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OS DESAFIOS DO MODELO BRASILEIRO DE PRECEDENTES

OS DESAFIOS DO MODELO BRASILEIRO DE PRECEDENTES 

Taís Schilling Ferraz

 

SUMÁRIO: Introdução; 1 Vinculação aos precedentes no Brasil. Escolha e imposição do legislador; 2 O elemento vinculante em um precedente; 3 A formação do precedente brasileiro e a sua natural abstração; 4 A busca do fundamento determinante no precedente brasileiro; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A recente opção do legislador de inserir, no sistema jurídico brasileiro, a ideia de vinculação aos precedentes judiciais, transformando algumas decisões do Poder Judiciário de fontes secundárias em fontes primárias do Direito, não ocorre sem incompreensões e resistências. Muitas delas são imperceptíveis ao jurista forjado sob as bases de um sistema que tem, na lei, o centro gravitacional do universo jurídico e que relega a um papel secundário, indireto, as decisões do Poder Judiciário que a interpretam e aplicam.

É forte o paradigma que associa e restringe a atividade de julgar a um processo de mera descoberta do significado da lei, que se supõe unívoco, sem espaço para singularidades.

Este artigo pretende demonstrar a importância de se compreender adequadamente as bases deste conjunto, o que significa não apenas explorar o sentido de precedente, seus elementos vinculantes e não vinculantes, suas características no modelo brasileiro, mas, e principalmente, perceber e enfrentar as naturais dificuldades na sua produção, invocação e utilização em um contexto no qual a busca de preceitos genéricos, tal qual os da lei, tende a ditar a forma como deve ser construída, lida e aplicada uma decisão judicial nascida para produzir efeitos expansivos.

 

1 VINCULAÇÃO AOS PRECEDENTES NO BRASIL: UMA IMPOSIÇÃO DO LEGISLADOR  

Embora juízes e tribunais sempre tenham convivido com precedentes, a tendência foi associá-los à ideia de uniformização da jurisprudência. Neste caminho, muitos instrumentos processuais foram concebidos ao longo do tempo: embargos infringentes, incidentes de uniformização, embargos de divergência, súmulas, rescisórias e inexigibilidade de título executivo inconstitucional, efeitos vinculantes das decisões em controle concentrado de constitucionalidade, entre outros.

Uniformizar a jurisprudência e respeitar precedentes, no entanto, são escolhas diferentes. Ao ingressar em um modelo baseado na observância de precedentes, julgados anteriores de tribunais deixam de ser utilizados como meros padrões de solução ou como reforço argumentativo na motivação, e passam a ser aplicados como fundamentos determinantes e, muitas vezes, suficientes em decisões subsequentes. Previsibilidade e estabilidade da atuação do Poder Judiciário são verdadeiros alicerces de um sistema de precedentes, e não apenas efeitos indiretos alcançados por um processo de padronização de julgamentos.

O novo CPC torna obrigatório o respeito aos precedentes. A opção vem expressa e delimitada no art. 927.

É interessante atentar para o fato de que esta inovação ocorre, aqui, por força de lei e não porque se reconheça uma natural autoridade e legitimidade das decisões judiciais, as quais, no Brasil, nunca estiveram classificadas entre as fontes primárias do Direito.

A história jurídica brasileira está construída sobre as bases do civil law, no qual as normas ocupam espaço central.

Nas origens remotas deste modelo estão alguns dogmas. Justiça e consequências da decisão são atributos situados fora do âmbito cognitivo. A lei contém sentido unívoco, não comporta mais de uma interpretação, e o problema da justiça é do legislador, devendo-se respeitar a separação de Poderes. Dura lex sed lex.

Observe-se que a principal razão de ser do denominado juiz bouche de la loi estava na ausência de confiança no magistrado, justificada, à época do seu surgimento, na preocupação em impor limites ao poder do Estado, do qual o juiz se apresentava como um dos porta-vozes. Garantindo-se que o juiz observaria a lei ao decidir, estaria garantida a democracia contra o poder absoluto, pois as leis seriam o produto do trabalho daqueles que verdadeiramente representavam o povo.

