude deve constituir meio idôneo para enganar o ofendido sobre a identidade pessoal do agente ou sobre a legitimidade da conjunção carnal ou do ato libidinoso diverso. Contudo, a fraude não pode anular a capacidade de entendimento ou mesmo de resistência da vítima“, pois neste caso, se configurará o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

Para se configurar a fraude a vítima precisa ser enganada pelo agente, é preciso que a vítima consinta com a prática do ato mediante erro, “é preciso o emprego de artifícios e estratagemas, criando uma situação de fato ou uma disposição de circunstâncias que torne insuperável o erro do ofendido“, e como exemplos a doutrina traz a simulação de casamento pelo agente, a substituição de uma pessoa por outra, as hipóteses de casamento por procuração, etc.

Por outro meio que impeça a livre manifestação da vontade da vítima, esta forma deve assemelhar-se à fraude, pois deve conter em si a mesma capacidade para ludibriar a vítima, com a condição de não inviabilizar a vontade da vítima. O elemento subjetivo desta modalidade delitiva é o dolo “constituído pela vontade consciente de ter conjunção carnal com a vítima, ou praticar outro ato libidinoso, ou de permitir que com ela se pratique, fraudulentamente, ou seja, com o emprego de fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a sua livre manifestação de vontade“.

Expresso os aspectos jurídicos atinentes aos delitos, é imperioso retratar, ante a possibilidade de gravidez do sujeito ativo mulher, como poderia o homem, vítima do delito de estupro do qual resultou a gravidez, proceder com relação à criança? Possui ele dever jurídico ou moral de assumir a paternidade? O mesmo encontra respaldo no aborto sentimental? Estes pontos serão retratados no próximo item.

4 Possibilidade de Gravidez da Estupradora e os Transbordamentos Jurídicos e Morais do Ato           

No que tange à consumação do delito, foi visto até então que a cultura machista que predomina na sociedade, recusa-se a admitir o homem como vítima do delito de estupro ou de violação sexual mediante fraude, no entanto, a possibilidade existe no mundo dos fatos e no mundo jurídico e, enquanto a doutrina recusar-se a apreciar e estudar suas peculiaridades, os magistrados não terão oportunidade de apreciar casos concretos, em razão da vergonha e da negação relacionada com a matéria.

Afinal, conforme a seara médica, no que se refere “à asfixia mecânica nas modalidades de enforcamento e de estrangulamento, uma das consequências apontadas pela área médica é a turgescência peniana ou ereção e, em alguns casos, a ocorrência de ejaculação” em um fenômeno de reflexo, como ensino Gomes (apud MARINO; CABETTE, 2012, p. 273). Estes orgasmos podem ser produzidos através do ato de enforcamento, o que tem incluído a ação em fantasias eróticas, caracterizado pela constrição espontânea do pescoço, através de um laço ou das mãos, com a intenção de ocasionar prazer, por meio da ereção, contudo, comumente tem sobrevindo o estado de inconsciência e subsequentemente a morte da vítima antes de ela ter alcançado o prazer pretendido.

Por meio da “suspensão completa, devido à perda de tonicidade e eventual repleção das vesículas seminais, poderá ocorrer a ejaculação post mortem e o ingurgitamento hipostático dos corpos cavernosos penianos“. O curioso neste iter criminis é que, de acordo com Marino e Cabette (2012, p. 274):

“(…) no caso de morte da vítima, poderá caracterizar o estupro com resultado morte (art. 213, § 2º, do Código Penal) ou, ainda o crime de estupro em concurso formal com o crime de vilipêndio a cadáver (arts. 213, 212 e 70, todos do Código Penal), se o agente sabia que a vítima estava morta e agiu com o propósito de aviltar o cadáver ou suas cinzas.”

Estes fatos coadunados com o acréscimo de medicamentos de disfunção erétil podem facilitar com que a mulher atue como sujeito ativo no delito de estupro, ao produzir no homem uma ereção reflexa [3] ou psicogênica [4]. O fato é que hipóteses não faltam para caracterizar o estupro e diante dele a possibilidade de a vítima engravidar a estupradora, principalmente se a gravidez era pretendida pela agente antes mesmo de planejar a consumação do delito, isto justifica a necessidade de abertura doutrinária atinente a matéria, de maneira a oferecer respaldo jurídico suficiente para que a vítima possa proteger-se legalmente.

