OS PODERES DO JUIZ NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Victória Moreira
O direito processual civil, aos poucos, vem superando a percepção de que a busca da verdade no caso concreto seria um “subproduto ou efeito colateral de um processo cujo objetivo é resolver o conflito entre as partes e somente no interesse particular delas[1]“.
A decisão justa passou a ser considerada o objetivo do processo, e, em decorrência disso, houve a atenuação do princípio do dispositivo[2] e ao juiz foi dado o dever de garantir a efetividade na tutela dos interesses discutidos no processo[3]. Dessa forma, aquele Magistrado passivo e inerte não mais se justifica.
Essa evolução decorre do advento do processo publicístico, que exige do juiz uma posição mais ativa e participativa combinada com um processo preocupado em dar tutela ao caso concreto. A visão publicística não fez com que o processo deixasse de ser das partes, mas deu a ele uma maior finalidade, o que o tornou, também, da justiça.
Nessa nova perspectiva, o processo civil está mais preocupado com o alcance da solução no caso concreto e de uma decisão justa[4]. Entretanto, isso não significa defender um processo autoritário. O que se acredita, em verdade, é na necessidade de um juiz com poderes instrutórios autônomos que respeite as garantias processuais no âmbito de um sistema político democrático[5].
O ativismo é diferente do autoritarismo, e isso se mostra claro quanto à produção de provas, por exemplo. O juiz ativo, mesmo que produzindo provas de forma autônoma, irá respeitar os direitos e garantias que são assegurados às partes no processo, enquanto que o juiz autoritário produz provas de ofício, por iniciativa própria, negando a elas esses direitos e garantias[6].
Para que seja traçado o papel do juiz no atual processo civil, é necessária a harmonização entre: (i) o dispositivo, segundo o qual o processo é visto como campo exclusivo das partes; (ii) o inquisitório/direção do processo, segundo o qual se releva o interesse público na resolução do litígio privado; e (iii) a colaboração, que pressupõe que a rápida e justa decisão é comum a ambas as partes[7]. Essa harmonização traduz-se em um processo flexível, que garanta o direito das partes e que tenha um juiz condutor e gestor do processo.
Tanto o Brasil como Portugal buscaram essa harmonização mediante a positivação de uma norma geral de cooperação[8]. O princípio da cooperação, além de ser um dever das partes e do Magistrado, predispõe esse processo flexível, garantidor dos direitos das partes e que não tenha um juiz autoritário, e sim um gestor preocupado com a justiça da decisão.
O contraponto entre Brasil e Portugal, nesse aspecto, mostra-se interessante, uma vez que ambos os ordenamentos jurídicos, agora, possuem a positivação de um processo colaborativo[9] que, de certa forma, ampliou os poderes de atuação do juiz, mas com peculiaridades que, na prática, acarretam diferenças significativas na gestão processual. Veja-se:
Em Portugal, o Código de Processo Civil de 2013, ao buscar uma decisão justa e uma maior efetividade do processo, ampliou os poderes conferidos aos Magistrados por meio do princípio da gestão processual[10]. Ao atribuir poderes/deveres de direção, impulsão (providenciando pelo andamento célere), simplificação e saneamento (podendo sanar falhas ao nível dos pressupostos processuais, não permitindo que a ação seja extinta por falhas processuais), o Código português buscou alcançar um juiz empenhado em solucionar a “equação processual“[11]. Além dos poderes/deveres de gestão processual[12], o próprio princípio da cooperação impõe deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio[13] ao Magistrado que refletem, também, em uma gestão do processo[14].
Pela leitura do art. 6º do CPC português, que consagra expressamente o princípio da gestão processual, percebe-se que as suas finalidades são, por um lado, a simplificação, o que garante uma decisão em um tempo razoável (gestão formal) e, por outro, o alcance da decisão justa (gestão material). Porém, não apenas o artigo em análise prevê poderes/deveres de gestão do Magistrado.
