OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Rafael Medeiros Antunes Ferreira
SUMÁRIO: Introdução; 1 Desenvolvimento; 1.1 Características gerais dos direitos da personalidade; 1.2 Proteção post mortem dos direitos da personalidade; 1.3 Disposição sobre o próprio corpo em vida; 1.4 Disposição post mortem sobre o próprio corpo; 1.5 Direito ao nome; 1.6 Proteção da imagem; 1.7 Proteção da privacidade; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Os direitos da personalidade dignam-se a tutelar a pessoa natural em sua essência. Eles constituem os atributos do ser humano necessários para seu pleno desenvolvimento físico, moral e intelectual. Com efeito, estão relacionados aos direitos existenciais do ser humano, em contraposição aos direitos patrimoniais.
Com a ampliação do alcance do direito constitucional sobre os ramos do direito privado (constitucionalização do Direito), os direitos da personalidade adquiriram relevância ímpar, já que muitos deles estão previstos na Constituição da República de 1988 como direitos fundamentais do indivíduo. Disso decorre a extrema relevância do tema para o estudo contemporâneo do Direito, qualquer que seja o seu ramo.
1 DESENVOLVIMENTO
De acordo com a definição clássica, os direitos da personalidade são o conjunto de caracteres e atributos da pessoa humana, referentes ao seu desenvolvimento físico, moral, espiritual e intelectual. Eles estão intimamente atrelados à ideia de direitos existenciais (extrapatrimoniais).
Os direitos da personalidade englobam a integridade física (abrange o direito à vida, à saúde e ao próprio corpo), a integridade intelectual (abrange a liberdade de pensamento e os direitos morais do autor, nos termos do art. 24 da Lei nº 9.610/1998) e a integridade moral (abrange a proteção à honra, ao recato e à identidade pessoal).
É incontroverso que essa classificação tripartida envolve um rol meramente exemplificativo. Aliás, todo e qualquer rol de direitos da personalidade é meramente exemplificativo, porque os direitos da personalidade têm como cláusula geral o princípio da dignidade da pessoa humana (1ª parte do Enunciado nº 274 do Conselho da Justiça Federal – “CJF“).
Quanto à origem dos direitos da personalidade, a doutrina majoritária, seguida por Carlos Alberto Bittar[1], Caio Mário da Silva Pereira[2] e Carlos Roberto Gonçalves[3], acredita que os direitos da personalidade originam-se do jusnaturalismo. Os direitos da personalidade resultam dos valores e, portanto, são anteriores ao próprio ordenamento jurídico. Essa posição visa a enaltecer a tutela dos direitos da personalidade, impedindo o Estado de aniquilar tais direitos.
Por outro lado, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald[4] e Gustavo Tepedino[5] defendem que o próprio ordenamento jurídico produz os direitos da personalidade, e não os valores sociais. Segundo eles, o primeiro entendimento foi relevante no momento histórico de reação aos Estados totalitários. Mas, uma vez consolidado o regime democrático, esse segundo entendimento evita o aniquilamento de direitos da personalidade em prol de valores supostamente humanistas. Assim, ao contrário do que pode parecer, esse entendimento confere maior proteção aos direitos da personalidade, já que um suposto interesse público não tem o condão de aniquilar os direitos da personalidade. Seriam exemplos desses falsos interesses públicos a experimentação científica em seres humanos em prol de prevenção de doenças, a aplicação de penas corporais em países muçulmanos e os linchamentos públicos.
Além disso, essa seria a única forma de explicar a proteção dos direitos morais do autor, que é inimaginável sem o ordenamento jurídico.
Critica-se essa corrente com base no risco de engessamento da proteção dos direitos da personalidade, trazido pelo próprio Estado. Contra-argumenta-se que o risco é mitigado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. É inegável que essa posição vem ganhando espaço na doutrina e na jurisprudência.