Esta parece ser a leitura caricata de um sistema jurídico hoje inexis­tente.

Mas não é. O paradigma dogmático sobre o qual se construiu o sistema jurídico e jurisdicional do País contém inúmeras derivações deste modelo. Dele vem o apego às decisões de caráter declaratório, em que o juiz não cria, limita-se a enunciar um direito preexistente, as garantias prometidas por ritos intermináveis, nos quais haja espaço à mais ampla cognição, na busca da descoberta da única verdade. Juízos de verossimilhança sempre aparecem como desvios do sistema, sendo submetidos às mais variadas ressalvas e meios de impugnação. Tradicionalmente, se tratou como exceção indesejável a interferência na esfera jurídica do réu antes do trânsito em julgado, com a descoberta plena da verdade, que, assim como o direito material, não é construída no processo, é algo a ser apenas revelado ao juiz. E que venham os recursos.

Por mais que hoje se reconheça que o juiz faz escolhas durante o processo interno que se desenvolve em seu pensamento ao decidir [1], onde, para além da lei, interferem, mesmo inconscientemente, sua experiência, fatores históricos, ideológicos e vieses [2], é assim que as escolhas feitas são justificadas perante as partes e a sociedade. Ao demonstrar, na fundamentação da sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento, o juiz, comumente, faz uso de métodos estritamente racionais, especialmente dedutivos, apresentando verdades apriorísticas, para chegar à subsunção e à justificação das consequências jurídicas que pretende atribuir aos fatos sob sua apreciação.

É fundamental, no atual processo de mudança, reconhecer o quanto o sistema pátrio, eminentemente dogmático, assenta-se nesse paradigma. Não para que se excluam tais dogmas por completo da teoria da decisão, mas para que o intérprete perceba o quanto é influenciado por seus métodos e o quanto busca, muitas vezes inconscientemente, em supostas normas de validade universal, a justificativa para aplicá-los, negando a si papel criativo e de evolução histórica, e fugindo das diferenças que o mundo concreto a ele apresenta [3].

Este paradigma não se desconstrói pela mera imposição de respeito aos precedentes. Quem foi forjado em um sistema que depende tanto das normas para condicionar condutas, ainda que se reconheça vinculado aos precedentes, neles tenderá a buscar preceitos de valor universal, à semelhança da lei, com suas características de generalidade e abstração.

Um precedente, no entanto, não tem a generalidade da lei. É produto do exame de circunstâncias concretas, examinadas dentro e à luz de um contexto determinado. Ainda que dele se possam colher um ou mais preceitos universalizáveis, estes jamais poderão ser totalmente abstraídos dos elementos de fato e de direito que lhe deram fundamento.

2 O ELEMENTO VINCULANTE EM UM PRECEDENTE

A doutrina do common law e, mais recentemente, a brasileira, abrigam o sentimento de que “it is a basic principle of the administration of justice that like cases should be decided alike[4].

A dificuldade está em se estabelecer o que torna os casos iguais, especialmente, conforme alerta Schauer [5], porque, obviamente, nenhuma decisão anterior em um precedente em potencial terá sido construída em bases totalmente idênticas às do caso subsequente. No mínimo, as partes serão diferentes, e o tempo, o que pode ser relevante no contexto, havendo, ainda, diferenças absolutamente sem consequências.

Como se determina o que é similar e o que é diferente? E que similaridades e diferenças de fato importam? Estas questões vêm sendo tradicionalmente associadas uma à outra: Por que a Corte do precedente decidiu o caso daquela forma? E é esta pergunta que remete à ratio decidendi da decisão candidata a funcionar como precedente.