Para melhor elucidar a intenção do legislador português em elaborar um código que busca ampliar os poderes do juiz, tem-se, como exemplo, o art. 547[15], que trata da adequação de procedimento pelo Magistrado, e o art. 411[16], que confere ao julgador poderes para determinar provas de ofício. Com mais precisão, cabe mencionar o art. 590, o qual dispõe que, no “despacho pré-saneador”[17], o juiz deverá convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados (inicial e contestação) e as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de fato alegada. Por meio desse dispositivo, embora existam posições contrárias, estaria o juiz a aplicar no processo uma gestão muito além da forma, com cunho material. E mais: ao exercer o dever de prevenção, advindo do princípio da cooperação, também estaria o juiz a aplicar uma gestão material do processo.
Essas questões têm trazido amplo debate na doutrina portuguesa e parece que estão longe de serem pacificadas. Porém, a ampliação dos poderes do julgador e a garantia dos direitos das partes estão se mostrando um instrumento válido para alcançar uma maior qualidade nas decisões em Portugal, visto que um juiz estático, provavelmente, terá maior dificuldade de encontrar uma decisão justa.
Finalizando a análise do ordenamento português, é importante pontuar os limites para a gestão processual, que são o efetivo contraditório, o respeito à igualdade das partes e a necessidade de assegurar a imparcialidade do juiz. Embora sejam limites à sua atuação de ofício, eles também auxiliam o Magistrado na efetividade de sua atividade oficiosa. O respeito a esses limites é que dará ao juiz instrumentos para a aplicação de poderes mais amplos para a busca da decisão justa.
O remédio para os “perigos” decorrentes de certo ativismo judicial não é privar o juiz de todo o poder de instrução, mas sim a existência de instrumentos para o controle adequado do exercício desses poderes. É daí que se verifica a essencial garantia dos direitos das partes e onde o princípio do contraditório cumpre uma importante função, de modo a constituir-se em uma regra essencial para o controle racional sobre o uso que o juiz tem de seus poderes[18].
No que toca ao ordenamento brasileiro, com o recente advento do novo Código de Processo Civil (CPC/2015), o qual objetiva a eficácia de um processo colaborativo, foram consagrados poderes de direção ao juiz, mas ao mesmo tempo concedidos, para casos específicos, poderes às partes por meio de uma cláusula geral de negociação processual.
A ideia de um juiz gestor foi consolidada no CPC/2015, o qual trouxe disposições de poderes, deveres e responsabilidades do Magistrado. O art. 139 determina que este deverá dirigir o processo de modo a: (i) assegurar a igualdade das partes; (ii) velar pela duração razoável do processo; (iii) prevenir ou reprimir ato contrário à dignidade da justiça; (iv) determinar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para assegurar o cumprimento da ordem judicial; (v) promover a autocomposição; (vi) dilatar prazos processuais; (vii) alterar a ordem da produção de provas; (viii) exercer o poder de polícia; (ix) determinar o comparecimento das partes para inquiri-las; e (x) determinar o suprimento dos pressupostos processuais e o saneamento de vícios.
Entretanto, mesmo que essas disposições sejam mais amplas que a do CPC/1973, elas ainda são limitadas se forem comparadas com a ideia disposta no ordenamento português. Afinal, apesar de o CPC/2015 ter conferido alguns (poucos) poderes de gestão material do processo ao magistrado, optou na maioria das vezes por uma gestão formal – relativa apenas à adaptação de procedimento -, conforme se depreende da análise do próprio Código.
Citam-se, a título de melhor elucidação, alguns dos dispositivos legais do CPC/2015 em que se identifica a gestão tanto formal como material do processo: art. 191 (permite ao juiz e às partes a elaboração de um calendário processual); art. 322, § 2º (permite ao juiz interpretar o pedido conforme o conjunto da postulação, observando o princípio da boa-fé); art. 352 (permite ao juiz determinar a correção das alegações do réu); art. 373, § 1º (permite ao juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso); e art. 370 (permite ao juiz de ofício determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito).
O art. 373, § 1º, merece análise mais detalhada por ser um esclarecedor exemplo de gestão material do processo. Ele confere ao Magistrado o poder de decidir pela dinamização do ônus da prova, diante da peculiaridade da causa e da impossibilidade ou da excessiva dificuldade de produzi-la, de modo a igualar as partes, interferindo no processo não apenas para alcançar celeridade, mas sim uma decisão justa.
Em sentido oposto, o CPC/2015 previu, no art. 190, a possibilidade de as partes realizarem mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa.