Além da tutela repressiva (art. 12, 2ª parte), o Código Civil prevê a tutela preventiva dos direitos da personalidade (art. 12, 1ª parte), que é um desdobramento da despatrimonialização do direito civil. Em regra, a tutela dos direitos patrimoniais ocorre de forma repressiva. Porém, essa lógica é insuficiente para proteção da dignidade da pessoa humana, o que possibilita a aplicação dos mecanismos de tutela específica, previstos no art. 461 do Código de Processo Civil (Enunciado nº 140 do CJF).
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[6] defendem que há uma terceira espécie de tutela dos direitos da personalidade: a tutela reintegratória, que busca o retorno ao status quo ante. Exemplo: o direito de resposta e a retratação pública. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (“STJ“) entendeu que a tutela reintegratória não exclui a ressarcitória, pelo princípio da reparação integral, previsto no art. 944 do Código Civil (REsp 959.565). A tutela reintegratória não elide completamente os danos extrapatrimoniais, mas apenas minimizam seus efeitos, visto não ser possível a recomposição dos bens jurídicos sem conteúdo econômico (retorno ao status quo ante).
1.1 Características gerais dos direitos da personalidade
Em regra, pode-se afirmar que os direitos da personalidade são vitalícios, inatos, absolutos, irrenunciáveis, impenhoráveis e imprescritíveis.
Nada obstante a característica da vitaliciedade, alguns direitos da personalidade recebem proteção post mortem (arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil), o que representa uma manifestação da despatrimonialização do direito civil.
Além disso, essa espécie de direitos é inata, termo adotado pela doutrina majoritária, pois está atrelado à corrente jusnaturalista. A segunda corrente doutrinária acima exposta defende que os direitos da personalidade são reconhecidos em caráter de generalidade. Tal discussão, no entanto, é meramente acadêmica, já que, na prática, todos os autores afirmam que todas as pessoas possuem direitos da personalidade.
Ainda, pode-se dizer que os direitos da personalidade são absolutos. Isso, contudo, não significa dizer que direitos da personalidade são ilimitados, mas sim que eles possuem oponibilidade erga omnes. Os direitos da personalidade representam ambiente fértil à ponderação de interesses (2ª parte do Enunciado nº 274 do CJF), já que nenhum direito é ilimitado.
Tais direitos são também irrenunciáveis (art. 11 do Código Civil). Como contraponto, vários autores salientam que, se esses direitos fossem efetivamente irrenunciáveis e indisponíveis, ninguém poderia posar nu, participar de reality shows, entre outras atividades.
Por isso, muitos afirmam que os direitos da personalidade são relativamente indisponíveis (Enunciados nº 4 e 139 do CJF). Só não se admite que a renúncia seja permanente e geral. Assim, por exemplo, a cessão vitalícia de imagem por atletas – comum no exterior – não é bem recebida no Direito brasileiro. A renúncia geral diz respeito à ideia de que a renúncia merece sempre interpretação estritiva.
Além disso, os direitos da personalidade são impenhoráveis, característica que se extrai do próprio caráter extrapatrimonial deles.
O art. 5º da Lei nº 8.009/1990 exige moradia permanente para configurar o bem de família. Mas o STJ já pacificou o entendimento de que a impenhorabilidade subsiste ainda que o proprietário não resida no imóvel, desde que fique evidenciado que o sujeito depende dos recursos advindos do aluguel para sua subsistência. É uma interpretação contra legem, mas em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por fim, esses direitos são imprescritíveis. Eles podem ser exercidos a qualquer tempo, o que revela uma tutela diferenciada dos direitos da personalidade, afinal a prescrição envolve segurança jurídica. Nesse caso, a tutela diferenciada parece afastar o cabimento de supressio: a perda de prerrogativas por conta da inércia prolongada. O exemplo legislativo mais marcante de supressio está previsto no contrato de locação (art. 330 do Código Civil), situação em que o pagamento reiteradamente feito em outro local (exemplo: Petrolina) faz presumir a renúncia do credor ao local previsto contratualmente (exemplo: Recife).
Ainda assim, é entendimento amplamente dominante da doutrina e jurisprudência que os reflexos patrimoniais decorrentes do direito da personalidade prescrevem. Assim, por exemplo, a investigação de paternidade é imprescritível, mas não a petição de herança (Súmula nº 149 do Supremo Tribunal Federal – “STF“).