Importa salientar que estas modalidades delitivas encontram-se esculpidas no Código Penal, não havendo como negar sua ocorrência no plano prático. Ademais, conforme o site da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina, a média de cada trimestre do ano de 2014 relacionados a estupros ocorridos em seu solo é de 800 (figura 1), destes não há como precisar quais se referem a homens ou não, porém, pesquisas jurisprudenciais apontam que não há nenhum delito de violência sexual em que a mulher atua como sujeito ativo contra homem sendo discutido no judiciário, o que não afasta a sua possibilidade de ocorrência, apenas evidencia que o pensamento machista imperioso na sociedade encerra por calar as vítimas masculinas, fazendo com que sua dor ecoe somente em suas mentes.

Figura 1 – Estupros relacionados ao ano de 2014       

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina.    

O problema da questão é que o site da SSP de SC sentenciou que no ano de 2015 a média trimestral de estupro permaneceu igual ao do ano de 2014, fazendo da casa dos 800 o seu domicílio (Figura 2), instante em que novamente as vítimas não estavam caracterizadas, estando, então, incluídos neste número, homens e mulheres, fato este que contribui para com a doutrina atual, pois demonstra que os homens estão formalizando as ocorrências de estupro e, com isto, promovendo para que a doutrina abra vistas a estas modalidades delitivas, abrindo parecer para o estudo desta prática delitiva e permitindo que o judiciário possa atuar através da aplicação da lei aos casos práticos, contribuindo para a inibição desta prática ilegal e para a expansão do véu protetivo da dignidade da pessoa humana, também, ao homem no que tange ao abrigo de sua dignidade e liberdade sexual.

Figura 2 – Estupros relacionados ao ano de 2015       

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina.

Ocorre que, sendo a mulher o sujeito ativo do delito de estupro, a probabilidade de que a mesma venha a engravidar no ato ilícito aumenta, visto que será ela quem estará dominando a ação, e muitas vezes a mesma atua nesta modalidade de ilicitude em razão de querer engravidar do sujeito passivo, por ambição, por exemplo. Diante disto, prevê o Código Penal no art. 234-A, inciso III, que se do crime resultar gravidez a pena será aumentada em metade. Ademais, não paira dúvida sobre a aplicabilidade do dispositivo, quando a mulher for estupradora, pois a mesma deverá ser sancionada por todas as condutas ilícitas que venha a praticar, não sendo correto que o homem, além de ter sido vítima de um delito, tenha que vir a arcar com o sustento de um possível filho proveniente do ato.

A problemática circunda o fato de o homem não ficar sabendo da gravidez no período da gestação, instante em que seria possível que o mesmo adentrasse na esfera jurisdicional pretendendo a sentenciação do aborto humanitário ou sentimental, tutelado pelo art. 128, inciso II, do CP, caso em que a justiça brasileira torna impunível o aborto praticado pelo médico nos casos provenientes de estupro, sendo a vítima procurada pela estupradora somente após o nascimento da criança, com a pretensão de alcançar direitos na esfera cível (no que se refere à esfera patrimonial, ocasionando problemas de sucessão hereditária, pensão alimentícia, gastos com a criação de um filho, alimentos gravídicos), para o filho fruto do crime, isto sem contar nos problemas atinentes ao aspecto sentimental (psicológico) de saber que além de ter visto a sua carne e dignidade sexual violada por alguém, ainda precisaria conviver com o fato de este ato ter resultado em uma criança.