Ao conferir poderes de gestão processual às partes, nos casos em que for permitida a negociação processual, é importante definir se estaria o CPC/2015 transferindo para o Magistrado uma posição meramente de homologar e verificar a validade do negócio, tornando a sua atuação similar a daquele antigo juiz do processo liberal, estático e passivo.
Esses pontos suscitarão muitas dúvidas e insegurança no direito processual civil brasileiro e ainda não possuem respostas sólidas. No entanto, importante é que se identifique o que pode ou não estar à disposição das partes e que se perceba a necessidade de uma mudança da cultura judicial. Dúvidas como essas, advindas de novas ideias processuais, assombraram – e talvez ainda assombrem – o processo civil português, com a reforma de 1995/1996 e com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil em 2013.
Em Portugal, os questionamentos foram em torno de duvidar se o Magistrado teria condições de não se tornar imparcial ou de não se tornar autoritário com os poderes que lhe foram atribuídos. As respostas positivas vieram com a própria atuação dos tribunais, percebendo-se uma mudança de cultura judicial na aplicação do direito processual civil. No Brasil, acredita-se que a questão central de mudança de cultura judicial deva ser a de identificar se as partes e seus procuradores estão preparados para a aplicação de convenções processuais e se o Magistrado terá mais condições de buscar a verdade, por meio de uma decisão justa, com os poderes de gestão que lhe foram incumbidos.
Porém, para que ocorra essa mudança de cultura judicial, é necessário que os operadores do Direito entendam a nova realidade do processo civil para o qual o CPC/2015 foi concebido. Outrossim, seja através da gestão do Magistrado ou da negociação das partes, o processo civil brasileiro, assim como o português, deve buscar decisões justas mediante um processo eficaz e preocupado com a solução do caso concreto.
[1] TARUFFO, Michele. A prova. Trad. João Gabriel Couto. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 21.
[2] Por este princípio entende-se aquele segundo o qual o processo está à disposição das partes.
[3] PICÓ I JUNOY, Joan. El juez y la prueba: estudio de la recepción del brocardo iudez iudicare debet secumdum allegata et probata, non secundum conscientiam y su repercusión actual. Colección Internacional n. 32. Bogotá: Grupo Editorial Ibánez, 2011. p. 134.
[4] Quanto à percepção de processo justo, ver RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil. Do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 40-41.
[5] TARUFFO, Michele. A prova. Trad. João Gabriel Couto. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 185-209.
[6] Idem.
[7] GOUVEIA, Mariana França. Os poderes do juiz cível na acção declarativa em defesa de um processo civil ao serviço do cidadão. Revista Julgar, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Lisboa, n. 1, p. 48 e 64, 2007.
[8] Para melhor elucidação do tema, ver DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra: Coimbra Editora, 2010; e MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
[9] Art. 7º do CPCC português de 2013 e art. 6º do CPCC brasileiro de 2015.
[10] Art. 6º do CPCC português de 2013. Dever de gestão processual: “1. Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso, especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2. O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instancia ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-los”.
[11] Miguel Teixeira de Sousa (Apontamento sobre o princípio da gestão processual no novo Código de Processo Civil. In: Cadernos de Direito Privado, n. 43, p. 10, jul./set. 2013) refere que, para a solução da “equação processual”, deve-se encontrar “uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis ao caso concreto”.
[12] O Direito inglês prevê a possibilidade do case management, na rule 1.4 do The Civil Procedure Rules 1998, que traz a ideia de gestão processual.
[13] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997. p. 65.
[14] Luís Miguel de Andrade Mesquita (Princípio da gestão processual: o “Santo Graal” do novo processo Civil? Revista de Legislação e Jurisprudência, a. 145, n. 3995, p. 98, 2015) refere que “este dever de prevenir, em nosso entender, encaixa-se numa ideia de gestão que nada tem de formal”.
[15] “Art. 547 – Adequação formal. O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.”
[16] “Art. 411 – Princípio do inquisitório. Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo que oficiosamente, todas as diligencias necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
[17] Também chamado de “despacho de aperfeiçoamento dos articulados”.
[18] TARUFFO, Michele. Simplemente la verdad: el juez y la construcción de los hechos. Trad. Daniela Accatino Scagliotti. Madri: Marcial Pons, 2010. p. 201.