No caso de dano moral, a pretensão de indenização sujeita-se ao prazo prescricional de três anos para reparação civil (art. 206, § 3º, V, do Código Civil). De forma bastante minoritária, há alguns julgados das turmas de direito público do STJ reconhecendo a imprescritibilidade também dos reflexos patrimoniais (REsp 816.209 e REsp 1.002.009). Flávio Tartuce[7] defende essa posição.
Há quem defenda que, se o dano moral decorrer de relação de consumo, aplica-se o prazo de cinco anos (art. 27 do Código de Defesa do Consumidor – “CDC“). O raciocínio jurídico é o seguinte: se o prazo prescricional para a reparação por dano patrimonial é de cinco anos, não há justificativa para se adotar um prazo menor para reparação por dano moral. Este é o entendimento do Enunciado nº 36, de 2009, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Contudo, é preciso destacar que esse posicionamento é bastante polêmico, pois o prazo de cinco anos refere-se especificamente às hipóteses de fato do produto, aplicando-se o Código Civil aos casos não previstos no CDC.
O marco inicial do lapso prescricional dos reflexos patrimoniais é o momento de consumação da lesão. Gustavo Tepedino[8], de forma quase isolada, afirma que a lesão à dignidade da pessoa humana não se consuma em um momento estanque, mas, ao contrário, prolonga-se no tempo. Assim, não ocorre a premissa indispensável ao advento do prazo prescricional, sendo a pretensão por dano moral imprescritível. O renomado autor concorda que os reflexos patrimoniais prescrevem, mas afirma que, no caso do dano moral, não se verifica o marco inicial do lapso prescricional (consumação da lesão).
1.2 Proteção post mortem dos direitos da personalidade
A proteção post mortem dos direitos da personalidade está positivada no art. 12, parágrafo único, do Código Civil. Além dos legitimados previstos expressamente no dispositivo legal, a proteção também pode ser exercida pelo companheiro, por força do art. 226 da Constituição da República de 1988 (Enunciado nº 275 do CJF).
No que se refere às características da legitimação para agir na defesa dos direitos da personalidade do falecido, uma corrente doutrinária entende que os legitimados agem na defesa de direito do falecido. A legitimação extraordinária é justificada com base na despatrimonialização do direito civil. No entanto, esse entendimento esbarra na característica da intransmissibilidade dos direitos da personalidade (art. 11 do Código Civil). Pensando dessa forma, seria difícil justificar a sua tutela preventiva (a tutela ressarcitória não seria problema, pois esta abrange apenas os reflexos patrimoniais do direito).
Por conta disso, outra linha de pensamento sustenta que os legitimados agem na defesa de direito próprio. Os legitimados são pessoas presumidamente próximas do falecido, suportando um dano moral próprio. Há quem afirme que os legitimados são lesados indiretos, vítimas de dano reflexo (ou indireto ou por ricochete). Esse é o entendimento recente do STJ (REsp 521.697 e REsp 913.131).
Caio Mário da Silva Pereira[9] argumenta que, para a tutela preventiva, há legitimação concorrente dos legitimados do art. 12, parágrafo único, do Código Civil. Mas, para tutela ressarcitória, deve ser obedecida a vocação hereditária, pois abrange reflexos patrimoniais do direito. Tal posição é extremamente discutível, pois termina por patrimonializar os direitos da personalidade. Ademais, parece contrariar a jurisprudência do STJ, que entende tratar-se de direito próprio (dano moral indireto, e não direito sucessório). Logo, nada impede, por exemplo, que o pai e o irmão sofram dano moral. O STJ já entendeu que é plenamente cabível que o irmão pleiteie dano moral, mesmo após o pai ter acordado dano moral com a empresa aérea causadora do dano (Ag Rg-Ag 1.316.179).
Importante notar que essas hipóteses (arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único) não se confundem com o art. 943 do Código Civil, que trata da violação sofrida em vida. Há, nesse caso, a transmissibilidade do direito de exigir a reparação, com a morte do titular do bem lesado. Nas hipóteses acima, ao contrário, a violação aos direitos da personalidade atinge a pessoa já falecida.