A ratio decidendi de uma decisão é o princípio (ruling on a point of law[6]) que, com as características de abstração e generalidade, se extrai especialmente (mas não exclusivamente) da fundamentação de um julgado [7]. São os motivos determinantes da decisão, passos necessários para que o julgador chegue a um determinado resultado.

É também conhecida como holding ou rule de um caso. Uma proposição (ou mais de uma) extraída da decisão, e que é passível de se abstrair e se reproduzir para reger casos fundados em circunstâncias semelhantes, por um processo de universalização que deve ser empreendido pelo intérprete [8]. É destinada a ser a porção transcendente e vinculante de uma decisão.

Nem todos os fundamentos contidos em uma decisão formam a sua ratio. Algumas proposições, embora sejam incluídas no contexto da motivação, não são determinantes para o resultado a que chega o órgão julgador. Trata-se da categoria do obiter dictum.

A distinção entre ratio e obiter dictum nas decisões, em um típico sistema de precedentes, é fundamental. E a principal razão é o grau de vinculação que cada um exerce sobre os julgamentos futuros. A ratio é importante em razão de sua natureza obrigatória. As Cortes devem seguir a ratio, concordando ou não com ela. O que se exige não é a concordância, mas a aquiescência [9]. Quanto ao obiter dictum, em que pese se lhe reconheça alguma força persuasiva, não obriga à observância.

Embora não haja fórmula perfeita para identificar, em uma decisão, o que configura a ratio decidendi e o que deve ser classificado apenas como dictum[10], adota-se, aqui, a lição de Wambaugh, para quem a ratio decidendi é uma regra geral sem a qual um caso seria decidido de forma diferente [11].

Nesta linha, ainda que se trate de uma proposição excelente aos olhos do intérprete, se ela não for determinante para o resultado da decisão, constituirá mero dictum.

3 A FORMAÇÃO DO PRECEDENTE BRASILEIRO E SUA NATURAL ABSTRAÇÃO

Tendo-se presentes os contornos não tão objetivos da ratio decidendi, tal como concebida no sistema do common law, é preciso perceber que a simples transposição destes mecanismos de identificação para o sistema brasileiro, essencialmente enraizado no dogmatismo e na abstração, não conduzirá, necessariamente, aos mesmos resultados.

E um dos motivos é que, aqui, tal como estruturado o regime de precedentes, os tribunais, quando decidem, já o fazem com a perspectiva de estabelecer uma rule para os casos iguais.

Escolhem-se os recursos (e agora também processos) representativos de controvérsias constitucionais e infraconstitucionais, tendo-se presente que seus julgamentos projetarão efeitos sobre um sem-número de processos em tramitação. Trata-se do requisito da transcendência, presente de forma clara no sistema de julgamento das demandas repetitivas.

A introdução de mecanismos típicos do julgamento objetivo ao regime de tramitação e decisão dos recursos extraordinários, especiais e do incidente de resolução de demandas repetitivas, como a participação do amicuscurie, a possibilidade de realização de audiências públicas e de modulação de efeitos, tem provocado a abstração [12] cada vez maior das decisões frente aos recursos que lhes servem como representativos da controvérsia constitucional ou infraconstitucional.

O objetivo é carrear ao momento da decisão a maior quantidade possível de elementos, de forma que a questão constitucional ou infraconstitucional seja examinada sob todos os ângulos e que as consequências do julgamento possam ser projetadas.

Questões não suscitadas nos recursos escolhidos para paradigmas acabam sendo levadas à apreciação dos julgadores pela ação dos amici, pela juntada de memoriais de iniciativa de partes que litigam em feitos sobrestados que versam a mesma questão, por provocações da tribuna e de relatores de feitos análogos.

O resultado imediato é que serão objeto de exame fundamentos de fato e de direito não necessariamente contidos nos recursos eleitos inicialmente como paradigmas. E o enfrentamento de tais questões poderá ser ratio decidendi do julgado, cujo alcance, para efeitos de utilização futura do julgamento como precedente, terá que ser definido para além dos contornos do leading case.

