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OS EFEITOS DA PERSONALIZAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA E A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Paulo Sergio Gomes Alonso

SUMÁRIO: 1 A Pessoa Jurídica. 2 Os efeitos Imediatos da Personalização. 3 As Restrições à Personalidade Jurídica. 4 Da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Ordenamento Jurídica Brasileiro; 5.1 No Código de Proteção e Defesa do consumidor; 5.2 Na Norma Ambiental – Lei nº 9.605, de 12.02.98; 5.3 No Código Civil; 5.4 Na Norma Antitruste – Lei nº 12.529, de 30.11.2011; 5.5 No Direito do Trabalho; 5.6 A responsabilidade Administrativa e Civil da Pessoa Jurídica – Lei nº 12.846, de 01.08.2013. 6 Da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Execução e no Processo de Conhecimento. 8 da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Dissolução Irregular da Sociedade. 9 Bibliografia.

 

1 A Pessoa Jurídica

Tivemos a oportunidade de mencionar e considerar no estudo sobre as pessoas jurídicas (ALONSO, 2016, p. 35-36) que o homem, por ser gregário, necessita em algumas situações se unir a outros para atingir objetivos específicos, que deixam de ser individuais para serem coletivos, uma vez que comungam desses mesmos objetivos e que essa necessidade de unir esforços afigura-se relevante em qualquer grupo, cujos membros que o compõe têm objetivos ou propósitos comuns, como nas associações de moradores de um loteamento, para a obtenção da infraestrutura indispensável para o local, nas filantrópicas, esportivas, culturais e profissionais, como também nas sociedades empresariais e não empresariais, pelos mais variados motivos. Na formação desses grupos de pessoa se faz necessário a desvinculação da individualidade dos objetivos de cada um dos seus integrantes para que se tenha uma vontade coletiva, independente e autônoma, jungida numa entidade que deve representar no todo os objetivos de cada um dos seus membros, e com estes não deve ser confundida em relação a direitos e obrigações. Para tanto, deverá ser dotada de patrimônio distinto de cada um dos seus participantes, uma vez que poderá vir a titularizar direitos e contrair obrigações, não mais individualmente, mas como grupo. Assim, no plano jurídico, foi criado outro sujeito do direito, outra pessoa, distinta da pessoa natural, que, pela sua essencialidade e nos termos da norma, é dotada de personalidade jurídica, suscetível de direitos e obrigações (art. 1º do Código Civil): a pessoa jurídica, também dotada de personalidade jurídica, sob as mais variadas formas, direcionada para atividades especificas, com a devida roupagem legal, a fim de que seja alcançada a necessária segurança jurídica às relações e aos negócios jurídicos decorrentes, e compor os interesses dos envolvidos.

O art. 985 do Código Civil brasileiro prescreve: “A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos”. Assim com o registro do contrato ou estatuto social, a sociedade passa a ser pessoa jurídica, dotada de personalidade jurídica e com isso se torna suscetível de direitos e obrigações, decorrendo capacidade para exercitar esses direitos e contrair as obrigações, nos termos de leis e contratos, e mesmo nas lides forenses como demandante ou demandada.

Com o seu registro, a pessoa jurídica adquire personalidade, passando a ter individualidade própria e diversa das pessoas que a compõem no que tange ao patrimônio, às obrigações e a outros direitos próprios da personalidade, cujos efeitos o presente estudo pretende dimensionar e, ou analisar.

2 Os efeitos Imediatos da Personalização

O efeito imediato da personalização da pessoa jurídica é o de estabelecer a separação patrimonial e obrigacional entre a pessoa jurídica e os seus sócios e/ou administradores.

A responsabilidade obrigacional da pessoa jurídica decorre das relações contratuais em que participa na qualidade de parte, no exercício da manifestação de sua vontade ou extracontratualmente, nos termos da lei, produzindo efeitos obrigacionais somente em relação a ela, e não aos seus sócios e/ou administradores, muito embora estes possam vir a representá-la nos ajustes ou fora destes, na execução de atos que possam obrigá-la. Desta forma, em razão da personalização, tais efeitos obrigacionais repercutem exclusivamente na pessoa jurídica e não nos membros que a compõe, assim como os das obrigações destes nela não refletem, uma vez que ninguém pode ser responsabilizando pelas obrigações de Outrem.

A autonomia patrimonial consagra a separação de patrimônio da pessoa jurídica e dos seus sócios e/ou administradores, em outros termos, os bens daquela são tão somente de sua propriedade e não dos seus membros, assim como os destes a eles pertencem; constituem patrimônios distintos e incomunicáveis.

Desta forma, em decorrência da personalidade da pessoa jurídica, a lei estabelece uma nítida separação de patrimônio e obrigação existente entre ela e os seus sócios e/ou administradores, reconhecendo a consagrando o princípio da autonomia patrimonial. Estes não são titulares dos direitos da pessoa jurídica e devedores das obrigações decorrentes das atividades da mesma, assim como ela não pode ser considerada titular de direitos ou devedora de obrigações dos seus membros, assumidas individualmente e em nome próprio.

O raciocínio é simples: se uma sociedade, regularmente constituída, vier a adquirir qualquer bem, este pertencerá a ela e não aos seus sócios e/ou administradores, ainda que eles possam vir a participar do ato de aquisição, agindo em nome dela. Da mesma forma, se a sociedade vier assumir qualquer obrigação, a responsabilidade resultante será dela e não dos seus membros, muito embora participem do ato jurídico obrigacional como representantes. Tomemos como exemplo a aquisição de imóvel por uma sociedade, e o fato de um dos sócios, que também é seu administrador, autorizado por ato constitutivo, comparecer na escritura pública de venda e compra como seu representante, isto faz com que somente a sociedade seja titular de direitos sobre este bem, e se na escritura ficar constando que pela aquisição ela deverá pegar determinado valor ao vendedor, esta obrigação será somente dela. Desse modo, o sócio que comparece no ato da compra e os demais sócios não são titulares de direitos sobre o imóvel adquirido e sim tão somente a sociedade, assim como, na outra situação, ela é considerada devedora da prestação e não aqueles. Situação semelhante é a do sócio dessa mesma sociedade que em nome próprio adquire outro imóvel, este pertencerá a ele e não à pessoa jurídica, e deverá cumprir com qualquer obrigação decorrente da aquisição, e não a sociedade.