Alguns doutrinadores afirmavam que o art. 943 do Código Civil seria aplicado apenas ao dano material, em função da intransmissibilidade do dano moral. Mas hoje há tendência jurisprudencial de aplicar esse dispositivo também ao dano moral, já que se trata de reflexo patrimonial do direito da personalidade. O direito da personalidade é intransmissível, mas o reflexo patrimonial de sua violação é transmissível. Trata-se de um direito pessoal do herdeiro. Há julgado recente do STJ nesse sentido (REsp 1.040.529).
Por fim, a interpretação sistemática entre art. 12, parágrafo único, e art. 20, parágrafo único, do Código Civil sugere que aquele é regra geral (trata de direito da personalidade de modo geral), enquanto este é regra especial (trata de determinados direitos da personalidade, basicamente direito de imagem e direitos morais do autor). Essa diferenciação é relevante, porque os herdeiros colaterais estão excluídos do rol do art. 20, parágrafo único, do Código Civil.
1.3 Disposição sobre o próprio corpo em vida
A disposição sobre o próprio corpo em vida está prevista no art. 13 do Código Civil. Os limites para essa disposição são a diminuição permanente da integridade física e o respeito aos bons costumes.
No que se refere à cirurgia de mudança de sexo (ou de transgenitalização), Carlos Roberto Gonçalves[10] defende que ela é vedada por esse dispositivo por violar os bons costumes e causar uma diminuição permanente da integridade física. Mas, atualmente, essa posição é absolutamente isolada, pois a jurisprudência amplamente dominante entende a cirurgia como cabível.
Isso porque, em primeiro lugar, a noção de “bons costumes” varia no tempo e no espaço, não havendo essa violação atualmente. Quanto à diminuição permanente da integridade física, afirma-se que essa cirurgia não é propriamente mutiladora. Na verdade, ela propicia uma melhor adequação da sexualidade física à sexualidade psíquica. Portanto, ela é um instrumento de promoção da dignidade da pessoa humana. Além disso, o próprio art. 13 do Código Civil ressalva os casos de exigência médica, que é uma das premissas da cirurgia de transgenitalização. A esse respeito, há inclusive a Resolução nº 1.682/2002 do Conselho Federal de Medicina, que prevê diversos procedimentos prévios indispensáveis à realização da cirurgia, que buscam constatar a sua finalidade terapêutica. Esse é o entendimento dos Enunciados nºs 6 e 276 do CJF. Atualmente, até mesmo o Sistema Única de Saúde disponibiliza a realização da cirurgia.
Arnaldo Rizzardo[11] repudia a possibilidade de mudança do nome e do sexo no registro civil da pessoa, pois, apesar da cirurgia, os órgãos internos são os mesmos. Todavia, a posição amplamente dominante admite essa possibilidade, com base na dignidade da pessoa humana.
É preciso salientar que essa circunstância pode gerar importantes conflitos entre diferentes direitos da personalidade. Na Alemanha e na Suíça, por exemplo, como forma de proteção dos direitos da personalidade dos filhos, a lei não autoriza a mudança de sexo das pessoas casadas que tenham filhos. Direitos de crédito também podem ser afetados. No Brasil, não há legislação nesse sentido, o que obriga a jurisprudência a adotar as cautelas necessárias casuisticamente.
O STJ possui diversos julgados recentes a respeito do tema. No REsp 678.933, decidiu-se que a decisão judicial deve ser averbada no registro civil para garantir segurança jurídica. Já no REsp 1.008.398, entendeu-se não ser admissível qualquer alusão quanto ao fato de a mudança do nome e do sexo ter decorrido de decisão judicial. Essa decisão alarga ainda mais a proteção à dignidade da pessoa humana, contrariando a posição do julgado anterior. Por sua vez, no REsp 737.993, ficou decidido que, nos livros cartorários, deve haver a referência de que o nome e o sexo ali constantes resultam de sentença judicial, pois se trata de documento público que deve refletir a realidade. Mas, na respectiva certidão, não deve haver alusão à decisão judicial. É um julgado situado no meio-termo entre os dois anteriores. A decisão não traz muito efeito prático, já que, no dia a dia, praticamente todos se contentam com a certidão.