Imagine que uma mulher acaricie e seduza um menor de 13 anos para com ele praticar conjunção carnal, visando exatamente a gravidez para locupletar-se com a maternidade de um herdeiro abastado e dos recursos provenientes de uma robusta pensão alimentícia, considerando o extenso patrimônio da família do menor. E, se assim não for, mesmo que a gravidez se constitua em algo não desejado para a autora do estupro (seja do vulnerável ou de qualquer outra situação não mencionada neste trabalho, mas passível de ocorrência), isso não exclui sua responsabilidade pela conduta e seus resultados na medida em que atingem mais intensamente a vítima, que deverá arcar com os deveres advindos da paternidade.” (COSTA, 2014, s/p) [5]

Da conduta ilícita da mulher resultará inúmeros danos, tanto para o menor quanto para sua família, e inclusive para a criança proveniente do delito. Para o doutrinador Nucci (apud SANTOS, 2014, s/p) o aborto humanitário somente é lícito em razão de que o ato de estupro ofende demasiadamente a mulher, e o fato de a mesma ter que gerar um filho em seu ventre proveniente do delito ofenderia sua dignidade, ocasionando profundos abalos psicológicos, entendimento este que resultou na excludente de ilicitude do art. 128, inciso II, do CP.

Portanto, não sendo o homem o gestante não haveria motivos para que o mesmo sentisse sua dignidade ofendida, o que afastaria a aplicabilidade deste dispositivo tornando o ato do aborto um ilícito, e deixando para a mulher todas as responsabilidades pelo transbordamento do ato criminoso, afastando, desta forma, a necessidade de o homem cooperar financeira ou sentimentalmente com relação à agressora e à criança, resultante da agressão.

Para Nucci e Santos (2014, s/p), o pedido, por parte do vitimizado, pelo abortamento da gestante não se enquadra dentro dos limites da lei, e seria considerado inconstitucional em razão do direito à inviolabilidade da integridade corporal da gestante, o que, no entender deste estudo, não seria, pois, mesmo o homem não sendo gestante, ele possui o mesmo teor de participação na gravidez e, sendo este resultado de um ilícito, ofenderia sua dignidade da mesma forma que ofende a da mulher vitimizada pelo delito, quando ela é a vítima do crime.

Entendimentos a parte, o fato é que não seria nem ao menos lógico que um homem fosse condenado a prover com o sustento de uma criança proveniente de um estupro, sendo até mesmo uma espécie de condenação por ter sido estuprado que o mesmo tivesse que sustentar e amar uma pessoa resultante de um delito, e o direito deve se organizar conforme as necessidades sociais, afinal, as leis apenas existem para facilitar e proteger as relações das pessoas.

Entrosamento ao qual se coaduna Alexy (2009, p. 4), pois para uma norma compreender o direito a mesma deve deter em si duas características: a “da legalidade conforme o ordenamento ou dotada de autoridade e o da eficácia social“; uma norma para ser válida precisa ser justa, e para isto os magistrados precisam estar atentos, pois “o legislador também pode estabelecer a injustiça“, pois sempre que uma norma contrariar dispositivos fundamentais ela estará eivada de vícios, devendo então ter sua aplicabilidade afastada pelo juiz.

“(…) embora, em geral, lei e direito coincidam facticamente, isso não acontece de maneira consciente nem necessária. O direito não é idêntico a totalidade de leis escritas. Quanto às disposições positivas do poder estatal, pode existir, sob certas circunstâncias, uma excedência de direito, que tem sua fonte no ordenamento jurídico constitucional como um conjunto de sentido e é capaz de operar como corretivo em relação à lei escrita; encontrar essa excedência de direito e concretizá-la é tarefa da jurisprudência.” (ALEXY, 2009, p. 10)

Salienta Bedin [6] (2012, s/p) que é a capacidade que a pessoa possui de sentir compaixão que faz dela um ser humano, quando uma pessoa abandona seus sentimentos, ela automaticamente encontra-se desprovida de razão para existir. Para o estudioso é “a figura da divindade, associada ao amor e a compaixão incondicional“, que consubstancia o sentido figurativo da democracia. Para o autor (2012, s/p), a mesma compreende “a liberdade de associação, de expressão, sem privilégios de classe, sem distinções e preconceitos. É justiça sem justiçamento. É tratar diferente os desiguais. É punir os culpados e absolver os não culpados, já que quem comete crime não é inocente“.