Se a pessoa jurídica participa de qualquer relação jurídica, na condição de credora ou devedora, somente ela estará vinculada e não os seus sócios e/ou administradores. São os efeitos da personalização e constitui a regra geral. A exceção está prevista em lei como situações excepcionais.

Como foi examinado, os bens integrantes do patrimônio da pessoa jurídica são de sua exclusiva propriedade, uma vez que não existe qualquer condomínio dos sócios em relação aos bens sociais. Por assim ser, eles não exercem direito de propriedade ou de outra natureza sobre os mesmos, resultando que o patrimônio da sociedade e o dos seus membros são distintos e não se confundem, são incomunicáveis.

Esses feitos são diretamente ligados a outro, o da responsabilidade patrimonial, em outros termos, somente o patrimônio da pessoa jurídica denominados bens sociais, respondem pelas suas obrigações e não os bens particulares dos sócios e/ou representantes, uma vez que impera o princípio geral e gerador da responsabilidade de que ninguém é responsável pela obrigação de outrem e, por se distinta a pessoa do sócio e/ou administradores da pessoa jurídica, esta regra deverá ser aplicada. Em razão do princípio da autonomia patrimonial, os bens particulares daqueles não podem suportar as obrigações que tenham origem nas atividades desta, as chamadas obrigações sociais.

Essas regras consolidadas no nosso sistema legal estão sustentadas pela necessidade de manutenção dos princípios primários de existência que envolvem: a preservação, o relacionamento e a responsabilidade. Se for certo que a personalidade da pessoa jurídica deriva da lei, também é certo que ela atende aos instintos humanos, como o de dar proteção ao patrimônio particular daqueles que investem recursos próprios em empreendimentos coletivos que na maioria das vezes são de risco. A preservação sempre foi causa instintiva de preocupação humana, não só do corpo, mas também do patrimônio material amealhado, para garantir a subsistência e a preservação da vida. Neste sentido existe a necessidade da preservação da espécie humana, como pessoa individualmente considerada ou como grupo de pessoas, este em razão da interdependência considerada ou como grupo de pessoas, este e razão da interdependência dos seus integrantes e da conquista de objetivos particulares que se tornam coletivos em função da simbiose dos interesses comuns, uma vez que os relacionamentos entre pessoas, além de ser natural, podem determinar a união de esforços para alcançar objetivos que isoladamente seriam difíceis de serem alcançados. O da responsabilidade atende aos dois outros princípios. Ao imputar sanções. Objetiva garantir a preservação de pessoas, em seus mais variados aspectos, ou de grupos de pessoas, bem como dos relacionamentos que se formam entre elas, que podem resultar direitos e obrigações, em suma o de obter a segurança desejada. Por essas razões, esses valores são protegidos por normas estáveis que foram se consolidando na medida em que as sociedades percebem as suas necessidades, dando corpo a instintos jurídicos específicos e gerais para regerem situações particulares.

Outro efeito a ser considerado é o da titularidade processual, assim considerada a legitimidade para propor e responder ação judicial, o que significa dizer que a pessoa jurídica tem legitimidade para requerer em juízo a tutela que atenda aos seus interesses, e não os seus sócios e/ou administradores. Assim, exemplificando, caso a sociedade não receba crédito a que tem direito, ela, e não o seu sócio, deverá propor ação judicial adequada contra o devedor para obtê-lo, assim como, numa situação inversa, caso a sociedade deixe de pagar a sua dívida, o credor deverá promover ação judicial contra ela somente a sociedade terá legitimidade ativa ou passiva para demandar ou ser demandada em juízo, e não os sócios.

Considerando que a pessoa jurídica é dotada de personalidade e que dela deflui os efeitos decorrentes, também é certo, em termos de responsabilidade, que a ninguém é dado prejudicar ou tirar proveito de outrem em benefício próprio. Por outro lado, não se podem usurpar direitos pertencentes à outra pessoa sem que ela os disponha, entretanto a fraude deve ser combatida por todos os meios jurídicos permitidos por ser considerada ilícita, condenada pelo Direito, e, uma vez apurada, os seus efeitos deverão ser neutralizados de forma e não permitir a sua perpetuação e, se possível obter a reversão da situação criada, de forma a restaurar o que existia antes da sua ocorrência.

Desta forma, a regra é a da preservação da separação de direitos e obrigações entre a pessoa jurídica e os seus sócios e/ou administradores, decorrente da personalização, sob pena de relegá-la a uma outra posição jurídica que não a de sujeito de direito. Se assim não fosse, não deveria ser blindada ou protegida contra todas as incursões ou turbações que venham a maculá-la, uma vez que se faz necessário a preservação dos direitos da pessoa jurídica, pelo sentido da sua concepção, e a exceção deverá, necessariamente, estar prevista em lei de forma a preservar a autonomia que a própria lei lhe dotou.

3 As Restrições à Personalidade Jurídica

Na medida em que percebe que podem existir situações criadas com a intenção de prejudicar, fraudar, burlar, falsear ou ludibriar, com o intuito de obter proveito próprio em detrimento de outrem, as normas jurídicas se intensificam na tentativa de eliminar ou ao menos evitar que tais situações específicas venham a ocorrer. Constitui mecanismos legais utilizados pelas sociedades contemporâneas chamadas de salvaguardas normativas, tendo por objetivo proteger as pessoas ou vínculos jurídicos com outras pessoas, constituindo relações jurídicas, se não por dizer puras isentas de má-fé.