Diversas decisões já proferidas pelo STF no regime da repercussão geral demonstram este fenômeno, sendo comum inclusive que, reconhecida a repercussão geral de determinada questão constitucional no bojo de um recurso extraordinário inicialmente selecionado como representativo dessa controvérsia, em outro venha a ser julgado o mérito [13], o que conduz à indagação quanto ao verdadeiro papel do recurso-paradigma, que vem sendo muito mais acidental que essencial.

O alargamento do debate, obviamente, não pode ser objeto de censura. Espera-se que, ao decidir, os tribunais o façam à vista do maior volume possível de conhecimento.

O que pouco tem sido percebido é que a vinculação a um paradigma dogmático, inclusive por aqueles que produzem os precedentes no novo sistema, e a consequente busca da solução em normas gerais e abstratas, acaba por condicionar desde a formação do leading case até a sua aplicação a outros casos.

A ideia de que o precedente produz norma geral está presente, e tem marcado o sistema de julgamento, frequentemente seguido da extração de teses e até da edição de súmulas. A mesma perspectiva pode ser observada nas instâncias ordinárias, que tendem a reconhecer que tal julgamento permite a motivação dos casos análogos por meio de técnica eminentemente silogística e simples.

Um precedente, entretanto, não vale como proposição em tese. Impõe-se vincular o princípio dele extraído às razões que o tenham justificado, de modo a aferir sua potencialidade de influir no julgamento de outros casos.

Respeitar um precedente significa respeitar as razões de fato e de direito que lhe serviram de base, as quais não podem, de forma alguma, ser dissociadas das circunstâncias concretas consideradas e do seu contexto. Invocar tais razões para dar solução jurídica a outros casos exige, não raras vezes, adequação da resposta às respectivas particularidades.

E se as decisões-paradigma, no sistema de precedentes brasileiro, são forjadas a partir de fundamentos de fato e de direito advindos das mais variadas origens, como audiências públicas, recursos repetitivos, atuação dos amici curiae etc., a busca da ratio decidendi deverá ser empreendida a partir de todos os elementos efetivamente considerados, de forma a extrair-se, para efeitos de universalização, o que for determinante. É neste processo que se encontra o princípio ou rule do precedente. Este princípio, ainda que tenha sido construído a partir de elementos aportados de múltiplas fontes ao momento da decisão, estará sempre relacionado a fatos determinados, tratados como fundamentais no julgamento. Não há como abstraí-lo do contexto do qual proveio, por mais amplo que tenha se tornado este contexto em razão da sistemática de julgamento.

Neste sentido, impõe-se questionar em que medida contribui para um sistema baseado no respeito aos precedentes a produção sistemática de teses jurídicas, prática já tão comum ao término do julgamento de temas com natureza repetitiva ou com repercussão geral. As teses encaminham o intérprete ao processo de abstração, e um precedente, como visto, não tem – nem deve ter – a generalidade de uma lei.

Há riscos, neste caminho, de que se transmude o anacrônico juiz bouche de la loi no juiz bouche du précédent, a aplicar abstratamente o preceito originado da decisão superior sem atentar para as particularidades de cada caso concreto, como se da mesma forma tradicionalmente pensada para a lei, o precedente pudesse encerrar uma única e unívoca vontade.

4 A BUSCA DO FUNDAMENTO DETERMINANTE NO PRECEDENTE BRASILEIRO

A separação entre ratio e dictum, considerando-se o sistema de julgamento que vem sendo adotado pelas Cortes brasileiras de precedentes, exigirá esforço extra e especial cautela.

Questões que poderão ser classificadas como essenciais à formulação do princípio de direito enunciado no julgamento (as quais, uma vez suprimidas, modificariam seu resultado) poderão ser derivadas de outros casos concretos, ou mesmo de alegações aportadas à discussão no momento do julgamento, de maneira que a adoção futura desta decisão como precedente não se resolverá apenas pelo uso das técnicas tradicionais do common law, embora devam elas ser conhecidas e exercitadas.

