OS PRINCÍPIOS SÃO FONTES CONFIÁVEIS DE DIREITO PROCESSUAL? NÃO CUSTA REFLETIR UM POUCO
Ivan Barbosa Rigolin
I – A Constituição de 1988 deu um impulso decisivo à configuração dos princípios de Direito como fontes primárias e básicas de Direito. Os arts. 37 70 e 93 ilustram o que se afirma.
Se se consultarem os juristas, os juízes, os promotores e outros profissionais do Direito sobre esta questão, possivelmente a unanimidade confirmará a tese de que os princípios constituem, cada vez mais, fontes originárias de Direito, e não apenas longinquamente secundárias supletivas ou subsidiárias, como se ensina e se aprende na universidade – ao menos até passado recente.
As fontes de Direito, em um País juspositivista como o é o nosso, são ordenadas e claramente hierarquizadas conforme, digamos, a relevância, a confiabilidade e a indiscutibilidade da sua coerção, da sua impositividade, da sua autonomia mandamental, da sua capacidade ordenativa da vida social – eis que apenas para isso serve a invenção do Direito.
A qualidade referida supra de cunho em parte objetivo e em parte subjetivo, devem e somente podem aqui ser consideradas dentro da configuração que já está entranhada e profundamente assentada na mentalidade jurídica nacional, e do modo como se acham incorporadas e arraigadas no pensamento jurídico de nosso povo. E em um contexto assim a lei desponta naturalmente como a primeira fonte de Direito, sendo a Constituição a mais alta lei.
Ninguém imagina que abstrações como são os princípios de Direito possam ter existência autônoma ou independente de (I) um ordenamento jurídico complexo e abrangente, dentro do qual façam sentido como supranormas informativas das normas, e de (II) um intérprete, um pensador dedicado, um analista, um decodificador que os traduza para o plano do dia a dia, um decifrador equidistante e isento, na medida do possível.
Sem esse trabalho de trazê-los das nuvens e os arrastar até o chão em que as pessoas vivem os princípios de Direito não são mais que devaneios ou idealismos, unicamente sedutores, porém, tal quais os espíritos da natureza, incapturáveis, inapreensíveis, insubjugáveis, insuscetíveis de qualquer utilização e de qualquer cunho de praticidade.
II – O dilema é facilmente identificável: Em um sistema de direito positivo como o nosso, de leis e de normas escritas a disciplinar tudo o que a autoridade divisa como humanamente disciplinável, e em um Estado que se constituiu e se amoldou todo inteiro dentro dessa quase absoluta rigidez formal, então como conviver um direito principiológico com essa camisa de força institucional?
O princípio sugere, induz, inspira, aponta, intui; o normativismo amarra, comprime, acorrenta, agrilhoa…
O princípio, na sua eloquentíssima concisão, aponta a senda da liberação e da liberdade – a quem tem a sensatez de observá-lo nos atos que pratica. A norma, em outra direção e já tendo resolvido os conflitos do percurso, sufoca o pensamento, coíbe a criatividade, inibe a iniciativa… Afinal, ela já deu a solução!
Alguém então dirá: Abaixo as normas, e vivam os princípios? Absolutamente não e nunca, sobretudo em país positivista como o Brasil.
Acontece que, e este é o despretensioso alerta que esta reflexão pretende transmitir, até a algumas décadas a lei era a soberana absoluta e incontrastável no plano operacional do nosso Direito; porém, hoje em dia, acredite-se, aquele panorama quase se inverteu.
Hoje em dia podem-se dizer os princípios de Direito simplesmente se assenhoraram da consciência jurídica e jurisdicional brasileira, e que vêm à mente dos profissionais do Direito antes mesmo que as regras do ordenamento positivo.
III – Seja qual for o lado do balcão em que o situado o profissional – julgador, jurisdicionado, advogado, membro de poder, ou mesmo simples e ocasional observador –, e por força das mais variadas invencionices, modismos, descaradas demagogias, hipocrisias, teatralidades do momento, e depoimentos tão críveis quanto às lágrimas de um crocodilo, e ainda por bazófias eleitoreiras ou tiradas quixotescas que não têm fim, o fato é que todo esse conjunto nada recomendável de narrativas vem crescentemente emprestando um destaque por completo artificial aos princípios de Direito.