Assim entendemos que não devemos enxergar como um desprestígio à pessoa jurídica a intervenção legislativa que em alguns casos se faz presente, atuando contra a sua autonomia, uma vez que tais ingerências terão somente por objetivo resguardar direitos que forem preteridos por ação ilícita, e assim se faz necessário que o aplicador do direito analise, circunstancialmente, o caso que lhe é entregue para julgar, para a aplicação da exceção prevista em lei, pois, de outra forma, estará decidindo contra a norma da preservação da autonomia, o que lhe é negado pelos sistemas jurídicos, em especial o brasileiro.

Essas considerações iniciais são necessárias para melhor podermos analisar algumas situações em que se afasta a autonomia da pessoa jurídica e que devem ser consideradas como exceções legislativa à regra geral da preservação da sua autonomia, por se considerada sujeito de direito. Uma delas é a disregard doctrine, que veio a ser absorvida e internada em nosso Direito em vários institutos, excepcionando a aplicação do princípio da autonomia da pessoa jurídica, como será examinado a seguir. Sua aplicação decorre do abuso da personalidade jurídica, em decorrência do desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, a partir do qual os efeitos de certas e determinadas relações obrigacionais podem ser estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

4 Da Desconsideração da Personalidade Jurídica – Disregard Doctrine

A vulnerabilidade da autonomia da pessoa jurídica está fraude cuja manutenção constitui a negação do direito por este condenada por ser a sua antítese.

O direito repele a fraude de todas as formas, não dando cobertura à má-fé, ao ato ardiloso ou enganoso que tem por objetivo ludibriar ou lesar outrem, ao não cumprimento de um dever. Na superveniência destes atos impõe-se a necessária correção através dos instrumentos legais disponíveis, e um deles é o da desconsideração da personalidade jurídica, que, como tal, somente deverá ser utilizada para eliminação da fraude ou do abuso, preservando-se no restante a autonomia da pessoa jurídica.

A preservação da autonomia da pessoa jurídica na superveniência da fraude ou abuso implica na impossibilidade da sua correção e, consequentemente, se estará permitindo a manutenção do ilícito, o que não deve ocorrer em qualquer circunstância. Em outros termos, a manutenção da ilicitude para a preservação in totum da autonomia da pessoa jurídica não pode ser acolhida e deve ser afastada por todos os meios em Direito disponíveis, e um deles é o da desconsideração da personalidade jurídica, entretanto, como a fraude pode ser praticada sob várias formas, a cada caso ela deverá ser devidamente apurada para que se possa aplicar a despersonalização.

Notável o avanço legislativo recente do reconhecimento da possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, em situações específicas, ditas casuísticas, acompanhando a evolução de outros países que, sustentados na melhor doutrina, permitiram a sua integração no direito interno.

Em seu histórico verifica-se que inicialmente foram os tribunais ingleses e americanos que fizeram uso da disregard doctrine, com objeto de atingir o patrimônio dos controladores de sociedades, ao reconhecer que em determinados casos a pessoa jurídica era utilizada de forma fraudulenta para obtenção de benefícios particulares, ou seja, servia de escudo para iniciativas escusas, num autêntico desvio de finalidade. Em cada país onde ela foi introduzida, como meio de neutralizar a fraude, foram estabelecidas situações específicas de sua aplicabilidade, como se verificou na Inglaterra, Itália e França, neste mais especificamente no regime falimentar.

Neste sentido, Silvio Rodrigues (2012, p. 96-97) expõe que existe uma prática mundial, principalmente nas sociedades por ações, inclusive sob a forma de sociedades holding, em que o escopo primeiro é o ocultar os verdadeiros proprietários dos bens, ou seja, os bens da pessoa física são transferidos para a pessoa jurídica, passando apenas a ser titular de ações ou quotas da sociedade, e acrescentar: “A possibilidade que tais sociedades oferecem, de ocultar a pessoa do verdadeiro proprietário dos bens, provocou, em alguns países, uma reação da doutrina e da jurisprudência, visando pôr termos aos abusos que esta prática propiciaria. Essa concepção desenvolvida por alguns tribunais americanos e alemães é conhecida naquele primeiro país pela denominação de disregard theory ou disregard of the legal entity, ou ainda pela locução lifting the corporate veil, ou seja, erguendo-se a cortina da pessoa jurídica. O que pretendem os adeptos dessa doutrina é justamente permitir ao juiz erguer o véu da pessoa jurídica, para verificar, o jogo de interesses que se estabeleceu em seu interior, com o escopo de evitar o abuso e a fraude que poderiam ferir direitos de terceiros e o Fisco. Assim sendo, quando se recorre à ficção da pessoa jurídica para enganar credores, para fugir à incidência da lei ou para proteger um ato desonesto, deve o juiz esquecer a ideia de personalidade jurídica para considerar os seus componentes como pessoas físicas e impedir que por meio do subterfúgio prevaleça o ato fraudulento”.

Rubens Requião (2012, p. 458), introdutor do estado sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, expõe que ela foi esboçada na jurisprudência inglesa e norte-americana, onde é conhecida como a doutrina do disregard of legal entity, a qual pretende penetrar no âmago da pessoa jurídica, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade dos sócios. Esclarece que não se trata “de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la ineficaz para determinados atos”. Cita, o ilustre comercialista, o caso Salomon x Saloman, do ano de 1897, tirado da monografia Il Superamento della Personalitá Giuridica delle Societá di Capitali, do Prof. Piero Verrucoli, da Universidade de Pisa, como o primeiro caso envolvendo a disregard doctrine na jurisprudência inglesa. Segundo a narrativa, o caso envolvia o comerciante denominado Aaron Salomon, que constitui uma company, a Salomon & Co., em conjunto com seis pessoas da sua família, e cedeu o seu fundo de comércio a esta sociedade, recebendo, em consequência, como participação societária, vinte mil ações, equivalentes a esta contribuição, e para cada dos demais participantes da sociedade foi atribuída uma ação.