Um precedente, tal como concebido em suas remotas origens, é um julgamento inovador e será tratado como tal apenas se no julgamento de um caso subsequente puder ser invocado como razão de decidir.

Aqui, porém, ele surge como elemento informador da solução de um grande volume de controvérsias já instauradas e, em grande medida, por causa delas, voltando-se, ao menos no momento em que é construído, à solução de processos já existentes.

As concepções não são incompatíveis. Necessário, porém, ter atenção para a natural tendência do jurista do civil law à busca de preceitos abstratos e ao uso do silogismo e da lógica dedutiva como mecanismos suficientes de decisão. E será fundamental que as atribuições entre tribunais superiores e instâncias ordinárias sejam melhor delimitadas e harmonizadas.

É aos juízes e tribunais nas instâncias ordinárias que compete cogitar se há identidade suficiente entre o chamado instant case, que é o processo que está sob apreciação, e o candidato a precedent case. A eles, em sendo o caso de aplicar um precedente, cabe dar solução definitiva aos casos em concreto. Para que o sistema tenha êxito, é preciso que os tribunais superiores assumam em definitivo o papel de Cortes de interpretação do Direito, deixando para as instâncias de origem a solução dos processos individualmente, e exonerando-se da função de revisar cada feito individualmente.

A função dos juízes e tribunais de dar aplicação material aos precedentes forjados no novo sistema de julgamento de processos repetitivos e de repercussão geral pode recuperar, em grande medida, o sentido da atuação das instâncias ordinárias, que há muito vêm gozando de pouca importância, figurando como mero rito de passagem, especialmente nas questões de direito.

Para tanto, tais órgãos de base não deverão buscar nos precedentes normas prontas e acabadas, que possam substituir-se às alegações das partes em concreto, à fundamentação e à problematização decisional. A fonte na qual deverão beber os juízos ordinários está localizada nos argumentos de princípio que informaram a decisão-paradigma e não em seu enunciado final. E tais argumentos de princípio haverão de ser localizados para além dos limites do recurso-paradigma, o método de decisão será mais indutivo e exigirá problematização.

Mais do que isso, estes argumentos não estarão necessariamente concentrados no voto do relator do precedente.

Diante da amplitude dos elementos de fato e de direito carreados ao momento da decisão, bem assim, dos argumentos de natureza consequencial, suscitados em decorrência do seu futuro efeito expansivo, pode ocorrer – e muito comumente ocorre – que a ratio decidendi de um importante julgamento esteja distribuída nos diversos votos dos magistrados que dele participaram.

Com frequência, nos tribunais brasileiros chega-se a uma mesma decisão sob a perspectiva do seu dispositivo – prover ou desprover um recurso, reconhecer ou não um direito -, porém por fundamentos absolutamente diferentes. Este dissenso pode se estabelecer entre os julgadores ou mesmo entre as razões destes e as que foram suscitadas pela parte vencedora. Chega-se a um julgamento unânime quanto ao provimento, mas por diferentes razões.

Não há, no Brasil, até o momento, a figura jurídica da majority opinio do Direito norte-americano, no qual decisão colegiada típica inicia sempre pelo registro do entendimento da maioria (majority opinio), seguida pelo entendimento divergente (dissent opinio), se houver algum. Quando houver opiniões concorrentes apresentadas em separado, elas se seguirão à opinio da maioria, antes do voto divergente. Os juízes individualmente podem elaborar seus votos concorrentes ou divergentes, mas a parte mais importante da decisão, a ratio decidendi adotada pela maioria dos juízes, a qual poderá se tornar precedente vinculante, situa-se na majority opinio[14].