1.4 Disposição post mortem sobre o próprio corpo
A disposição post mortem do próprio corpo está estampada no art. 14 do Código Civil. A disposição deve ter objetivo científico (Lei nº 8.501/1992) ou altruístico (Lei nº 9.434/1997). O segundo caso envolve a doação de órgãos para transplantes. A redação atual do art. 4º da Lei nº 9.434/1997 determina que a decisão acerca da doação dos órgãos cabe aos familiares. Mas o art. 14 do Código Civil autoriza o próprio indivíduo a dispor de seu corpo para após a sua morte. Esse aparente conflito de normas resolve-se pela aplicação do referido art. 4º apenas no caso de silêncio do doador (Enunciado nº 277 do CJF). Esse entendimento também é defendido por Silvio de Salvo Venosa[12] e Gustavo Tepedino[13].
Quando houver risco de morte, ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou cirúrgico (art. 15 do Código Civil). Ao aplicar essa regra, deve haver a mitigação da sistemática da representação e da assistência adotada pelo Direito brasileiro, pois, a rigor, a vontade do representante substitui a vontade do incapaz, que não possui discernimento. Mas a doutrina contemporânea ressalta a insuficiência da lógica da representação e assistência para direitos extrapatrimoniais (Enunciado nº 138 do CJF). Além disso, em homenagem à boa-fé objetiva, esse consentimento é necessariamente um consentimento informado: o sujeito deve estar ciente dos riscos e dos benefícios envolvidos.
No caso de transfusão sanguínea envolvendo adeptos da denominação cristã chamada de “Testemunhas de Jeová”, a doutrina e a jurisprudência tradicionalmente sempre se inclinaram a favor da proteção da vida em detrimento da proteção à convicção religiosa, possibilitando a realização da transfusão sanguínea em caso de risco de morte.
Com o advento do art. 15 do Código Civil de 2002, alguns doutrinadores afirmaram que esse entendimento deveria ser afastado. Mas, atualmente, consolidou-se a orientação de que o art. 15 não aborda essa questão, já que a transfusão de sangue não envolve risco de morte. Logo, a orientação majoritária permanece inalterada no sentido de que a proteção à vida prevalece sobre a convicção religiosa em casos de risco de morte. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[14], em posição isolada, argumentam que não se justifica uma tutela inexorável da vida em detrimento da convicção religiosa.
1.5 Direito ao nome
O direito ao nome também está previsto no Código Civil (arts. 16 a 19).
Antigamente, entendia-se que o nome tinha natureza de direito de propriedade. No entanto, o direito de propriedade tem natureza patrimonial, é alienável e é passível de usucapião.
Posteriormente, passou-se a adotar o entendimento de que o nome constituía uma instituição de polícia, o que, em verdade, configura um resquício dos Estados totalitários. Ambos os entendimentos estão atualmente superados. Hoje, o nome tem natureza jurídica de direito da personalidade, pois está atrelado ao direito à identidade pessoal. Além disso, o nome é também um dever: é por meio dele que se procede à identificação social do sujeito.
As hipóteses legais de alteração do nome estão previstas na Leinº 6.015/1973 (arts. 55, parágrafo único, 56, 58, caput e parágrafo único, e 63), na Lei nº 6.815/1980 (arts. 30 e 43) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 47, § 5º). Antigamente, a regra geral era a imutabilidade do nome, com suas exceções previstas taxativamente em lei, em homenagem à segurança jurídica. Mas, recentemente, tem-se admitido a possibilidade de mudança do nome fora das hipóteses previstas em lei quando houver ofensa à dignidade da pessoa humana. Exemplos: homonímia depreciativa, uso prolongado e constante de nome diverso (ligado ao instituto do surrectio).