Salomon recebeu obrigações garantidas no valor de dez mil libras esterlinas. No entanto a sociedade veio a tornar-se insolvente e, como o seu ativo era insuficiente para a satisfação das obrigações garantidas, os credores quirografários nada teriam a receber. Porém, o liquidante, agindo no interesse destes, alegou que a atividade da sociedade era a atividade de Salomon e que ele usou de artifício para liminar a sua responsabilidade, e assim deveria ser condenado a pagar os débitos da company, com o total de valores investidos na liquidação de seu crédito privilegiado, o que foi acolhido em primeira instância e após pela Corte, ao entenderam que a sociedade era uma entidade fiduciária de Salomon, em outros termos, seu agente, e que ele permanecera como o efetivo proprietário do fundo de comércio. Com isto aplicou-se a desconsideração da personalidade jurídica da company. Mas a Casa dos Lordes reformou a decisão por entender que esta havia sido regularmente constituída, com a criação de uma pessoa diversa dos sócios, com personalidade, e, consequentemente, não havia responsabilidade pessoal do sócio Salomon para com os credores da sociedade, validando o seu crédito privilegiado.

Em verdade, a aplicação da doutrina tem por objetivo a desconsideração episódica ou circunstancial da personalidade jurídica para eliminar a fraude ou abuso do sócio e/ou administrador que dela se vale como escudo, sem que ocorra a extinção ou dissolução da pessoa jurídica.

Walfrido Jorge Warde Júnior (2007, p. 205-209), em seu estudo sobre a responsabilidade dos sócios, aponta os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica estabelecidos pelas cortes americanas, enfatizando que na maioria dos casos o que se pretende é definir uma disciplina da responsabilidade dos sócios e que, em busca de critérios, as Cortes americanas concentram-se, por desapego às formas jurídicas, nas realidades econômicas. Atenta que o poder de controle exercido pelo acionista ou pelo grupo controlador é objeto da atenção dos tribunais americanos, citando os seguintes casos, exemplificativos:

  1. a) Texas Industries, Inc. V. Lucas (cf. estados Unidos, julgado em 1982, Texas Court of Appeals. South Reportes, v. 634, p. 748-753), como exemplo conferido à questão, onde se atribui responsabilidade à controladora que, pelo exercício abusivo do seu poder de controle, transformou a controladora em seu instrumento para a prática de atos ilícitos;
  1. b) A class action ajuizada em face de Medical Engeneering Corporation (MEC) e da sua única acionista, Bristol-Myers Squibb Co. – Bristol (cf. Estados Unidos. In re Silicone Gel Breast Implants Productslç Liability, julgado em 1995, Supreme Court, Alabama. Federal Supplement, v. 887, p. 1.447 et seq.), por danos causados pelo vazamento de implantes de silicone, onde o tipo de controle exercido motivou, na sua maior parte, o pedido de desconsideração da personalidade por vícios dos produtos. Segundo o seu relato, esta se crendo protegida pelo privilégio da responsabilidade limitada, exerceu seu poder de controle para fazer com que a sua controlada comercializasse produtos que, eventualmente defeituosos, causariam danos à saúde dos consumidores. O tribunal imputou responsabilidade ilimitada à Bristol. No processo foi comprovado, dentre outras provas, que: os diretores da MEC também eram diretores da Bristol; que um ex-presidente da MEC afirmou que jamais, em cinco anos de mandato, foi convocado ou participou de reuniões de diretoria; todos os orçamentos da MEC foram submetidos à aprovação da Bristol; o seguro contratado pela MEC, no valor de dois bilhões de dólares, havia sido pago pela Bristol. O tribunal, ao decidir pela imputação da responsabilidade ilimitada á Bristol, apontou uma lista de condutas para a configuração do controle abusivo, dentre outros: controladora e subsidiária contavam com os mesmos diretores e funcionários; dispunham de departamentos comerciais unificados; controladora financiava as atividades da subsidiária; o capital da subsidiária é considerado pequeno em relação às suas atividades, riscos e responsabilidades; a controladora pagava os salários e outras despesas da subsidiária.

Nesta linha de exposição, e até por casos análogos, esclarece o que os americanos entendem por exercício abusivo do poder de controle, para autorizar a desconsideração da sociedade controlada: “(a) abuso de poder do imposto; e (b) abuso do poder de controle para prejudicar credores e acionistas minoritários”.

Adiante no seu trabalho, cita os casos em que as cortes americanas entendem as circunstâncias em que se configura confusão patrimonial, em outros termos, na medida em que o controlador da sociedade trata o patrimônio da mesma como se fosse um mero desdobramento da sua esfera patrimonial, com o objetivo de esgotá-lo ou torná-lo insuficiente à satisfação de créditos, utilizando como escudo a separação patrimonial, pois os seus bens pessoais seriam preservados, os tribunais americanos entendem que tal separação deixa de existir. Cita os seguintes casos exemplificados:

  1. a) a ausência de assembleias gerais de acionista e reunião de diretoria (Cf. Estados Unidos. Iron City Sand & Gravel v. West Fork Towning Corp, julgado em 1969, Supreme Court, West Virginia. Federal Supplemente, v. 298,p 1091 et seq.);
  1. b) o depósito de pagamento à sociedade na conta bancária do acionista controlador (Fc. Estados Unidos. Brown v. Benton Ceosoting Co., julgado em 1963, Los Angeles Court of Appeals. Southern Reportes, v. 147, p. 89);
  1. c) a diretoria de uma sociedade controladora que estabelece salários, indica diretores e declara dividendos da subsidiária controladora (Cf. Estados Unidos, Gentry v. Credit Plan Corp., julgado em 1975, Supreme Court, Texas. South. Western Reporter, v. 528, p. 571).

5 a Desconsideração da Personalidade Jurídica no Ordenamento Jurídico Brasileiro

No Brasil, antes da introdução das normas que a internaram em nosso sistema legal, a Consolidação das Leis do Trabalho, mais especificamente o §2º do art. 2º indiretamente fez aplicar o instituto ao estabelecer que: “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”. Neste caso a preocupação do legislador foi a de dar proteção ao empregado pela cadeia de vínculo societário e/ou de administração existente entre sociedades.