Tendo-se presente que a força vinculante de um precedente está nos seus argumentos de princípio, na sua ratio decidendi, e não no seu dispositivo, já se pode identificar a dificuldade. O intérprete precisa enveredar pela profunda leitura do inteiro teor dos acórdãos para, no contexto dos votos e do debate, identificar qual a ratio decidendi que prevaleceu. A mera leitura da ementa é insuficiente e mesmo temerária.

Se, neste processo, o intérprete percebe que não há nenhum fundamento que possa ser considerado expressão do pensamento da maioria – porque os fundamentos são substancialmente dissonantes -, estará diante de uma hipótese de não vinculação. Poderá adotar os fundamentos do relator ou de outros julgadores como reforço à sua argumentação, mas não por estar diante de um precedente dotado de força obrigatória.

É fundamental que os próprios tribunais superiores reavaliem a forma de decidir, buscando alguns consensos mínimos quanto à fundamentação adotada para os seus julgados. Devem partir para uma forma mais objetiva de produzir e documentar os fundamentos que sejam expressão do entendimento da maioria, atribuindo-se, quiçá, ao relator a missão de traduzi-los, sem prejuízo de agregar seus próprios fundamentos não consensuais em obiter dictum.

Enquanto esta percepção não ocorrer, a missão daquele que, na sequência, fará a leitura dos precedentes, avaliando a sua aplicabilidade no julgamento de casos subsequentes, estará bastante dificultada e poderá ser cercada de incompreensões. É muito comum que, por argumentos até contraditórios, se chegue a uma mesma solução para o caso.

CONCLUSÃO

A adoção de um sistema de precedentes no Brasil exige muito mais que a importação de modelos concebidos sob paradigmas diversos. O Brasil deve construir seu próprio modelo, e, neste caminho, será fundamental que os intérpretes e aplicadores do Direito estejam atentos para que não se despreze ou elimine o potencial dos novos instrumentos e para que não se enverede pela tendência de centrar foco apenas na norma, tese ou no preceito originado do precedente, aplicando-o genericamente.

Diferentemente de uma norma geral, destinada a tudo resolver, o precedente é vetor de modificação e dinamização da jurisprudência. Seu sentido é transformador, seus efeitos, prospectivos. Não é da sua natureza regular situações passadas, e sim servir de elemento informador de decisões futuras sobre casos análogos. É daí que não se deve identificar julgamento por precedente a simples propósito de uniformização da jurisprudência.

Sem abrir mão da ideia de que o processo é instância hermenêutica, ciência do diálogo, do convencer, é possível a introdução da ideia de respeito aos precedentes. Não como novos dogmas a serem objeto de reverência, não como normas prontas e acabadas, mas enquanto encerrem enunciados dinâmicos, contingentes e analógicos e integrativos do ordenamento jurídico.

Aclarar e integrar o sistema normativo, para usar as palavras de Calamandrei [15], não equivale a uniformizar, mas a criar ambiente que, ao tempo em que assegure segurança jurídica e previsibilidade à aplicação do Direito, não o aprisione, impedindo que absorva as mudanças e os novos contextos históricos.

É neste contexto que um sistema de precedentes pode ter bons resultados. Reconhece-se a eficácia naturalmente ultra partes dos julgamentos, especialmente dos tribunais superiores, mas se assegura que casos individuais tenham tratamento individualizado, quando suas especiais circunstâncias o exigirem.

 

REFERÊNCIAS

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EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press, 1991.

FERRAZ, Taís Schilling. Repercussão geral – Muito mais que um pressuposto de admissibilidade. In:PAULSEN, Leandro (Coord.). Repercussão geral no recurso extraordinário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

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MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert (Org.). Interpreting precedents. A comparative study. Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997.