O inadequado manejo converte os tesouros mentais e intelectuais de que os princípios são feitos vulgaridades desprezíveis, faltando-lhes apenas a moldura do picadeiro de um circo. Quem não tem altura para tratar com princípios deveria escolher outro objeto com que lidar.
Com aquela banalização do sagrado, os seres honestos de propósito, que enxergam a falsidade e o fingimento dos discursos, acabam por no mínimo perder o interesse na vertente principiológica, quando não passam a nutrir por ela franca antipatia e repulsa à simples menção ao princípio tal ou qual.
Desde que o mundo existe, cada coisa deve ficar em seu lugar e se manter na sua função, como deve cada macaco tão somente atuar nos domínios de sua rama. Todo exagero prejudica, e toda acentuação imoderada do que quer que seja denigre o objeto que pretendia exaltar – e em direito não é diferente.
O que é divino – e precisa sê-lo – não tolera farisaísmos nem moralismos de fancaria, nem fachadas de luxo, se que não tiver materialidade ou conteúdo, nem consistência que se possa aquilatar.
Um discurso vazio ou interesseiro sobre aquele tema sagrado tem amiúde a capacidade de deslustrar, aos ouvidos neófitos ou desprevenidos, a excelência originária do princípio. Tal qual o detentor da peça de ouro que a revestir de chumbo.
E não se fala aqui de algum dos loucos de todo gênero, mas tão só dos seres mal-intencionados.
Mendelssohn pouco empregava os trombones na sua música, por considerá-los por demais sagrados para serem banalizados. Em Direito assim são os princípios, que pela mesma razão não devem figurar no discurso de qualquer um.
IV – A preocupação ensejadora desta reflexão é o uso desparametrado, banalizado e abusivo dos princípios de Direito em ações judiciais e na doutrina, tal qual fossem eles uma recente invenção de alta tecnologia e apta a resolver os mais intricados impasses a cargo da ciência jurídica.
Mesmo antes da Constituição de 1988, e sem citar obras, Themístocles Brandão Cavalcanti asseverava que os princípios podiam, já naquele então (anos 70 e 80), ser invocados como fontes primárias de Direito e fundamentos processuais em mandados de segurança. Alegava o magnífico publicista, não sem muita ousadia que o seu arcabouço técnico lhe ensanchava, que os princípios eram capazes de só em si conformar um plexo de direitos em favor de alguém, amparável, portanto pelo writ.
Nessa mesma tônica é bastante conhecida a máxima jurídica, alardeada por nomes como Celso Antônio Bandeira de Mello, de que violar um princípio é mais grave que vulnerar uma norma. É que, sendo o princípio a supranorma da qual derivam e na qual se substanciam as normas, então deve ser pior afrontar a matriz que a filial…[1]
No polo oposto, José Cretella Jr., em palestras e conferências que presenciamos, rebatia aquele raciocínio ao recordar que o juiz defere o mandado de segurança que violou o artigo tal da lei qual, e não o princípio invocado pelo impetrante ou pelo impetrado. Em um direito positivista como o nosso assim é de esperar: direito líquido e certo é o decorrente da lei, de modo expresso e objetivo.
E seja reconhecida a dificuldade monumental que enfrenta um para juiz conceder uma segurança arrimada n’algum princípio de direito… Exatamente como preconizou Hely Lopes Meirelles, para quem “o direito invocado, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação”[2]
O extraordinário sistematizador do direito administrativo brasileiro, notável entre suas outras virtudes pela de manter sempre o pé no chão, não diria o mesmo dos princípios. Cada macaco…
V – Um princípio, em tese (ou em princípio…), não contém a objetividade necessária para configurar, juris et de jure e incontestavelmente, direito nenhum a ninguém. Perdoem os idealistas e os ufanistas do Direito, mas a verdade é essa.