Na sua utilização o juiz irá desconsiderar os efeitos da personalização da pessoa jurídica circunstancialmente, com o objetivo de personalizar os sócios e/ou administradores, como forma de não perpetuar a fraude constatada no processo regular, ou mesmo o abuso de direito que cause danos a terceiros. A despersonalização não faz com que ela venha a ser dissolvida, ao contrário, será preservada sem que haja a dissolução, bem como a sua autonomia, mantendo que terceiros vitimados venham a ser prejudicados, pois somente no caso específico em que a autonomia patrimonial foi utilizada de forma fraudulenta ou por abuso ela não é levada em conta e será desconsiderada.

5.1 No Código de Proteção e Defesa do Consumidor

O art. 28 da Lei nº 8.078, de 11.09.90 – Código de Proteção e Defesa do Consumidor, assim trata do tema: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

No processo decisório o juiz atentará para a exegese dos ditames daquele dispositivo legal, relacionando-os ou não à questão fática contida nos autos. Havendo vinculação, deverá desconsiderar a personalidade jurídica sob pena do não acatamento do objetivo maior da norma consumerista que é o da proteção e defesa do consumidor.

E isso é curial uma vez que tal dispositivo situa a desconsideração em relação ao prejuízo que vier sofrer o consumidor, em decorrência de situações de ilicitudes previstas naquela norma: “(…) abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”.

Neste caso deve ser examinado se o consumidor sofreu qualquer prejuízo, decorrente do produto ou serviço adquirido do fornecedor por “abuso de direito” deste, o que significa dizer que o exercício do direito foi abusivo que ele agiu em excesso ao que poderia ser considerado normal, causando dano a outrem, no caso o consumidor.

Pode, também, o dano sofrido pelo consumidor, para os efeitos da desconsideração, ser motivado pelo “excesso de poder” do fornecedor, ao que a doutrina aponta como locução sinonímia do “abuso de direito”, uma vez que este tem o sentido de prática em excesso, ou seja, tudo aquilo que foge da normalidade, do habitual, do que é rotineiro na prática de um direito conferido pela norma.

Por “infração da lei, fato ou ato ilícito” deverá ser compreendido tudo o que foi praticado à margem ou que é contrário ao que a norma prescreve, em prejuízo do consumidor, em relação aos seus direitos.

A “violação dos estatutos ou contrato social” deverá ser compreendido tudo o que foi praticado à margem ou que é contrário ao que a norma prescreve, em prejuízo do consumidor, em relação aos seus direitos.

A segunda parte do art. 28 autoriza a desconsideração da personalidade jurídica “quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. A falência e o estado de insolvência decorrem do preenchimento dos pressupostos estabelecidos na norma falimentar e processual civil, e a declaração judicial de uma dessas situações jurídicas. Uma vez atendidos tais requisitos, estará o juiz autorizado a efetivar a desconsideração, quando em detrimento do consumidor ocorrer qualquer uma das situações descritas no artigo. Também poderá ocorrer a desconsideração no encerramento judicial ou extrajudicial da pessoa jurídica, nos termos das normas que permitem a dissolução da sociedade, ao que se imputará como encerramento regular, abrangendo, também, o irregular, quando efetuados sem a observância das prescrições normativas, que chegaria próximo à inatividade da pessoa jurídica, prevista no dispositivo legal sob comento, sem bem que esta situação de inatividade não pode ser considerada tão somente como encerramento, uma vez que os integrantes da sociedade poderão, por iniciativa própria, mantê-la em estado de hibernação e a qualquer momento ativá-la. A parte final do artigo menciona que a efetivação da desconsideração seria provocada pela má administração, se bem que esta não constitui tão somente causa determinante para a decretação da falência ou da insolvência da pessoa jurídica, outras situações estão previstas nas normas disciplinadoras destas situações, bem como o encerramento ou a inatividade da pessoa jurídica.

O seu § 5º acrescenta: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. Pelo que se percebe deste dispositivo, o legislador desprezou os critérios de desconsideração, dando-lhe abrangência maior, se comparado às situações casuísticas previstas no caput do artigo, como uma regra em aberta a ser aplicada na constatação de situações em que a personalização possa de qualquer forma servir de obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, abrangendo outras situações não previstas no caput.

5.2 Na Norma Ambiental – Lei nº 9.605, de 12.02.98

Seguindo o que foi estabelecido na norma sobre o consumo, o legislador da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, dispondo sobre a responsabilidade por lesão ao meio ambiente, assim a disciplina que seu art. 4º: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.

A Lei nº 9.605/98 dispõe sobre as sanções penais a administrativas derivadas das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e no art. 3º estabelece que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme dispõe, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade, acrescentado o parágrafo único que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

Como se percebe, esta norma ao imputar responsabilidades à pessoa jurídica quer que na ocorrência de prejuízo, causado à qualidade do meio ambiente, ela venha a ressarcir, e segundo o art. 4º sempre que a sua personalidade for considerada obstáculo ao ressarcimento do dano causado à qualidade do meio ambiente poderá ocorrer a desconsideração da pessoa jurídica, para que aquele objetivo seja alcançado.

5.3 No Código Civil

Posteriormente o art. 50 do Código Civil tratou da desconsideração da personalidade jurídica, dispondo: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certa e determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

O art. 50 do Código Civil permite a desconsideração da personalidade jurídica quando for reconhecido o abuso da personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Deve ser entendido como abuso o que é praticado em excesso, o que vai além daquilo que seria considera como de normalidade para o exercício de poder ou do direito, traduzido no seu mau uso. Assim, a sua constatação sempre deverá ser examinada sob o enfoque de má-fé, uma vez que a boa-fé é determinante na norma civil como o princípio norteador de todos os negócios jurídicos, de forma a não permitir o ardil ou o embuste, utilizado para prejudicar alguém. Mas ainda estabelece como traço distintivo do abuso da personalidade o desvio de finalidade, assim considerado o fim determinante da constituição da pessoa jurídica que não foi observado, que decorre do desvirtuamento do objetivo social para buscar fins que não foram previstos no ato de constituição, ou que são vetados por lei, ou pela confusão patrimonial, esta decorrente de valores financeiros ou outros patrimônios da pessoa, jurídica utilizados pelos sócios em seu benefício, a não poder identificar a separação patrimonial entre ambos, ou mesmo quando o bem da sociedade encontra-se registrado em nome do sócio, ou quando o deste está em nome daquela.