Bedin (2012, s/p) é oficial de Polícia Militar a mais de trinta anos, e em todo o tempo em que tem trabalhado a frente da corporação militar pôde constatar que é possível a um funcionário público usar da capacidade que o Estado lhe empresta para transformar o seu entorno, modificando para melhor sua circunscrição de trabalho. Para o mesmo é presumível que um funcionário ao desempenhar seu trabalho aja mecanicamente, laborando todos os dias da mesma forma, o que faz desta pessoa, um trabalhador descartável, pois não inova e nem pensa diferente, agindo como uma máquina. Porém, quando um funcionário público reflete seu agir, analisa seu ambiente e inova em suas atitudes, ele passa a ser um ser humano, conseguindo, com isto, modificar a sua volta, como dizia Montesquie, “juízes não sois máquinas, homens é o sois”.

Concordante, Alexy (2009, p. 15) define que direito e moral andam de mãos dadas. Em seu trabalho o autor indaga sobre qual seria o conceito de direito correto e adequado, aquele em que o mesmo mune-se da moral ou aquele dissociado desta? “Quem pretende responder a essa pergunta deve relacionar três elementos: o da legalidade conforme o ordenamento, o da eficácia social e o da correção material“. Conforme a medida relacionada entre esses três elementos, surgirão conceitos diferenciados.

O fato é que para uma norma possuir aplicabilidade em seu aspecto externo a mesma precisará regular algo e aplicar uma punição para quem desrespeitá-la como meio de coagir ao seu respeito, obtendo, mesmo que forçadamente, o acatamento de sua regularidade; já no aspecto interno ela precisará conter uma motivação de observância ou aplicação, contendo em si disposições psíquicas que motivem os homens a respeitá-la, pois o direito compreende unicamente o que a comunidade de homens “reconhecem reciprocamente como norma e regra dessa convivência“, como salienta Alexy (2009, p. 18/19).

O direito embasa em si uma estrutura de um sistema social que se fundamenta “na generalização congruente de expectativas de comportamento“, assim, “um comando é definido pelo fato de ser reforçado por sanções“, mas nem todo comando é direito, somente é direito, aquele instituído por uma força superior e legalizada, como a exemplo do legislativo. Ademais, conforme Alexy (2009, p. 29):

Como sistema de procedimentos, o sistema jurídico é um sistema de ações baseadas em regras e direcionadas por regras, por meio das quais as normas são promulgadas, fundamentadas, interpretadas, aplicadas e impostas. Como sistema normativo, o sistema jurídico é um sistema de resultados ou de produtos de procedimentos que, de alguma maneira, criam normas. Pode-se dizer que aquele que considera o sistema jurídico um sistema normativo refere-se ao seu aspecto externo. Em contrapartida, trata-se do aspecto interno quando o sistema jurídico é considerado um sistema de procedimentos.”

Desta forma, o direito visando atingir resultados concretos emana direcionamentos, para que o magistrado percorra, como meio de auferir estes efeitos nas casuísticas em espécie, por isto, o mesmo não compreende somente a totalidade das leis escritas, pois ele embasa, também, os entendimentos dos magistrados consubstanciados em jurisprudências e o entendimento de doutrinadores encontrados em livros, pois a sentença compreende um ato maior do que o de dizer a lei ao caso concreto, pois se assim o fosse, até mesmo uma máquina seria apta a sentenciar.

Conforme Bedin (2012, s/p), o ato de ser funcionário público emprega a ação de entender, refletir e racionalizar sobre a função que o Estado lhe entrega, assim, sentenciar é proceder com uma análise sobre o caso que está sob seu julgamento, é refletir e racionalizar sobre os resultados que sua sentença produzirá no mundo prático, é analisar sob a luz que a Constituição emana, visando à materialização dos direitos humanos fundamentais consolidados em suas linhas.

Pelo entendimento unificado na Carta Magna será possível verificar que não existe direito absoluto, nem mesmo o direito à vida é. Afinal, no instante em que a legislação é feita por seres humanos, é natural que a mesma não seja investida de perfeição e, por isto, “não poderia prever todas as situações passíveis de ocorrência“, deste modo, de acordo com Costa (2014, s/p), deve o direito:

“(…) permitir a relativização de alguns direitos em detrimento de outros, pois existem circunstâncias que tornam desproporcionais e desarrazoadas as aplicações de certas garantias legais, quando se tratar de um caso peculiar, analisado concretamente. Desse modo, obedecendo a uma análise principiológica, bem como dos conceitos substanciais que guiam o atual ordenamento jurídico pátrio, bem como sabendo-se que sempre há a possibilidade de não ser um dispositivo legal a melhor solução para uma situação real previamente positivada, é sensato o afastamento da imposição conjecturada por lei.