______; BANKOWSKI, Zenon; MARSHALL, Geoffrey. Precedent in the United Kingdom. In: MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert (Org.). Interpreting precedents. A comparative Study. Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas. Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

______. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e ideologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo, n. 199, p. 139-155, 2011.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

[1]  Citando José Puig Brutau, autor da obra A jurisprudência como fonte de Direito, Portanova afirma que o Direito, ao utilizar a lógica formal, esqueceu suas origens retóricas e ligadas à vida prática. A ideia de que a sentença seja o resultado de um silogismo corresponde a uma simplificação exagerada e pouco fiel daquilo que verdadeiramente acontece com a formação do convencimento do juiz. O silogismo jamais representará a formação mental da sentença. (PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 253)

[2]  Os professores e cientistas Cass Sunstein e Richard Thaler demonstram que diversos fatores inconscientes podem influenciar a arquitetura das escolhas (THALER, Richard. H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: o empurrão para a escolha certa: aprimore suas decisões sobre saúde, riqueza e felicidade. Trad. Marcelo Lino. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 21). Sobre o tema, remete-se o leitor, ainda, à obra Subliminar. Como o inconsciente influencia nossas vidas, de Leonard Mlodinow (Rio de Janeiro: Zahar, 2013).

[3]  O jurista holandês Grotius afirmava que apenas aquilo que, sendo natural, conserva-se sempre o mesmo, poderia ser reduzido a uma ciência. Assim, como interpretou Ovídio, justificava-se a fuga da diferença, o horror pelo individual, que depois seria encontrado em Savigny e que iria caracterizar a cultura europeia dos séculos seguintes (Hugo Grotius apud SILVA, Ovídio Baptista da. Processo e ideologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

[4]  CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. New York: Oxford University Press, 1991. p. 3. No Brasil, entre outros: MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 17.

[5] SCHAUER, Frederick. Precedent. 2011. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract

=1836384>. Acesso em: 29 abr. 2016.

[6] BANKOWSKI, Zenon; MacCORMICK, Neil; MARSHALL, Geoffrey. Precedent in the United Kingdom. In: MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Roberts (Org.). Interpreting precedents. A comparative study. Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997. p. 338.

[7] A ratio decidendi, segundo Marinoni, não tem correspondente no processo civil adotado no Brasil. No common law, é extraída e elaborada a partir dos elementos da decisão, isto é, da fundamentação, do dispositivo e do relatório (MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit.,

  1. 220).

[8]  GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffrè, 2011. p. 264.

[9]  COWNIE, Fiona; BRADNEY, Anthony; BURTON, Mandy. English legal system in context. 5. ed. New York: Oxford University Press, 2010. p. 99.

[10]  “It’s almost impossible do devise a formula for determining the ratio decidendi of a case…” (COWNIE, Fiona; BRADNEY, Anthony; BURTON, Mandy.Op. cit., p. 101)

[11]  Eugene Wambaugh apud CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Op. cit., p. 52.

[12]  FERRAZ, Taís Schilling. A abstração da questão constitucional de repercussão geral frente ao recurso extraordinário. Revista Jurídica, n. 439, p. 25-46, 2014.

[13]  A questão da constitucionalidade da revogação da isenção da Cofins para as sociedades civis de prestação de serviços teve repercussão geral reconhecida no RE 575.093, tendo sido, porém, julgada no mérito por meio dos REs 377.457 e 381.964. Já o tema da constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel teve repercussão geral reconhecida no RE 562.051, vindo a ser apreciado, no mérito, nos REs 349.703 e 466.343. Em ambas as situações, os recursos em que formado o julgamento paradigma eram inclusive anteriores ao regime da repercussão geral, mas seus temas tiveram a repercussão geral reconhecida em recursos mais novos, já na vigência do novo sistema.

[14]  SUMMERS, Robert S. Precedent in the United States (New York State). In:MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Interpreting precedents. A comparative study. Vermont: Ashgate, 1997. p. 361.

[15]  CALAMANDREI, Piero. La casación civil. Trad. Dantiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, t. II, 1945. p. 104. Apud ZAVASCKI, Teori. STF,RCL 4335/AC, J. 20.03.2014.