PANORAMA DA DELAÇÃO PREMIADA. Por Rénan Kfuri Lopes
A promulgação da lei do crime organizado, em agosto de 2013, que regulou a aplicação da colaboração premiada, e a própria Operação Lava Jato, deflagrada meses depois, modificaram os padrões da investigação criminal no Brasil e também atingiram em cheio a defesa penal clássica, forçando escritórios de advocacia a adotarem uma nova sistemática para lidar com as delações.
Diante do novo cenário, os advogados tiveram que se debruçar sobre a experiência americana com as delações, estudar análise negocial e avaliar processos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que desde 2003 trabalha com acordos de leniência.
Alguns chegaram a reformular a própria equipe para garantir a sistematização e avaliação de dados das investigações do esquema de corrupção da Petrobras, como mídias, e-mails e documentos para fazer frente aos relatórios da Polícia Federal e do Ministério Público.
Os escritórios ainda estabeleceram uma espécie de cartilha para os clientes que optam pela delação. Entre os critérios estão: a adesão ao instrumento tem que ser espontânea, deve ser uma opção quando o acusado está encurralado, não se pode transigir em relação à verdade, não se pode omitir ou distorcer fatos.
Há ainda preocupações com vazamentos de delações e insegurança em relação ao cumprimento dos acordos com o Ministério Público por outros órgãos, como Tribunal de Contas da União e Advocacia Geral da União.
Responsável pela defesa de vários acusados na Lava Jato, o advogado Pierpaolo Cruz Bottini, afirma que a delação não pode ser a primeira alternativa, mas passa a ser um caminho quando há grande materialidade e o processo não tem nulidades ou vícios. “A defesa meramente processual não perdeu força, se tiver vícios e nulidades elas continuam certamente a ter prioridade sobre uma colaboração. Mas, a delação é um item a mais nessa estratégia. Amplia o trabalho da defesa”, disse o criminalista.
“Tem clientes que aceitam a ideia de colaboração de forma mais fácil, mas em regra é uma decisão muito difícil de ser tomada, existe uma maturação. Mais do que assumir a culpa, o cliente vai ter que apontar o dedo para pessoas com as quais já teve uma relação próxima”, completou.
O advogado Rogério Taffarello reforçou o discurso do colega. Para ele, a colaboração passou a ser uma alternativa para a defesa quando não existem outros meios melhores. “Agora, advogado criminalista algum que se preze dará preferência a uma colaboração se tem outros meios que podem resolver o processo para o cliente dele. Advogado algum que se preze fecha delação com prazer. A gente gosta é de absolver. Mas tem casos em que depois de feitas todas as análises – de mérito da investigação e de potenciais questões processuais – ela desponta como uma possibilidade. Muitas vezes a gente pode questionar, com razão, certas questões nos tribunais, mas, do ponto de vista da ética do advogado com o seu cliente, em algumas situações tem que ceder pensando no melhor resultado”, disse.
Para o advogado Rodrigo Mudrovitsch, a colaboração vem em um contexto mais amplo de inovações dentro do processo penal e que deixaram o processo mais dinâmico.
“Primeiro, você tem a qualquer momento uma das partes do processo que pode se converter em auxiliar da acusação e aí você acaba estabelecendo uma certa corrida pela colaboração que já existia no concorrencial e agora é novidade no penal. Tem que fazer um certo exercício de antecipação para perceber quais são as posições dentro do processo que podem se converter em colaboradores”, afirmou.
Ele afirma ainda que os processos, em via de regra, são mais estruturados e contam até com um bloco de investigação, com participação do MP, da Polícia Federal e da Receita, por exemplo, o que pode reforçar os elementos para a negociação de uma delação.
O advogado aponta ainda que é preciso esclarecer os clientes a respeito das consequências de uma delação, como as implicações no meio social, sendo que o instrumento não pode ser banalizado e não vai ser solução para todos os males do processo.
Mudrovitsch atua na defesa de delatores da Odebrecht e também de senadores acusados de participação no esquema. Uma das dificuldades do processo para delação, afirma o advogado, é o fato de o acordo fechado com o Ministério Público nem sempre ser respeitado pelo TCU e pela AGU.
O criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, era responsável pela defesa do segundo delator da Lava Jato, o doleiro Alberto Youssef, mas deixou o caso após o cliente comunicar a vontade de fechar a colaboração. Kakay é um ferrenho crítico das delações, apesar de considerar um importantíssimo instrumento na luta contra a corrupção, e justificou a saída da defesa do doleiro porque “uns 30 clientes meus seriam delatados”.
“Delação não é defesa. É um direito de defesa. O advogado não faz nada, só acompanha. Não existe paridade de armas, é um fiscal, não está advogando”, avalia.
O criminalista ataca a Lava Jato, ao afirmar que o instrumento tem sido deturpado pelo MPF nas investigações do esquema de corrupção da Petrobras.
“Não se pode imaginar que se tem uma prisão para ter delação. É um excesso absurdo. Na mesma empresa, 77 delatores? Não existe espontaneidade. E agora tem até recall de delação. O delator sabe que pode mentir, omitir e voltar atrás. O mesmo advogado fazendo dezenas de delações. Ele passa a ter informações privilegiadas. Agora, ainda tem uma situação grave que é cumprir pena sem processo. É impossível você estabelecer pena sem que haja processo. Como o juiz de execução vai cumprir? Faz acordo e impõe pena sem sequer ter tipo denúncia? É uma inversão enorme de valores processuais e constitucionais”, disse.
De acordo com o criminalista, que também atua na defesa de políticos investigados na Lava Jato, não há advogados especialistas em delação. Ele defende inclusive uma posição da OAB sobre a questão ética dos advogados fechando várias delações de uma mesma operação. “Não existe especialista. É o cara se submetendo às pressões do MP e da polícia. Tem advogado que tem até vergonha de usar o termo delação e só fala em colaboração”.
Responsável pela defesa processual de Marcelo Odebrecht, o advogado Nabor Bulhões admite que não tem qualquer apreço pelas colaborações. Segundo ele, o instituto da colaboração como está posto não guarda relação de compatibilidade com certos direitos e garantias constitucionais. “Uma das mais graves incompatibilidades é a renúncia de direitos e garantias fundamentais. Outras questões que me preocupam são alusivas à voluntariedade. Não me parece que seja razoável imaginar que alguém preso e respondendo a diversas ações penais possa verdadeiramente fazer uma opção livre, voluntária, por uma colaboração”, disse.
“A Suprema Corte americana, por exemplo, tem anulado acordos de plea bargaining – símile à nossa delação – quando na origem houve excesso de acusações ou quando o Ministério Público começa a incutir no investigado que a situação dele é grave e que ele não irá conseguir sair livre. Exageros e excessos podem comprometer a ratio da colaboração, que é a voluntariedade”, completou.
Ele disse não conceber “que possa haver uma investigação criminal sem a estrita observância do devido processo legal. Da forma como foi regulamentada no Brasil, não há conciliação entre o instituto da delação e o devido processo legal” (Trechos extraídos do excelente artigo “As Delações e o Impacto na Defesa Criminal Clássica”, de Márcio Falcão e Kalleo Coura, apud JOTA, edição de 03.05.2017).