Complementa o art. 50 da norma civil que pode juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, na medida em, que lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. Nota-se que a norma atribui a legitimidade a quem sofre a fraude ou o abuso, cabendo ao juiz, diante dos fatos demonstrados, desconsiderar. Estas demonstrações estão em pleno fático ao que a doutrina estabelece como formulações subjetivas ou objetivas, aquelas com mais dificuldade de constatação, por estarem no plano subjetivo, onde a abrangência do campo de provas é mais restritas em decorrência de intenções subjetivas, estando aí situadas no ônus da prova de quem a alega, podendo ocorrer a inversão e definidas em determinadas áreas do direito, como na legislação consumerista, a facilitar à parte considerada hipossuficiente, até porque, como vimos, há previsão da desconsideração nesta norma. No plano das formulações objetivas há mais facilidade da demonstração dos fatos e, consequentemente, de obter a tutela necessária no atendimento dos interesses e direitos da parte prejudicada, e aqui elas se situam mais no campo da confusão patrimonial, e muitas vezes contábeis de movimentações financeiras, onde constam pagamentos feitos pelas pessoas jurídicas em favor do sócio ou administrador, ou quando os pagamentos são feitos por estes e favor daquela, ou mesmo se diga de registros impróprio de bens de um deles em nome de outro. Também é enfático aquele dispositivo legal em estabelecer que a tutela dos interesses de credores ou de terceiros prejudicados pela utilização fraudulenta da autonomia será episódica, circunstancial, específica a certas e determinadas relações obrigacionais, para que possamos ser estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Quanto aos administradores, procurou a norma atingi-los na medida em que tenham responsabilidades, como em situações em que eles figuram formalmente como meros administradores, mas em verdade são os controladores da pessoa jurídica, embora outros apareçam como sócios, os chamados “testas-de-ferro”.

Em suma, pela análise do art. 50 do Código Civil, o que se percebe é que o legislador identificou alguns pressupostos para que seja desconsiderada a personalidade, como exceção à regra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, de forma a conservar o seu status de sujeito de direito, dotado de personalidade, com o objetivo único e exclusivo de não permitir a fraude ou o abuso. O que se espera com a aplicação desta regra é a correção de fraudes ou simulações.

5.4 Na Norma Antitruste – Lei nº 12.529, de 30.11.2011

Mais recentemente o art. 34, da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, que trata da defesa da concorrência, estipula em seu art. 34 que: “A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contato social”. Acrescentando o parágrafo único que: “A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocado por má administração”. Estes dispositivos substituíram o que existia anteriormente no art. 18, da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, o qual foi revogado por aquela norma.

O legislador da norma antitruste, da revogada e da atual, ao enfatizar a aplicação da teoria desconsideração, produziu o que está contido no Código de Defesa e Proteção ao Consumidor, adaptando-a à tutela do livre mercado, e os comentários feitos à norma consumerista são aqui aplicados.

5.5 No Direito do Trabalho

Baseado na predominância do direito de crédito do trabalhador em detrimento da autonomia patrimonial dos sócios das sociedades devedoras de créditos trabalhistas, a jurisprudência trabalhista consolidou entendimento de que a autonomia é menos relevante do que o direito de crédito do trabalhador. No sopesar desses dois direitos, optou em atribuir maior peso ao crédito do trabalhador.

A desconsideração imposta nas lides trabalhistas, na maioria das vezes não está fundamentada em fatos que demonstrem a fraude, o abuso de direito ou da personalidade jurídica, ou o desvio de finalidade, mas no esgotamento patrimonial da sociedade, na sua insolvência, para que se impute responsabilidade aos sócios, aplicando-se a desconsideração da personalidade jurídica pela insuficiência patrimonial, para satisfazer o crédito de natureza trabalhista.

Por construção jurisprudencial criou-se, de forma indiscriminada, exceção á regra da aplicação da desconsideração da personalidade que tem como supedâneo o abuso da personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, bastando tão somente, para a sua aplicação, a constatação da inexistência de bens suficientes no patrimônio social para o atendimento do crédito trabalhista, preservando-se, no entanto, a regra da obrigação subsidiária dos sócios, em outros termos, estes respondem pelas obrigações sociais com o patrimônio pessoal, após o esgotamento dos bens que compõe o da sociedade.

5.6 A Responsabilidade Administrativas e Civil da Pessoa Jurídica – Lei nº 12.846, de 01.08.2013

A lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, dispõe sobre a responsabilidade administrativa e civil de pessoa jurídica pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Prevê aquela norma no art. 14 que a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada como abuso de direito facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos nela previstos ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica, aos seus administradores e sócios com poderes de administração, atendendo o contraditório e a ampla defesa.

O texto da norma pouco se diferencia do estabelecido no art. 50 do Código Civil brasileiro, adicionando e estendendo aos administradores e sócios representantes da pessoa jurídica os efeitos das sanções a esta imposta.

6 Da Desconsideração da Personalidade Jurídica Inversa

Vimos que a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser aplicada em situação episódica de fraude e/ou abuso comprovado do uso da autonomia patrimonial, ou seja, em situação onde a obrigação imposta à pessoa jurídica é acoimada de ilicitude oculta. Os efeitos da superação da personalidade será a abstração da pessoa jurídica para que a obrigação seja imputada ao seu sócio e/ou administrador e, assim, o patrimônio pessoal de um e ou do outro poderá ser utilizado na satisfação do débito existente. A dívida que é da pessoa jurídica, pela desconsideração, passa a ser responsabilidade do seu sócio e/ou administrador.