Diante disto, resta a possibilidade de relativização do direito à paternidade nos casos em que a gravidez resulte de violação sexual, sob o manto protetor proveniente dos direitos humanos fundamentais irradiantes da Carta Magna, instante em que o suporte desta teoria corporifica-se na dignidade da pessoa humana, princípio que dá suporte à “supremacia da proteção do ser humano“. Do exposto, Costa (2014, s/p) define que:

A dignidade da pessoa humana supera a condição de princípio e figura como valor do indivíduo, como núcleo exegético do ordenamento jurídico, devendo ser observado como orientador de todos os feitos relacionados à pessoa humana. Fala-se também em caráter absoluto da dignidade da pessoa humana, pois não haveria circunstância ou direito que pudesse tirar a sua prioridade, especialmente pelo fato de tal princípio ser um fundamento da República Federativa do Brasil, apontado no primeiro artigo da Constituição Federal. Desse modo, o fundamento aludido será sempre o guia basilar do Direito, sendo imprescindível na argumentação para relativização de certo direito em detrimento de outro, como é o caso em exame.”

Um dos princípios constitucionais que caminha entrelaçado ao da dignidade da pessoa humana é o da justiça e da igualdade, conforme já afirmado, os quais permitem ao magistrado tratar de forma desigual os desiguais no limite de suas desigualdades, de maneira a equilibrar as diferenças, os quais coadunados aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade unificam a junção entre humanidade e legalidade nas decisões dos magistrados. Desta forma, frente a uma colisão entre os direitos do homem, vítima do estupro, da mulher, sujeito ativo do delito, e da criança, resultado deste crime, findam na possibilidade de relativização dos direitos de paternidade em todos os âmbitos (sentimentais, jurídicos, morais e patrimoniais).

Assim como nos casos de doação de esperma o homem não cria vínculos com a mãe ou a criança, também, nos casos de delito este vínculo não deve ser exigido, posto que a imposição da paternidade à vítima do crime vai de encontro ao princípio da dignidade, chocando-se frontalmente com a igualdade e a justiça brasileira, pois compelir o ofendido à submissão dos efeitos desta gestação é favorecer a perpetuação desta modalidade delitiva, além de que, conforme Costa (2014, s/p), “ignorar a invasão à honra do ser humano ao conduzi-lo por uma relação não sadia com o gerado é desvalorizar a imagem do homem como sujeito de direitos“. Conforme o autor:

A vontade procriacional diz respeito à intenção de gerar um filho por meio da relação sexual, quando um casal decide por aumentar a família e criar uma nova vida. Quando, por exemplo, uma mulher engravida sem planejamento, apesar de não ser a intenção inicial, é sabido que tal ato é capaz de ocasionar a gestação. Não é o caso em análise. A vontade procriacional inequívoca encontra-se ausente nesse fato específico, pois a vítima não desejou a gestação nem tampouco assumiu o seu risco ao proceder à prática sexual mediante violência ou grave ameaça. O homem, além de vítima da invasão sexual que ofende o bem jurídico da dignidade sexual, tutelado pelo Código Penal, terá que arcar com as consequências civis do ilícito, que não previu ou assentiu, resultando essas circunstâncias em relevante desrespeito às garantias constitucionais da dignidade humana e razoabilidade.”