Frequentemente, o STJ é instado a se manifestar sobre o tema. No REsp 66.643 (julgado antigo), decidiu-se que o filho abandonado pelo pai pode alterar seu patronímico. Já no REsp 439.636, REsp 538.187 e REsp 1.069.864, admitiu-se a alteração do prenome por razões existenciais, fora dos casos legais. Por fim, no REsp 1.189.158, entendeu-se que não é possível suprimir o patronímico, sob o argumento de que o sobrenome não identifica o indivíduo como membro do judaísmo. O STJ afirmou imutabilidade do patronímico com base na segurança jurídica e na proteção aos direitos da personalidade dos filhos (que perderiam o vínculo pelo nome com a família paterna).
Além do nome, o pseudônimo também é tutelado pelo Código Civil (art. 19). Pseudônimo não é sinônimo de apelido. O pseudônimo é um nome completo, que identifica a pessoa para fins usualmente profissionais. Ele funciona como se o sujeito possuísse dois nomes civis perante a sociedade. Exemplos famosos: Lima Duarte, Dercy Gonçalves, Geraldo Vandré.
Em um caso envolvendo a citação por edital de Geraldo Vandré em ação de desquite movida pela sua então mulher, realizada somente em seu nome civil, o STJ determinou a anulação do processo, para que no edital também constasse seu pseudônimo.
Os apelidos, ao contrário, funcionam apenas como substitutos do prenome e usualmente são dados por terceiros. Exemplos famosos: Xuxa, Pelé, Lula.
1.6 Proteção da imagem
A proteção da imagem está tutelada no art. 20 do Código Civil. Ela consiste na tutela dos seguintes aspectos da imagem: imagem-retrato (fisionomia do indivíduo) e imagem-atributo (qualificação do indivíduo na sociedade). Há, por exemplo, vários casos de ação coletiva movida por associação de enfermeiras para a tutela da imagem das enfermeiras que eram associadas à pornografia em revistas e outdoors.
O próprio Código prevê que a proteção à imagem não é incondicionada: ela é tutelada apenas se houver violação à honra, boa fama, respeitabilidade ou se destinar a fins comerciais. Por isso, o STJ já declarou que a divulgação de foto, por si só, não gera dano moral (REsp 803.129).
Em um caso recente, no qual um Magistrado teve sua imagem indevidamente exposta em matéria jornalística envolvendo o nepotismo, o STJ confirmou o entendimento de que a mera exposição da imagem não configura dano moral (REsp 1.237.401). Com isso, consolida-se a ideia de que a tutela da imagem não é um valor absoluto. É necessário que a exposição da imagem gere um prejuízo aos interesses previstos no art. 20 do Código Civil.
Importante consignar que, em julgados antigos, ao contrário, afirmava-se que a proteção à imagem era absoluta, uma vez que a Constituição da República não havia feito restrições (REsp 267.529).
Segundo a Súmula nº 403 do STJ, não há necessidade de prova do prejuízo se a divulgação da imagem tiver finalidade comercial. Atualmente, a finalidade comercial está presente em praticamente todos os casos relacionados ao direito à imagem: tanto fotos tiradas por paparazzi quanto matérias jornalísticas possuem finalidade econômica. Nesses casos, ainda que não haja necessidade de provar o prejuízo, é necessário ponderar o direito à imagem com o direito à informação.
Segundo o Enunciado nº 279 do CJF, essa ponderação deve tomar por base a notoriedade do retratado, a natureza da informação, a veracidade da informação e as características da utilização da imagem (comercial, informativa).
Quanto à natureza da informação, deve haver interesse social na sua divulgação. O STJ já entendeu que a foto da vítima nas ferragens de um acidente é passível de indenização por dano moral (REsp 1.005.278), apesar de ter sido veiculada em uma matéria jornalística, pois, nesse caso, não havia interesse público na divulgação desse tipo de imagem. Por outro lado, há interesse social no caso de matérias jornalísticas envolvendo, por exemplo, corrupção policial, sonegação fiscal e corrupção política.