Fábio Ulhoa Coelho (2012, 2:68), na análise que faz em relação à desconsideração da personalidade jurídica, aponta a questão sobre a desconsideração inversa, citando Bastid-David-Luchaire, qual seja, “desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação do sócio”. Pela explanação, sempre elucidativa do citado jurista, a desconsideração invertida cuida de coibir o desvio de bens, situação em que o devedor transfere os seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual mantém absoluto controle e, desta forma, continua a usufruí-lo, apesar de não ser da sua propriedade e sim da pessoa jurídica controlada por ele; nesta situação os seus credores estariam impossibilitados de executar tais bens.

De fato, tal situação pode trazer prejuízo ao credor do sócio da pessoa jurídica, uma vez que ele, na condição de devedor, não terá no seu patrimônio particular bens que possam responder pelas obrigações não adimplidas, uma vez que ais bens, pela transferência ocorrida, não estão em seu nome e sim no da sociedade que faz parte. Outra situação de aplicação da desconsideração inversa é a confusão patrimonial entre os dois sujeitos de direito, onde se constatam situações de utilização de recursos da sociedade para pagamento de obrigações que são dos seus sócios, não se identificando a separação patrimonial entre ambos.

Caberá ao juiz avaliar todos esses aspectos em casos concretos, de forma ao onerar o patrimônio daqueles que realmente têm disponibilidades, na medida em que terceiros possam vir a ser prejudicados, e nessa avaliação verificar até que ponto o véu de uma pessoa jurídica ou de outras deverá ser descerrado para que os verdadeiros responsáveis o seus bens sejam atingidos.

O § 2º do art. 133 do Código de Processo Civil autoriza a aplicação de desconsideração inversa da personalidade jurídica, nos termos estatuídos no Capítulo que o regula.

7 Da Invocação da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Execução e no Processo de Conhecimento

Como se viu, a regra geral é da separação do patrimônio da pessoa jurídica e o dos seus sócios e/ou administradores. Somente em situações consideradas excepcionais, determinadas em lei, autoriza-se a desconsideração da personalidade jurídica daquela para apreender no patrimônio destes os bens suficientes para o pagamento da obrigação, através da penhora.

Excetuados os casos previstos na norma legal, não há de se cogitar em utilizar o patrimônio dos sócios e/ou administradores para o pagamento da dívida contraída diretamente pela pessoa jurídica, em outros termos, não comprovadas, no processo judicial, as excepcionalidades que possam autorizar a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, não se pode cogitar da apreensão dos bens dos sócios ou administradores para o pagamento das dívidas por ela contraídas.

Cogitava-se pelo regime da norma processual anterior se a desconsideração da personalidade jurídica poderia ocorrer no curso da execução ou na execução coletiva, ou seja, possa ser invocada originariamente na execução. Sempre nos pareceu que sim, porque é nela em que geralmente se constata o desvio de finalidade ou abuso, autorizativos da superação da personalidade, além do que existe o princípio da economia processual que, para Hernando Echandia (1974, p.46), consiste na regra de que no processo “deve tratar-se de obter o maior resultado com o mínimo de emprego de atividade processual”.

Não se justifica, portanto, a instauração de ação autônoma para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quando em curso a execução. Ela poderia ser concedida incidentalmente na execução, uma vez constatados os pressupostos de sua incidência. Na execução o credor deverá descrever o fato que configurou o desvio de finalidade ou abuso que teve por objetivo acobertar interesses pessoais do sócio e/ou administrador que o beneficiou, de forma a imputar-lhe responsabilidade patrimonial.

Calisto Salomão Filho (1998, p. 109) assim observa: “Finalmente, a desconsideração é instrumento para a efetivação do processo executivo. Essa característica, aliada ao supracitado caráter substitutivo da desconsideração em relação à falência, tem uma consequência importantíssima. A desconsideração não precisa ser declarada e obtida em processo autônomo. No próprio processo de execução, não nomeando o devedor bens à penhora ou nomeando bens em quantidade insuficiente, ao invés de pedir a declaração da falência da sociedade (art. 2º, I, do Decreto-Lei nº 7.661, de 21.06.1945), o credor pode e deve, em presença dos pressupostos que autorizam a aplicação do método da desconsideração, definidos acima, pedir diretamente a penhora em bens do sócio (ou a sociedade, em caso de desconsideração inversa)”.

Por outro lado, o devido processo legal exige a aplicação do princípio do contraditório, no sentido de que se deve dar à parte a oportunidade de se manifestar sobre as alegações do credor, ou até mesmo de fazer prova em contrário, para que se possa aplicar a desconsideração, de forma a permitir o contraditório e a ampla defesa no procedimento incidental instaurado na própria execução. Neste sentido posiciona-se Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 182): “O redirecionamento da execução da pessoa jurídica para os bens particulares do sócio ou gestor, mesmo quando jurisprudência permite possa ocorrer no curso da execução, depende de citação pessoal daquele que teria desviado os negócios sociais para acobertar seus interesses pessoais. O requerimento do credor, em tal situação, deverá obrigatoriamente explicitar o fato ou fatos configuradores do abuso da personalidade jurídica (Código Civil, art. 50), a fim de que aquele a quem se imputa o desvio ou abuso possa exercer o contraditório e ampla defesa assegurados constitucionalmente (art. 5º, LV)”.

A norma processual civil atual, em seu art. 133, trata a desconsideração da personalidade jurídica como um incidente processual que poderá ser instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando este puder ou couber intervir no processo, e o art. 134 autoriza seu cabimento em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundamentada em titulo executivo extrajudicial.

O incidente segue os ditames do devido processo legal, mediante fundamentação do atendimento dos pressupostos estabelecidos na norma material para a configuração da desconsideração da personalidade jurídica, seguida da apresentação de defesa do sócio ou da pessoa jurídica, após a citação, e de decisão interlocutória.