De acordo com a razoabilidade, é sensata a ideia de relativizar o direito à paternidade, permitindo à vítima que escolha entre assumir o filho ou não, posto que no caso inverso a dignidade da mulher é imposta, não sendo justo que no caso do homem não o fosse. Assim, o deslinde apontado não seria incompatível com os direitos do nascituro, pois o mesmo não teria sua vida ceifada, como no caso inverso, somente teria o bem jurídico relacionado com a filiação relativizado, de maneira a resguardar a dignidade do ofendido, pois forçar uma relação entre o ofendido e o fruto do crime não seria compatível com os preceitos constitucionais irradiados da norma maior brasileira. Este também é o entendimento de Damásio de Jesus e Smanio (apud COSTA, 2014, s/p):

Muito embora, em nosso sistema jurídico, a vida seja protegida desde o momento da concepção, excepciona-se a proibição de matar em prol de uma limitação humana em lidar com um fato indelével e que ocasiona, na maioria das vezes, transtornos psicológicos difíceis de superar. Partindo dessa premissa, se a vítima do estupro é o homem, pode não ser de sua vontade que a mulher criminosa dê à luz um filho seu. Apesar de não ser ele a pessoa a suportar os reflexos físicos da gravidez, a paternidade implica uma série de obrigações de ordem jurídica, ética, moral e até mesmo financeira, para não falar de outras. Nessa ótica, poder-se-ia cogitar de uma mulher que dolosamente realiza a conduta criminosa, intencionando engravidar para obter um vínculo com o homem e, ainda, uma pensão futura para o filho comum ou até mesmo para chantagear alguém de ótimas condições financeiras.

Pelo exposto conclui ser coerente a relativização do direito à paternidade em relação ao explanado das normas constitucionais, nos casos em que haja gravidez da delituosa, em razão da ausência da participação da vítima (o homem genitor), sendo a ideia coerente com os princípios da Carta Magna, consubstanciados na dignidade da pessoa humana, na igualdade e na justiça e com relação à proporcionalidade e razoabilidade das decisões magistrais.

5 Definições Conclusivas           

Este estudo teve por interesse analisar a possibilidade de relativização do direito à paternidade, ou da legalidade da prática do aborto humanitário quando a gravidez resulte de violação sexual mediante fraude ou estupro praticada por mulher contra homem.

No primeiro momento foi efetuada uma análise ao entendimento social relacionado à matéria, transferindo a este estudo os aspectos morais e culturais relacionados ao delito.

Em seguida foi procedido com um exame aos aspectos jurídicos atinentes ao crime, efetuando um estudo desde os preceitos constitucionais até os infraconstitucionais, de maneira a robustecer o entendimento do leitor sobre o tema.

Por fim, foi juntado o entendimento social com o legal e o doutrinário, de onde se extraiu que não apenas é possível a relativização do direito à paternidade, como também é viável, visto que a vontade da vítima encontra-se eivada de vício no instante em que a mulher engravida através de um crime, e não seria justo que o homem arcasse com todas as consequências de uma gravidez quando a mesma resultou de um delito, sendo até mesmo uma afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana se isto ocorresse.

6 Referências Bibliográficas     

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VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[1] Extraído do site Hype Science: Vítimas de abuso sexual do sexo masculino têm mais dificuldade de lidar com o trauma.

[2] O vocábulo costumes é aí empregado para significar (sentido restritivo) os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplina sociais. O que a lei penal se propõe a tutelar, in subjecta matéria, é o interesse jurídico concernente a preservação do mínimo ético reclamado pela experiência sexual em torno dos fatos sexuais. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. 6. ed. Niterói: Impetus, 2009. v. III. p. 462.

[3] Ereção reflexa: “é induzida pelo estímulo tátil nos órgãos genitais; (…) os impulsos seguem pelo nervo pudendo até atingir o centro sacral da ereção. Há ativação dos núcleos parassimpáticos e através dos nervos cavernosos é obtida a ereção” (UTIDA et al., 2004, p. 150).

[4] Ereção psicogênica: “(…) é o resultado de estímulos audiovisuais ou imaginativos e encontra-se na dependência da modulação dos centros eretores medulares (T11-L2 e S2-S4). Para que seja ativado o processo da ereção, os impulsos cerebrais são transmitidos através das vias simpáticas (inibição da liberação de norepinefrina), parassimpáticas (liberação de óxido nítrico e acetilcolina) e somáticas (liberação de acetilcolina)” (UTIDA et al., 2004, p. 150).

[5] Estupro de vulnerável: CP: “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

[6] Coronel da 4ª Região de Polícia Militar, no Município de Chapecó, Estado de Santa Catarina.