Quanto à veracidade da informação, mesmo em caso de informação inverídica, pode haver interesse social na divulgação da informação. Houve um caso com divulgação na mídia envolvendo suposta corrupção de um político, que posteriormente foi absolvido por negativa de autoria na esfera penal. Ainda assim, o STJ negou indenização por dano moral em favor do político, porque havia interesse público na matéria jornalística. Além disso, se fosse exigido juízo de certeza da imprensa, haveria cerceamento da liberdade de imprensa e do acesso à informação, já que o juízo de certeza é incompatível com o dinamismo na divulgação das informações (REsp 984.803 e REsp 680.794).
Diante disso, na análise dos casos que lhe são apresentados, observa-se que o STJ leva em conta, principalmente, a natureza da informação (existência de interesse social) na ponderação entre direito à imagem e direito à informação.
1.7 Proteção da privacidade
A proteção da privacidade encontra assento no art. 21 do Código Civil. Tradicionalmente, a privacidade sempre esteve atrelada ao direito de estar só, ao direito ao recato. Esse direito é mitigado em algumas circunstâncias que envolvam pessoas notórias ou lugares públicos.
Essa concepção ainda é válida, porém, modernamente, em função dos avanços tecnológicos que permitem a circulação livre de uma série de informações no ambiente virtual, há uma nova modalidade do direito à privacidade: trata-se do controle sobre o fluxo de informações que dizem respeito à pessoa.
Gustavo Tepedino[15] entende que é preciso diferenciar os dados sensíveis dos dados de natureza patrimonial. São exemplos de informações pessoais com conotação patrimonial: sigilo bancário, sigilo fiscal e sistema de proteção de crédito. São exemplos de dados sensíveis que dizem respeito a aspectos extrapatrimoniais: opção sexual, convicção religiosa, condição de soropositividade, pré-disposição genética. A pré-disposição genética pode exercer influência no caso de um sujeito que contrata um plano de saúde. É extremamente controvertido se o dever de informação do segurado abrange as informações relativas à predisposição genética, pois envolvem direitos da personalidade.
A importância dessa diferenciação reside no fato de que a proteção dos dados sensíveis deve ser mais incisiva, em virtude da despatrimonialização do direito civil.
A título de exemplo, apesar de ser tema controvertido em sede doutrinária, o Tribunal Superior do Trabalho já afirmou que o empregador pode fiscalizar o e-mail corporativo do empregado no ambiente de trabalho (Recurso de Revista nº 613/2000-013-10-00).
CONCLUSÃO
Conforme demonstrado ao longo deste trabalho, os direitos da personalidade relacionam-se diretamente com diversas situações práticas vivenciadas pelos sujeitos de direito no exercício de seus mais variados direitos no seio da sociedade.
Muitas delas extremamente sensíveis ao debate e à opinião pública, a solução jurídica a ser adotada requer sensibilidade social e profundo domínio do significado jurídico dos conceitos envolvidos, estando o operador do Direito ciente de que tal solução, longe de ser universal, encontra-se em constante evolução, assim como a sociedade.
REFERÊNCIAS
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TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 5. ed. São Paulo: Método, 2015.
TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. São Paulo: Forense, v. X, 2008.
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[1] BITTAR, Carlos Alberto. Curso de direito civil. São Paulo: Forense Universitária, v. 1, 1994.
[2] PEREIRA, Caio M?rio da Silva. Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2004.
[3] GONCALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Parte geral. 8. ed. S?o Paulo: Saraiva, v. 1, 2010.
[4] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito civil. Teoria geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[5] TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. In: TEIXEIRA, S?lvio de Figueiredo. S?o Paulo: Forense, v. X, 2008.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito civil. Teoria geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[7] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 5. ed. São Paulo: Método, 2015.
[8] TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. São Paulo: Forense, v. X, 2008.
[9] PEREIRA, Caio M?rio da Silva. Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2004.
[10] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2010.
[11] RIZZARDO, Arnaldo. Da ineficácia dos atos jurídicos e da lesão no direito. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
[12] VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010.
[13] TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. São Paulo: Forense, v. X, 2008.
[14] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito civil. Teoria geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[15] TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao novo Código Civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. São Paulo: Forense, v. X, 2008.