Por mais resplandecentemente escrito e descrito que seja um princípio, em um pleito judicial constituirá apenas – e sem nenhum demérito, porque cada coisa deve figurar em seu lugar e não em outro – um fundamento juris tantum, vale dizer, relativo, parcial, aproximado, adventício, circundante, acessório, suplementar, periférico, adjutório, sugeridor. E de modo quase invariável não será suficientemente preciso e fulminante para configurar algum direito objetivo.
O princípio da legalidade, que é o primeiro dos princípios invocados pela Constituição no art. 37, é explicado pela própria Constituição no art. 5º, incido II, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer algum coisa senão em virtude de lei. Jamais a Carta cogitou a ideia de obrigar alguém a alguma coisa decorrente de princípio de direito…
O princípio é de fato a supranorma, matriz das regras e das normas escritas; porém, se não existirem as regras e as normas, os princípios ficarão suspensos no espaço sem nenhuma função objetiva… Daí a invocá-los como fundamento de pleitos judiciais, ou como configuradores de direitos líquidos e certos, é uma grande temeridade.
Tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal, ao editar suas súmulas vinculantes, como a nº 13, coloca a prudência em destaque ao salientar que a conduta tal ou qual, relativa a nepotismo dentro do serviço público, viola a Constituição – e se refere ao princípio da impessoalidade, e, por consequência, ao da moralidade.
O Timor reverencialis que a Suprema Corte revela no tratar de princípios é sintomático, porque bem sabe que princípios de direito não são leis de imposto de renda, de aluguel comercial nem de infrações de trânsito.
Fossem objetivos os princípios, então não haveria razão para tanto cuidado, nem para a edição de súmulas que ensinam o entendimento da Corte sobre as limitações recomendadas ou sugeridas pelos princípios, e das condutas que, nessa melindrosa tônica, afrontam a Constituição.
Observam-se compreensivelmente muitas mesuras e muito tato no convívio e com os princípios, que são por completo desnecessários ou descabidos quando se lida com leis e com normas objetivas. Regras e normas objetivas se manuseiam, se dispõem e se aplicam sem maior dificuldade. Mas quando se cuida de princípios…
VI – Desce-se agora ao plano do direito processual[3].
Aparentemente nada é mais oposto que um princípio de direito e uma regra processual: o primeiro é causal, etéreo, flutuante, sobranceiro, espirituoso; a segunda é rígida, implacável, fria, mandatória – e a rigor tem de ser, por excelência, objetiva.
Falamos especificamente da ação civil pública, com a nota de improbidade administrativa por violação aos princípios de direito aplicáveis.
O art. 11 da assim chamada Lei da Improbidade, em verdade contra a improbidade, que é a Lei nº 8.249, de 1992, assim reza:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
III – revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
IV – negar publicidade aos atos oficiais;
V – frustrar a licitude de concurso público;
VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
VII – revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.
VIII – descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas.
IX – deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação.
X – transferir recurso à entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere, nos termos do parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.
Esse é um dos piores dispositivos da legislação brasileira de todos os tempos. Deve ter sido arduamente ideado e planejado, para conseguir ser tão péssimo. Naturalmente a intenção do legislador foi louvável, mas também o inferno legislativo está repleto de boas intenções.
Lembra auto de fé medieval, regido pela inquisição que torturava e matava quem quisesse quando quisesse apenas por questão de crença, ou, então, as cruzadas que perseguiam os infiéis ou as bruxas em Salem, nos Estados Unidos no século XVII, ou recorda ainda os infinitos moralismos que em geral as criaturas mais imorais e mais indecentes do planeta conduzem e lideram pelo que quer que seja – e as quais com muita frequência são pilhadas com a boca na botija, praticando as piores infâmias que anunciam combater[4].
Constitui a quinta-essência da hipocrisia, um discurso mais falso que uma nota de quinze unidades monetárias, genuína conversa de fariseus em um moralismo de circo. O Brasil, em momentos assim, não se apercebe da miserável indigência de sua legislação.