Uma vez acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens será considerada como fraude de execução e ineficaz em relação ao requerente (art. 137).

Nos termos do art. 1.062 do Código de Processo Civil o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos ajuizados especiais.

O § 2º do art. 134 do Código de Processo Civil dispensa a instauração do incidente quando a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inaugural do processo, e nesta hipótese haverá a necessidade da citação do sócio ou da pessoa jurídica.

8 Da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Dissolução Irregular da Sociedade

Pode levar à desconsideração da personalidade jurídica o encerramento irregular da sociedade que não deixa bens suscetíveis de penhora, pelo abuso de direito praticado pelo sócio ou administrador, caracterizado pelo desvirtuamento de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Vimos que a preservação da personalidade constitui a regra, cujo efeito imediato é o de estabelecer a separação patrimonial e obrigacional entre a pessoa jurídica e os seus sócios e/ou administradores, repercutindo as obrigações sociais exclusivamente na pessoa jurídica e não nos membros que a compõem, existindo nítida separação de patrimônio e obrigação entre a sociedade e os seus sócios e/ou administradores, reconhecendo e consagrando o princípio da autonomia patrimonial.

Se a pessoa jurídica participa de qualquer relação jurídica, na condição de credora ou devedora, somente ela estará vinculada, e não os seus sócios c/ou administradores. São os efeitos da personalização e constitui a regra geral, e as exceções estão previstas em lei em situações excepcionais, como o desvirtuamento da atividade da sociedade empresarial, considerado um abuso de direito dos sócios e/ou administradores, punindo-se com a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, mas como medida excepcional e circunstancial, a permitir, momentaneamente, que os bens do sócio e/ou administrador venham a ser atingidos, de forma a proteger a boa-fé nas relações jurídicas que venham a se formar.

Para que ocorra a desconsideração da personalidade jurídica exige-se, nos termos do art. do Código Civil brasileiro, o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, a fim de que os bens particulares do sócio e/ou administrador venham a ser utilizados ou estendidos em certas e determinadas relações obrigacionais da sociedade.

Portanto, não existindo o abuso de direito, não poderá o juiz decidir pela desconsideração da personalidade, e o processo de subsunção deverá estar sustentado na comprovação do desvio de finalidade e/ou pela confusão patrimonial.

Na ocorrência da dissolução irregular da sociedade o que se questiona é se este fato em si pode levar à desconsideração da personalidade jurídica. Se analisarmos o art. 50 do Código Civil, verificamos que ele é mandatório no sentido de permitir a desconsideração no abuso do direito, caracterizado pelo desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial, o que exige a comprovação fática da sua ocorrência com o objetivo único de favorecimento do sócio e/ou administrador, mediante o esgotamento do patrimônio, social, em detrimento de terceiros. Assim, entendemos que o fato isolado da dissolução irregular da sociedade, sem que fiquem caracterizados os componentes do abuso do direito, não pode levar à desconsideração da personalidade jurídica. Na dissolução irregular da sociedade, isoladamente considerada, existe a ilicitude pelo fato da norma prescrever condutas dissolutórias não observadas, e se este fato vier a atingir terceiros de boa-fé pelo esvaziamento patrimonial, em decorrência da sua divisão entre os componentes da sociedade, sem que aquelas venham a receber os seus créditos, a sanção pela ilicitude praticada é o de responsabilizá-los por tais condutas contrárias a lei. Assim nos parecer que podem existir duas situações fáticas distintas, se bem que poderá ocorrer finalidade comum, que é a do favorecimento pessoal em detrimento de outrem.

Fabio de Ulhoa Coelho (2012, p. 487) esclarece que todos os procedimentos com vista à extinção da pessoa jurídica deverão ser observados por aqueles na forma da lei têm por obrigação segui-los, sob pena de virem a ser responsabilizados pessoalmente, como os sócios nas sociedades empresariais que não seguem as normas societárias e que, uma vez tomadas atitudes como paralisação das atividades econômicas, repartição dos ativos entre eles, e dispersão, sem preservar os direitos dos credores, dissolvendo de fato a sociedade, deverão eles responder por todas as obrigações sociais irregularmente dissolvidas, de forma pessoal e ilimitadamente, uma vez que deixaram de cumprir as normas societárias, agindo de forma ilícita.

No Recurso Especial 1.395.288/SP, a Relatora Ministra Nancy Andrighi pontificou em seu voto que a dissolução irregular da sociedade não pode ser fundamento isolado para o pedido da desconsideração da personalidade jurídica, mas que devem existir fatos concretos que permitam deduzir ter sido o esvaziamento do patrimônio societário ardilosamente provocado de modo a impedir a satisfação dos credores em benefício de terceiros, a considerar esse como o abuso de direito, delineado na situação fática de desvio de finalidade e/ou de confusão patrimonial. Esclarece a ilustre magistrada que a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional e que não pode ser decretada com apoio exclusivo na impontualidade da pessoa jurídica, até porque a insuficiência de bens necessários à satisfação das dívidas contraídas consiste, a rigor, em pressupostos para a decretação da falência e não para a desconsideração da personalidade jurídica. Cita, ainda, o REsp 1.259.066/SP, de sua relatoria, que merece destaque o entendimento mais recente em considerar que o encerramento irregular da empresa constitui importante indício de abuso da personalidade, e que as peculiaridades do caso concreto são aptos a embasar o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para se buscar a satisfação do credor no patrimônio individual dos sócios.

 

9 Bibliografia

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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 16. ed. São Paulo: saraiva, 2012. v. 2.

ECHANDIA, Hernando. Compendio de derecho procesal. 1974. v. 1.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 1

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 1.

SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. São Paulo: Malheiros, 1998.

THEODORO Jr., Humberto. Curso de direito processual civil: processo de execução e cumprimento da sentença, processo cautelar e tutela de urgência. 44. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.v.2.

WARDE Jr., Walfrido Jorge. Responsabilidade dos sócios: a crise da limitação e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. João Baptista Villela (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

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