Uma lei com dispositivos como estes realmente deveria e deve ser alterada – como o está sendo atualmente no Congresso –, sendo que, antes disso, jamais deveria ter sido editada. O curioso é que cerca de um terço dos parlamentares federais, que aparentam exigir tanta moralidade dos cidadãos que representam, estão sendo processados pelos mais diversos motivos nem um pouco encomiásticos… e, portanto, essa deve ser lei para os ouros, não para alguns dos autores.
VII – Imagine-se uma sentença condenatória às pesadíssimas penas do art. 12 da lei por violação ao princípio da lealdade às instituições, porque o réu atrasou em publicar um ato de ofício… Ou porque descumpriu normas de acessibilidade (!!…).
Ou uma condenação a alguém porque um dia inadvertidamente (como espera demonstrar…) deixou de observar todas as regras de aprovação das contas de uma parceria público-privada! Foi desleal às instituições pertinentes! Alguém porventura sabe o que é isso?
Existirá por acaso um juramento de fidelidade às instituições, como nos casamentos? Algum fiscal da lealdade institucional estará atuante, dia e noite, contra os traidores? Alguma autoridade brasileira sabe com alguma precisão e objetividade a quê exatamente deverá ser leal em matéria de instituições?
Qual é a referência objetiva de tal coisa? Qual a bússola, qual o norte, qual a postura a adotar, quais parâmetros seguir?
Alguma autoridade executiva, legislativa, ministerial ou julgadora pode em sã consciência levar a sério uma fantasmagoria ou abantesma jurídico como é isso?
O legislador, que aprova o que o seu partido lhe manda aprovar sem ter a menor noção do que se trata, valida então um texto desses, da pior origem e da pior inconsciência institucional imaginável, e depois o que o País observa é a condenação de autoridades incautas que, se leram a lei como se duvida que o tenham feito, pelo visto incidiram em crimes de lesa-humanidade – comparáveis talvez ao holocausto da segunda guerra –, como, por exemplo, atrasar uma publicação de ato de ofício…
Alguém leva algo semelhante à sério dentro de um ordenamento jurídico positivista, objetivista e concretista? Alguém pode levar a sério um desabafo legislativo como este art. 11 da Lei da Improbidade à conta de sério?
Somos o País da piada, do analfabetismo institucional, do deboche, da chanchada, da música sertaneja que o cantor decora para cantar porque não deve saber lê-la… até nas nossas leis tidas como as mais importantes.
VIII – Os princípios são o extrato da sabedoria se figurarem no seu altíssimo lugar, no seu plano essencial e de tudo informativo, e não na miséria baixíssima de dispositivos com o art. 11 da dita Lei da Improbidade.
Já dissemos que improbidade, realmente configurada, é redigir uma infâmia como essa, e o reafirmamos. Algo como improbidade intelectual.
Quem aprova regras como o art. 11 tem tudo para ser uma autoridade mal resolvida como pessoa, insegura e sequiosa por se afirmar na profissão e no mundo, e uma daquelas criaturas que ao se casarem com alguém só com isso farão exceder o débito cármico do seu consorte, do tamanho que for…
No frio balanço dos valores parece que pouca diferença entre si ostentam um defensor desse artigo e um criminoso da especialidade que for, porque ambos ensejam um grande mal à espécie humana. Ninguém é dono da verdade, mas certas verdades todos sabem e todos veem.
Um é bandido do mal, outro se diz um agente do bem – mas é bandido da mesma forma, porque se compraz em condenar inocentes desinformados, e em crucificar incautos, e em sacrificar desavisados. Regozija-se quando o consegue, e então exibe a façanha aos seus colegas, parceiros ou comparsas.
Pobre de nós é todos, enquanto essa miséria institucional existir.
Mas ninguém espere evolução institucional provinda de um povo que deixou a educação de lado e que por isso somente evoluí.
[1] Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 748.
[2] Mandado de segurança. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 37.
[3] Com efeito, passar do plano dos princípios de direito para o do processo não é propriamente uma descida, mas uma queda livre.
[4] Sempre recomendamos a quem deseje encontrar o mais imoral dos homens procurar o presidente da associação mundial dos moralistas. Não perca tempo procurando em lugar errado.